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III.VI – Distribuição Interna e Irregular

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REFERÊNCIAS

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dos escravos, a relação entre os anos e as origens e finalmente pontuamos resumidamente o número de viagens, concentração de escravo por navio e mortalidade antes e depois do embarque. Tais aspectos destacam uma distância entre o número de trabalhadores mortos pela epidemia de 1748-1750 e a inserção de africanos, como também evidenciam uma irregularidade na distribuição anual da entrada de cativos, considerando a origem e a quantidade.

No próximo item, exploraremos a distribuição interna dos escravos africanos no território da capitania do Grão-Pará, evidenciando irregularidades e a continuação da importância da mão de obra indígena – apesar dos esforços metropolitanos.

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III.VI Distribuição interna e irregular

Ao compararmos a quantidade de mortos pela epidemia e a entrada de africanos na capitania do Grão-Pará, temos que lidar com as imprecisões das contagens. Os dados de mortalidade oscilam entre as listagens enviadas pelos responsáveis das aldeias e a estimativa produzida pelo governador Francisco Gurjão de 40 mil óbitos.383 Enfrentando retóricas em torno do número de falecimentos, optamos por minimizar a contagem e acatamos o menor cômputo: 13.246 falecimentos associados à epidemia.384 O mesmo acontece para pensarmos a entrada de africanos sob as ações da Companhia monopolista. A primeira escolha é negligenciar os escravos negros385 inseridos em 1756, pois para isso teríamos que incorporar diferentes séries documentais. Logo, nossa investigação se concentra nos 20 anos (1758-1778) cobertos pelas “carregações”. Baseado nesses livros das “carregações”, temos o número de 12.604 escravos africanos vivos e embarcados com destino à Belém.

383 AHUPR, capitania do Grão-Pará, 13 de agosto de 1750, cx. 31, doc. 2982. 384 Por ser o menor número de mortos que compreende todo o período da epidemia. A forma de produção das contagens e outros números são apontados no capítulo II deste trabalho. 385 O esforço da Coroa em distanciar o indígena do africano pode ser ilustrado pelo parágrafo 10 do Diretório, no qual era determinado que os diretores das Aldeias proibissem que os Índios fossem chamados ou se chamassem de “negros”, “querendo talvez com a infâmia e vileza deste nome [negro], persuadir-lhes, que a natureza os tinha destinado para escravos Brancos, como regularmente se imagina a respeito dos Pretos da Costa da Africa”. Cf. Diretório que se deve observar nas Povoações dos Índios do Pará, e Maranhão, enquanto sua Majestade não mandar o contrário.

Disponível em: http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/1929. Acesso em: 17 abr. 2018.

Os números apontam para o maior número de índios mortos pelo surto do que africanos transportados pela Companhia. Essa diferença pode ser maior ou menor se considerarmos a possibilidade de sub-registros de mortos, como o próprio governador Gurjão apontou, ou os possíveis 947 cativos embarcados em 1756. Mas o que buscamos aqui é uma tendência. Não ancorada no rigor exato dos números e sim nos indícios expostos por eles. E o que as pistas apontam, apesar de suas possíveis imprecisões, é que o surto foi fulminante e durou três anos. Já a possível reposição de braços pela Companhia levou aproximadamente 20 anos, com oscilações não apenas quanto à origem do cativo como também nos anos de inserção. A linha investigativa aponta para a impossibilidade da reposição por parte da Companhia dos trabalhadores mortos pelo contágio.

Em 1778, a capitania do Grão-Pará já apresentava um quadro do impacto da inserção de africanos – data do fim do monopólio da Companhia. Reduzindo a escala de análise e nos atendo às vilas/freguesias especificamente, é instigante comparamos o número de mortos pela epidemia e os escravos contabilizados nesse ano. Comecemos pelas duas mais populosas freguesias da capitania, Sé e Santana da Campina. Ao longo dos três anos do contágio, morreram 3.348 indígenas nas propriedades leigas da freguesia da Sé de Belém e nas fazendas e Engenhos da Companhia de Jesus em Jaguari, Curuça, Mamapacú, Gibriê. Em 1778, o número de escravos africanos contabilizados nessa freguesia foi de 2.362. No caso da freguesia de Santana da Campina, o número de mortos atingiu 3.061 índios, e os escravos negros inseridos foram contabilizados em 2.031. Ou seja, em ambas as freguesias os escravos inseridos não alcançavam o número de trabalhadores mortos pela doença.

