Islão e Fundamentalismo Islâmico

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Isl達o-Arte-Novas-Medidas 1

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ISBN 978-989-693-056-1

19/01/16 15:09


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Índice Prefácio.............................................................................................................................................. IX Sobre o Livro................................................................................................................................... XI Introdução........................................................................................................................................ XIII Parte I: Enquadramento Histórico-Religioso.......................................................................... 1 1.

Allah, o Criador...................................................................................................................... 3 1.1. Sobre Allah.................................................................................................................. 3 1.2. Alcorão, o Livro Sagrado........................................................................................ 4 Referências Bibliográficas.................................................................................................. 6

2.

Maomé, o Louvado.............................................................................................................. 7 2.1. A Arábia Pré-Islâmica............................................................................................... 7 2.2. A Vida do Profeta...................................................................................................... 8 2.3. Os Primeiros Anos do Islão................................................................................... 11 Referências Bibliográficas.................................................................................................. 15

3.

Os Quatro Rashidun, os Bem Guiados.......................................................................... 17 3.1. A Sucessão de Maomé............................................................................................ 17 3.2. Abu Bakr (632-634).................................................................................................. 18 3.3. Omar ibn al-Khattab (634-644)........................................................................... 19 3.4. Othman ibn Affan (644-656)................................................................................. 20 3.5. Ali ibn Abu Talib (656-661).................................................................................... 21 Referências Bibliográficas.................................................................................................. 22

4. As Diferentes Ramificações do Islão............................................................................. 23 4.1. Sunismo........................................................................................................................ 23 4.1.1. A Escola Malikita........................................................................................... 25 4.1.2. A Escola Hanifita........................................................................................... 26 4.1.3. A Escola Shafiita............................................................................................ 26 4.1.4. A Escola Hanbalita....................................................................................... 27 4.2. Shiismo.......................................................................................................................... 28 4.2.1. Shiitas Ismaelitas ou Septimanos........................................................... 29 4.2.2. Shiitas Duodecimanos ou Imamitas..................................................... 31


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4.2.3. Zayditas............................................................................................................ 33 4.3. Kharijismo.................................................................................................................... 34 Referências Bibliográficas.................................................................................................. 36 5.

As Duas Primeiras Grandes Dinastias Árabes: Omíada e Abássida................... 37 5.1. Dinastia Omíada de Damasco (661-750)......................................................... 37 5.2. Dinastia Abássida de Baghdad (750-1258)..................................................... 41 Referências Bibliográficas.................................................................................................. 45

6. Os Cinco Pilares do Islão … Mais Um............................................................................ 47 6.1. Profissão de Fé (Shehada)...................................................................................... 47 6.2. Oração (Salat)............................................................................................................. 48 6.3. Esmola Legal (Zakat)................................................................................................ 50 6.4. Jejum (Swam).............................................................................................................. 51 6.5. Peregrinação (Hajj)................................................................................................... 53 6.6. Jihad ............................................................................................................................. 56 Referências Bibliográficas.................................................................................................. 58 Parte II: O Fundamentalismo Islâmico....................................................................................... 59 7.

Características e Causas..................................................................................................... 61 7.1. Características do Fundamentalismo Islâmico............................................... 61 7.2. Causas do Fundamentalismo Islâmico.............................................................. 63 Referências Bibliográficas.................................................................................................. 66

8. Evolução Histórica do Fundamentalismo Islâmico.................................................. 67 8.1. Introdução.................................................................................................................... 67 8.2. Kharijitas, os Puritanos do Islão........................................................................... 68 8.3. Ahmad ibn Hanbal, o Fundador do Hanbalismo.......................................... 69 8.3.1. Vida e Obra..................................................................................................... 69 8.3.2. Princípios Doutrinários............................................................................... 73 8.3.3. Desenvolvimento Histórico do Hanbalismo...................................... 76 8.4. Ibn Taymiyya, o Pai da Revolução Islâmica..................................................... 79 8.4.1. Biografia........................................................................................................... 79 8.4.2. Pensamento.................................................................................................... 82 8.5. Muhammad ibn Abd al-Wahhab, o Fundador do Wahhabismo............ 86 8.5.1. Dados Biográficos........................................................................................ 86 8.5.2. Características e Expansão do Wahhabismo....................................... 91


Índice

8.6. Hassan al-Banna e a Irmandade Muçulmana (al-Ihkwan al-Muslimun). 99 8.7. Sayyid Abul Ala Mawdudi e o Jama’at-i-Islam............................................... 107 8.8. Ayatollah Ruhollah Khomeini e a Revolução Islâmica no Irão................. 112 8.9. O Decénio de 80........................................................................................................ 115 8.10. O Hamas e a Vitória nas Eleições Palestinianas............................................ 117 Referências Bibliográficas.................................................................................................. 124

9.

Terrorismo de Matriz Islâmica e Fundamentalismo Islâmico............................... 127 9.1. O Terrorismo de Matriz Islâmica........................................................................ 127 9.2. O Fundamentalismo Islâmico............................................................................... 130 9.3. A Atualidade................................................................................................................ 131 9.4. O “Estado” Islâmico.................................................................................................. 136 Referências Bibliográficas.................................................................................................. 141

10. Osama bin Laden e a Jihad Global................................................................................. 143 10.1. Jihad Global................................................................................................................. 143 10.2. Osama bin Laden e o Ódio ao Ocidente......................................................... 144 10.3. A Morte de Osama bin Laden.............................................................................. 148 Referências Bibliográficas.................................................................................................. 154 11. O Novo Mundo Árabe........................................................................................................ 155 11.1. As Revoltas Árabes................................................................................................... 155 11.1.1. Tunísia.............................................................................................................. 156 11.1.2. Egito................................................................................................................. 158 11.1.3. Síria................................................................................................................... 161 11.1.4. Líbia.................................................................................................................. 165 11.1.5. Bahrain............................................................................................................ 166 Referências Bibliográficas.................................................................................................. 170 Conclusão......................................................................................................................................... 171 Índice Onomástico....................................................................................................................... 175

VII



Introdução O mundo islâmico sempre exerceu um fascínio sobre o Ocidente. A existência de um universo completamente diferente do dos padrões ocidentais foi sempre um motivo de curiosidade e de interesse para os cientistas sociais ocidentais. Com os atentados do 11 de setembro de 2001 nos EUA, o mundo em geral despertou para a realidade muçulmana. O interesse por se estudarem e compreenderem as matérias relacionadas com esta temática recrudesceu consideravelmente; as palavras terrorismo e fundamentalismo passaram a fazer parte do vocabulário de muitos que habitam o chamado “Primeiro Mundo”. Isto tornou-se mais premente recentemente com os ataques em Paris, a 7 de janeiro de 2015, contra o jornal satírico Charlie Hebdo, e a 13 de novembro do mesmo ano. Ora, em algumas partes do mundo, o fundamentalismo religioso tem sido o meio para a progressiva mudança social, para a melhoria do bem-estar social dos membros mais pobres da sociedade e para o incremento da participação política por parte das massas. Noutras partes, serviu para mobilizar o apoio popular para causas conservadoras e para os esforços feitos no sentido de circunscrever ou abolir os direitos de certos elementos da comunidade política (Ferdows e Weber, 2003). Um dos factos mais importantes relativamente ao Islão é que não existe distinção entre as esferas secular e religiosa. O próprio Profeta Maomé estabeleceu em Medina um corpo governativo de regras e leis. Por causa disso, o fundamentalismo islâmico permaneceu sempre como uma força política latente; e um aspeto comum da missão dos movimentos islâmicos tem sido a sua ênfase no Islão, não apenas nos seus rituais e crenças, mas também no Islão como um movimento moral e social no sentido de estabelecer (ou restabelecer) a ordem islâmica (Ferdows e Weber, 2003). As ameaças à identidade étnica e à integridade sociopolítica das sociedades muçulmanas por parte do Dar-al-Harb – ou seja, o mundo da guerra, o mundo não muçulmano – têm levado os fundamentalistas a exortar as populações no sentido da restauração dos valores tradicionais e culturais, a qual funcionará como um mecanismo de defesa contra a ameaça externa. Estes fundamentalistas já não se consideram elementos subjugados aos efeitos devastadores da