Em outras localidades, a diferença poderia ser maior. A vila de Monte Alegre teve óbito de 550 índios e apresentava uma escravaria africana composta por dez indivíduos. A vila de Outeiro acusou o falecimento de 173 indígenas e teve zero escravo contabilizado em 1778. No Arquipélago do Marajó, Salvaterra, com seus 371 mortos pelo surto, contrapôs cincos escravos de origem africana declarados em 1778 e, na vila de Soure, os 438 mortos pela epidemia contrastavam com 79 cativos negros contabilizados. A vila de Alenquer, já mais a oeste, apresentou 200 índios mortos e apenas 67 escravos africanos.

Na contramão desses dados, temos a vila de Cametá, que acusou a morte de 80 indígenas e em 1778 tinha 1.641 cativos africanos.386

Tabela 3 – Relação mortos pela epidemia e escravaria negra Vila/freguesia Mortos pela epidemia Escravos negros em 1778 Sé 3.348 2.362 Santana da Campina 3.061 2.031 Monte Alegre 550 10 Outeiro 173 0 Salvaterra 371 5 Soure 438 79 Alenquer 200 67 Cametá 80 1.641 Fonte: AHUPR, Capitania do Grão-Pará, 22 de junho de 1785, cx. 94, doc. 7509. AHUPR, Capitania do Grão-Pará, 15 de Setembro de 1750, cx.32, doc. 3001.

Como os dados pontuam, não houve uma relação direta entre as localidades com alta mortalidade e seu possível provimento de escravos negros. A justificativa apresentada pela Coroa, que relacionava a demanda por mão de obra causada pela epidemia e a distribuição de cativos vindos da África, efetivamente não se concretizou. As localidades mais atingidas pelo surto não se transformariam necessariamente nas que mais receberiam cativos africanos. Por outro, podemos falar que havia uma tendência à irregularidade na distribuição interna dos cativos africanos. Em 1778, o governador João Pereira Caldas iniciou o levantamento sistemático dos fogos, essa contagem gerou um documento intitulado “Mapa das Famílias das Capitanias do Grão-Pará e Rio Negro”.387 A análise dessa documentação nos oferece pistas da distribuição da escravaria de origem africana. O total levantado nesse ano era de 13.476 escravos negros distribuídos pelas 63 freguesias/vilas/lugares e pelos 4.176 domicílios. As seis maiores populações de cativos estavam: na Sé (2.362) e Campina (2.031), as duas freguesias formavam a cidade de Belém, Cametá (1.641), Mojú (876), São Domingos do Rio Guamá (737) e São José de Macapá (604).

386 AHUPR, Capitania do Grão-Pará, 15 de setembro de 1750, cx.32, doc. 3001. 387 AHUPR, Capitania do Grão-Pará, 22 de junho de 1785, cx. 94, doc. 7509.

A soma desse plantel é de 8.261 cativos, significando 61% dos escravos negros da capitania.388

Encontramos indícios de que a maior parte dessa escravaria estava ligada diretamente ao plantio. Nas seis freguesias, a atividade econômica mais citada era agricultura: na freguesia da Sé, do total de 170 senhores proprietários, 146 dedicavam-se às roças; na Campina, dos 43 proprietários, 37 possuíam roças; no Mojú, dos 99 senhores, 83 eram donos de roças; e em São Domingos, dos 62 senhores, encontramos 60 com roças. O caso de maior destaque foi o de Cametá: com seus 513 senhores de fazendas, foram arrolados 506 dedicados ao plantio, 07 Engenhos e nenhuma fazenda de gado. Os Engenhos possuíam 207 escravos africanos, o restante estava envolvido na agricultura, em especial nas atividades voltadas ao cacau: 416 domicílios que indicaram explicitamente envolvimento na produção de cacau e concentravam 1.249 escravos de origem africana, 76% do plantel da vila. Outro exemplo, a vila de São José de Macapá tinha o expressivo número de 604 escravos negros e estava atrelada diretamente ao processo de valorização da rizicultura.389

Aliás, pensar em Macapá é considerar que localidades bem próximas poderiam apresentar diferenças na posse de cativos negros. É o que fica evidenciado na heterogeneidade de plantel entre vilas vizinhas como Macapá, Mazagão e Vistosa, situadas no Cabo Norte.390 Pela contagem dos domicílios do ano de 1778, Macapá tinha 604 cativos, Mazagão 395 e Vila Vistoza