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vida secular; pelo contrário, veem-se a si próprios como elementos capazes de retaliar e de lutar pela defesa e salvaguarda dos seus ideais. Por outro lado, a realidade tem mostrado que são as camadas jovens as mais permeáveis a estas atitudes fundamentalistas. Além disso, a baixa classe média e a classe baixa têm-se tornado as principais fontes de recrutamento para os movimentos fundamentalistas. Ora, se o processo de secularização e de ocidentalização tivesse levado aos países muçulmanos um poder renovado e a prosperidade que os seus ideólogos prometeram, talvez a fé no futuro tivesse sido melhor ao longo do século XX. Contudo, isso não aconteceu. Este processo não trouxe democracia, nem sequer uma maior distribuição da riqueza. Pelo contrário, deu a conhecer ao mundo muçulmano, as ditaduras, as tiranias, o governo de uma pequena elite em proveito próprio, subjugando as massas. Consequentemente, o pendor fundamentalista começou a ressurgir no seio das populações desiludidas com as expectativas que haviam criado. E, assim, o fundamentalismo islâmico renasce como um arquétipo político e não apenas como uma simples visão integrista da religião. Os fundamentalistas souberam transformar a lei islâmica num programa sistemático de ideais políticos e converteram-na numa verdadeira Constituição ideológica do século XX. Não obstante, o fundamentalismo islâmico é um fenómeno complexo. Por um lado, em termos históricos, tem-se apresentado como um veículo da expressão popular para esperanças e ansiedades derivadas de fatores culturais. Por outro, foi um canal para o confronto e a luta das sociedades muçulmanas durante o período pós-colonial. E embora o vocábulo fundamentalismo seja relativamente recente (data do início do século XX), as rotas dos movimentos fundamentalistas islâmicos encontram-se na própria história do Islão, tanto antiga como moderna. E com os recentes acontecimentos que têm assolado o mundo árabe, a questão do fundamentalismo islâmico volta a estar no centro do debate da comunidade internacional, já que a possibilidade dos fundamentalistas islâmicos voltarem a ocupar a sede do poder tem sido levantada em vários fora. Esta obra apresenta, num primeiro momento, uma abordagem geral ao Islão e, numa segunda parte, as principais características do fundamentalismo islâmico, bem como os movimentos conotados com o fenómeno do fundamentalismo.


9 Terrorismo de Matriz Islâmica e Fundamentalismo Islâmico Objetivos  Entender as diferenças entre fundamentalismo islâmico e terrorismo de matriz islâmica.

O mundo não é o mesmo desde a manhã de 11 de setembro de 2001. Perante a nossa estupefação e incredulidade, um absurdo brutal tornou-se um risco permanentemente possível em qualquer lugar e em qualquer país. O sentimento de uma nova e enorme vulnerabilidade passou a acompanhar-nos no quotidiano e a revolta perante o absurdo a ter o sabor amargo da incompreensão e da impotência. (Vilar, 2006:16)

9.1. O Terrorismo de Matriz Islâmica Hoje em dia, de uma forma errada, fundamentalismo e terrorismo são confundidos. Sobretudo desde os atentados de 11 de setembro de 2001, que o fundamentalismo islâmico é associado ao terrorismo de matriz islâmica. Todavia, são fenómenos diferentes, embora na sociedade atual sejam rapidamente associados, já que o 11 de setembro criou mais suspeitas relativamente à comunidade muçulmana do que qualquer outro acontecimento histórico o havia feito. Mas, o fenómeno do terrorismo não é algo recente. As suas rotas podem ser encontradas no primeiro século depois de Cristo, quando o grupo Sicarii começou a usar técnicas de terrorismo (terrorismo seletivo e terrorismo biológico) para se tentar libertar do domíFoi só após o Termidor, isto é, depois do nio romano, na região da Palestina. arrefecimento revolucionário, que o conNão obstante, a palavra “terrorismo” começou a ser usada, enquanto instrumento político ao serviço do Estado, durante a Revolução Francesa,

ceito de terrorismo se materializou depreciativamente, designando o Governo pelo medo e pela arbitrariedade, que se cristalizou no tempo e se perpetua no espaço. (Rogeiro, 2004:526)


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para denominar o período da ditadura jacobina, entre março de 1793 e julho de 1794. Na época, o termo referia-se a um regime de terror de um estado revolucionário e não apenas à luta de um grupo contra o Estado. Por outro lado, tinha uma conotação positiva, já que simbolizava o esforço feito para consolidar o poder do novo governo revolucionário; era um instrumento utilizado para restabelecer a ordem política no período de anarquia que se sucedeu à Revolução (Ferreira, 2006). Todavia, o uso que foi feito do terrorismo após a Revolução Fran­ cesa conferiu-lhe uma conotação negativa. Ao longo da história, as práticas de terror continuaram a ser usadas. Não obstante, a partir do decénio de 60 do século XX, o terrorismo foi-se alterando e assumindo novas formas. Deixou de estar confinado às fronteiras de um Estado e fez do mundo em geral o seu campo de batalha. Para além da aparência marcadamente europeia, o terrorismo assumiu uma faceta internacional.

As organizações terroristas passaram a ter capacidade para executar ataques em vários países e a receber apoio direto e indireto de vários Estados. As suas estruturas de comando e controlo e os seus campos de treino passaram a funcionar em vários países. Por outro lado, graças ao desenvolvimento moderno das comunicações, o terrorismo internacionalizou-se, reproduzindo-se mediaticamente e tornando-se num modo específico de comunicação. Com efeito, a relação «custo-benefício» criada pelos terroristas relativamente aos meios de execução e o impacto que o terrorismo tem na sociedade civil fazem deste uma arma de dissuasão. (Ferreira, 2006; Boniface, 2001)

O início do terrorismo como fenómeno internacional aconteceu pelas mãos da organização islâmica Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP). Através do sequestro de aeronaves de grandes companhias aéreas internacionais (em especial israelitas e americanas) e da utilização dos respetivos passageiros e/ou tripulação como reféns para fazer ouvir as suas reivindicações, a FPLP inaugurou, no final do decénio de 60, a era do aircraft hijacking (também denominado de aircraft piracy ou de skyjacking), método que acabaria por ser usado no 11 de setembro. A partir de então, os ataques de terrorismo internacional foram-se sucedendo. Com o fim do período da Guerra Fria, e consequente extinção do mundo bipolar, desvaneceu-se o controlo que os EUA e a ex-URSS tinham sobre


Terrorismo de Matriz Islâmica e Fundamentalismo Islâmico

ceta e que sofreu um upgrade – o autoproclamado “Estado”11 Islâmico, o novo rosto do terrorismo de matriz islâmica, cujo principal objetivo é reconstruir o Califado Islâmico, incluindo nele alguns territórios ocidentais, nomeadamente parte da Europa. Aquele que começou por autodenominar-se Islamic State of Iraq and the Levante (ISIL; em português, Estado Islâmico do Iraque e do Levante) passou depois a designar-se por Islamic State of Iraq and Syria (ISIS; em português, Estado Islâmico do Iraque e da Síria) e, em junho de 2014, para ser mais facilmente identificado com o seu objetivo final – a edificação de um Estado –, autoproclamou-se “Estado” Islâmico, com o propósito de restaurar o Califado Muçulmano, abolido na Turquia, como consequência da Primeira Guerra Mundial. Em termos de Ciência Política, Estado é uma entidade política que não reconhece entidade igual na ordem interna nem superior na ordem externa, sendo que, para existir, é necessária a convergência e a concentração de três elementos essenciais: povo, território e poder político (Lara, 2015: 168). Neste momento, o autoproclamado “Estado” Islâmico aparenta ter apenas território, ainda que não formalmente (oficialmente) definido e que vai aumentado ou diminuindo consoante os avanços ou recuos no terreno, resultantes do confronto quer com as forças sírias e iraquianas, quer com as forças ocidentais. Não tem povo, o elemento humano de um Estado, o conjunto de indivíduos que possuem a cidadania (nacionalidade) desse mesmo Estado. O que o autoproclamado “Estado” Islâmico tem é apenas um conjunto de indivíduos de várias nacionalidades, desde portugueses a holandeses, passando por sírios, iraquianos, sauditas, australianos ou, até mesmo, americanos – uma mescla de diferentes nacionalidades, não um povo! Com efeito, este grupo terrorista tem usado as identidades árabe e islâmica para conseguir o recrutamento de estrangeiros vindos, em especial, da Europa. Além de ganhar ainda mais combatentes, consegue, também, ferir o orgulho ocidental. De facto, os seus membros estão perfeitamente cientes do poder dos media e das redes sociais e têm feito uso desse poder a seu favor para divulgar a sua palavra e para recrutar. Todos estes fatores têm vindo a contribuir para o seu crescimento e amplificação de poder. 11