388 Mesmo em fins do século XVIII e ao longo do XIX, essas regiões continuaram concentrando a maior parte do contingente de escravo da Província do Pará. Cf. BARROSO, Daniel; MOTA,

Antonia. Economia e Demografia da Escravidão no Maranhão e no Grão-Pará: uma análise comparativa da estrutura da posse de cativos (1785-1850). Revista História, São Paulo, n. 176, p. 1-41, 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rh/n176/2316-9141-rh-176-a07815. pdf. Acesso em: 19 mar. 2018. 389 Cf. ANGELO-MENEZES, Maria de Nazaré. O Sistema Agrário do Vale do Tocantins

Colonial: agricultura para consumo e para exportação. Projeto História, São Paulo, v. 18, p. 237-259, 1999. A autora analisa o avanço da agricultura de exportação no período pombalino, na região do Baixo Tocantins. Para Marcia Mello, há um indicativo de que, a despeito da entrada de africanos para a lavoura, esta não foi suficiente, Cf: MELLO, Marcia. Contribuição para uma

Demografia do Estado do Grão-Pará e Maranhão, 1774-1821. Anais de História de Além-

Mar, Lisboa, vol. XVI, p. 227-253, 2015. MARIN, 2005. RAVENA, Nírvia. O abastecimento no século XVIII no Grão-Pará: Macapá e as vilas circunvizinhas. In: MARIN, Rosa Acevedo (org.). A escrita da História paraense. Belém: NAEA/UFPA, 1998, p. 29-52. 390 Rosa Acevedo Marin chamou atenção para essa diferença, embora focar Macapá e Mazagão. Cf.

MARIN, 2005.

alcançava 119 escravos.391 Além da distância entre números absolutos do plantel, podemos destacar diferenciações na composição da escravaria, para tanto, destacaremos o escravo homem e adulto. Em Macapá, 90% dos seus cativos eram homens adultos, Mazagão teria aproximadamente 53% e Vila Vistoza, 65%. Ou seja, numa área circunvizinha e dedicada à rizicultura, as três vilas apresentavam distâncias significativas quanto à quantidade e ao perfil dos escravos.

Macapá era a vila mais antiga e fundada por açorianos, imigrantes enviados pela Coroa como resposta às demandas causadas pela epidemia. Seus fundadores começaram a chegar em 1751 e contaram com um apoio inicial da fazenda real para o estabelecimento de suas propriedades. Anos depois, esse apoio poderia ter feito diferença no cabedal econômico e político para facilitar a aquisição de africanos diretamente com os administradores da Companhia. Outro ponto que pesava a seu favor era o fato de ser essa vila estratégica na defesa da fronteira com os franceses e, por isso, ter recebido trabalhadores para viabilizarem a edificação de um forte. Mas, apesar de existir um número significativo de cativos africanos nas pedreiras e serrarias destinadas à construção do forte de Macapá, havia indícios de continua valorização da mão de obra indígena: o sargento-mor de obras da fortaleza defendia com o governador a preferência por trabalhadores indígenas, pois estes tinham um custo inferior para aquisição e sustento.392

Menos da metade da população escrava negra da capitania estava dividida entre as outras 57 localidades. Segundo o Mapa das Famílias, seis delas tinham entre 50-100 cativos, 10 tinham entre 10-49 e 22 tinham entre 00-09 escravos de origem africana. Para a ampla área da capitania do Grão-Pará, as ações da Companhia não surtiram o efeito desejado pela Coroa. A região com menor número de cativos negros era o Baixo Amazonas, ou seja, mais a oeste. Essa tendência foi mantida mesmo após o fim do monopólio da Companhia, notadamente a reduzida presença de brancos e cativos negros na capitania do Rio Negro.393

391 AHUPR, Capitania do Grão-Pará, 22 de junho de 1785, cx. 94, doc. 7509. 392 Cf. CAMILO, Janaína Valéria Pinto. Homens e Pedras no Desenho das Fronteiras: a construção da Fortaleza de São José de Macapá (1764-1782). 2003. Dissertação (Mestrado em

História) – Universidade de Campinas, Campinas, 2003, p. 130-131. 393 MELLO, 2015, p. 238. SAMPAIO, Patricia. Espelhos Partidos. Manaus: EDUA, 2011, p. 75.

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