Optámos por colocar Estado entre aspas por não se tratar de um Estado, tal como o entendemos em Ciência Política.

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Por fim, poder político, tal como entendido em Ciência Política, o autoproclamado “Estado” Islâmico não tem! Tem apenas um poder autolegitimado e não reconhecido por nenhum Estado de Direito do mundo – um poder político usado despoticamente não só contra não muçulmanos, mas também contra outros muçulmanos não sunitas. Em suma, o autoproclamado “Estado” Islâmico não é um Estado! Trata-se apenas de um grupo militante jihadista, terrorista, com um objetivo político bem definido e que tem usado a religião para instrumentalizar as massas e conseguir um maior número de apoiantes para a sua causa.

9.4. O “Estado” Islâmico A origem conhecida do autoproclamado “Estado” Islâmico encontra-se na intervenção ocidental no Iraque, em 2003, o que levou a um “consórcio” de vários movimentos com ligação ao terrorismo de matriz islâmica e à Al-Qaeda, que se formou sob a liderança de Abu Musab al-Zarqawi e que foi sofrendo várias mutações. Alguns dos seus membros, depois da morte do seu líder, em 2006, entraram em rota de colisão com a então liderança da Al-Qaeda. Abu Bakr al-Baghdadi assumiu o lugar de al-Zarqawi, mas sempre discordando da “casa-mãe”. Depois da morte de Osama bin Laden, em 2011, a rutura foi ainda maior, dando-se continuidade ao projeto já pensado do ISIL. Contudo, apesar de apenas no ano transato o, então, ISIS ter ganhado destaque na cena internacional, já desde há vários anos que o grupo vinha a ganhar terreno na região do Médio Oriente, sofrendo, ao longo do tempo, várias mutações. A génese do Estado Islâmico pode encontrar-se no grupo Jama’at al-Tawhid wal-Jihad, movimento fundado, em 1999, por Abu Musab al-Zarqawi, na Jordânia, para depor o governo jordano. Além disso, este grupo teve um papel deveras importante na insurgência verificada no Iraque após a ocupação ocidental, em 2003. Em 2004, depois de se ter aliado à Al-Qaeda, al-Zarqawi alterou a denominação do grupo para Tanzim Qaidat al-Jihad Bilad al-Rafidayn, mais conhecido por Al-Qaeda no Iraque (AQI). Cerca de dois anos depois, surge o Estado Islâmico do Iraque (ISI), fruto da conjugação de vários outros grupos terroristas, que se juntaram aos dois referidos anteriormente, de entre os quais se destaca o Conselho Mujahideen


11 O Novo Mundo Árabe Objetivos  Identificar quais os motivos que permitem dizer que o mundo árabe está em mudança.  Compreender que possíveis soluções poderão ser avançadas para os regimes em queda.

Em 2011, começa, pela Tunísia, a revolução do Jasmim, que logo alastrou ao Egito, à Líbia, ao Iémen e contagiou outros países como o Bahrain, Oman, Jordânia e até Marrocos, com efeitos políticos de rutura ou ajustamento dos regimes. (Lara, 2011:317)

11.1. As Revoltas Árabes Com os tempos que correm e o rápido desenvolvimento dos acontecimentos no mundo árabe corremos o risco de este texto ficar desatualizado depois de colocarmos o último ponto final. De facto, desde 2011 que o mundo árabe está em mudança. O rastilho da Revolução do Jasmim que começou na Tunísia rapidamente se estendeu a outros Estados. Quatro regimes já caíram. Um outro parece estar próximo do fim. Quem se seguirá? Qual será o futuro do mundo árabo-muçulmano que conhecemos? O Ocidente corre o risco de conviver com a proximidade geográfica de regimes fundamentalistas islâmicos? Fazer futurologia é impossível, mas talvez se possa avançar com três cenários possíveis para os países que se encontram em convulsão:  No seguimento dos regimes derrubados, poderão ser instaurados regimes democráticos. Mas os valores democráticos dos novos regimes não podem ser impostos (de forma indireta) pelo Ocidente. O Ocidente não pode impor a “sua democracia” a estes países, mas pode convencê-los a “colocá-la em prática”, cada um à sua maneira.


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 Os atuais regimes poderão ser substituídos por novas ditaduras mascaradas de democracias.  Estes países poderão assistir à ascensão ao poder por parte dos movimentos radicais conotados com o fundamentalismo islâmico.

11.1.1. Tunísia A Tunísia foi, então, a precursora Habib Bourguiba tornou-se um dos lídedeste processo de mudança. Plantares mais coerentes e ocidentalizados do da no Norte de África e debruçada mundo árabe. A sua política alicerçou-se sobre o Mar Mediterrâneo, a Tunísia na convicção de que a ocidentalização parecia ser o verdadeiro exemplo de era necessária para conseguir a paridade um país secular no seio do mundo com o Ocidente. Ele sabia que um país tão muçulmano. Este posicionamento pequeno como a Tunísia não conseguiria geográfico facilitou o contacto com atingir a paridade militar, mas, ainda assim, poderia almejar alcançar a aceitação os valores ocidentais. Além disso, política e cultural por parte do Ocidente. tendo estado sob domínio francês (Noyon, 2003) durante mais de meio século, o país esteve sempre familiarizado com a ideia de Estado soberano, comum no Ocidente. Não admira, portanto, que o surgimento do sentimento nacionalista, nos finais do século XIX, tenha permitido aos tunisinos sonharem com a independência. Esta veio a concretizar-se, em 1956, pela mão de Habib Bourguiba, o Pai da Tunísia Moderna. Desta forma, com Bourguiba, nasceu um novo regime presidencial totalmente voltado para o Ocidente, tanto no aspeto social, como nos aspetos económico e político. De facto, desde o seu início como Estado independente, o país revelou uma clara tendência para a secularização das instituições estatais. Com Zine El Abidine ben Ali, que chegou ao poder em 1987, a Tunísia viveu cerca de 24 anos sob um regime ditatorial mascarado de democracia flexível. O culto da personalidade, tal como acontece noutros regimes, era preservado. A liberdade de associação política era duramente controlada. Ben Ali, aliado do Ocidente, controlava (como convinha) com mão de ferro os partidos conotados com o fundamentalismo islâmico. A população vivia uma liberdade


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Quando as manifestações começaram a exacerbar-se, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos enviaram as suas tropas para ajudar o regime a controlar os revoltosos (shiitas). Este ato foi rapidamente entendido como uma tentativa de demonstração da superioridade do poder saudita face ao seu rival do outro lado do Golfo Pérsico – o Irão. As manifestações que se seguiram no Bahrain foram interpretadas como a perpetuação da rivalidade entre os dois países. O Bahrain era o palco onde sunitas (Arábia Saudita) e shiitas (Irão) se confrontavam. Com efeito, a relação que a Arábia Saudita tem mantido com o Irão ao longo da história tem-se caracterizado por um certo clima de tensão, devido às diferenças religiosas e à luta pela influência no mundo islâmico, que datam já de há três séculos. De facto, não podemos esquecer a atitude de perseguição de Muhammad ibn Abd al-Wahhab aos shiitas, que considerava apóstatas devido à sua maneira de viver a religião. Por outro lado, este pensador puritano sempre exortou as populações no sentido de atacarem símbolos shiitas. Este clima de tensão entre ambos os países tornou-se mais premente após a Revolução Islâmica que levou o Ayatollah Khomeini ao poder, a 11 de fevereiro de 1979, uma vez que este acontecimento veio aumentar as diferenças religiosas entre os dois países: uma Arábia Saudita maioritariamente sunita e um Irão de maioria shiita. A partir da Revolução Islâmica, o Irão adotou a designação de República Islâmica e assumiu uma atitude antissaudita, apoiando as revoltas da minoria shiita que vive na província de Al-Qatif (leste da Arábia Saudita). Para o Ayatollah Khomeini era, pois, necessário lutar contra aquela “monarquia corrupta” que se deixava seduzir pelos ocidentais, em especial pelos EUA, o seu principal inimigo. Com a eclosão da Guerra Irão-Iraque, em 1980, os dois países afastaram-se ainda mais, uma vez que a Arábia Saudita expressou publicamente o seu apoio a Saddam Hussein. Como retaliação, o Irão incentivou os seus concidadãos a manifestarem-se contra o regime saudita durante o período de peregrinação nos anos que se seguiram, o que levou a que a Arábia Saudita, enquanto país anfitrião, restringisse o número de peregrinos iranianos, receando que os mesmos pudessem “inflamar” a minoria shiita saudita. Após a morte do Ayatollah Khomeini, em 1989, as relações entre os dois Estados não melhoraram e, apesar de terem existido alguns momentos em que

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a cordialidade foi restabelecida, a ligação entre os dois vizinhos do Golfo Pérsico será sempre ensombrada por dois importantes aspetos que é imprescindível não esquecer: A diferença de regimes – Uma República Islâmica, por um lado, e uma Monarquia sem instituições eleitas, por outro. A s divisões religiosas – O Irão de maioria shiita (89%) face a uma Arábia Saudita de maioria sunita (95%). Não obstante os esforços feitos por ambos os países nos últimos decénios, no sentido de pôr termo às rivalidades e de conseguirem estabelecer relações diplomáticas (aparentemente) estáveis que contribuam para a manutenção da estabilidade na região do Golfo Pérsico, o Irão tem vindo a adquirir, ao longo do tempo, alguns tipos de armamento que poderão pôr em causa o equilíbrio da região. Com efeito, nos últimos anos, o governo de Teerão tem vindo a ser acusado pela comunidade internacional, em geral, e pelos EUA, em particular, de possuir e produzir armas de destruição massiva. Embora argumente que é para consumo interno, a comunidade internacional encara com algum receio tal feito. De facto, os esforços iranianos no sentido de adquirir armas químicas, biológicas e nucleares têm-se intensificado nos últimos decénios. O Irão possui um número significativo de mísseis Scud, Scud de longo alcance norte-coreanos e mísseis chineses CSS-8. Adicionalmente, tem um vasto stock de armas químicas, incluindo os gases mostarda e de nervos, bem como agentes sanguíneos. Embora tenha adquirido equipamento para a manutenção dos agentes químicos, as suas capacidades e intenções neste campo permanecem pouco claras. O país tem um programa nuclear que data já do tempo de Muhammad Reza Shah Pahlavi e as suas capacidades de enriquecer este tipo de armamento parecem estar a aperfeiçoar-se. Simultaneamente, as armas de destruição massiva não parecem provocar quaisquer mudanças nas capacidades contingenciais iranianas. O sucesso do Irão na área da proliferação de armamento concede ao país uma posição de relevo face ao Iraque e, inevitavelmente, afeta a Arábia Saudita, os EUA, a Grã-Bretanha, Israel e a perceção dos riscos que poderão advir de um confronto militar direto com o Irão (Cordesman, 2003). Perante a escalada armamentista iraniana, a Arábia Saudita teme pela sua própria segurança e estabilidade. O uso destas armas por parte do Irão, para além


O Novo Mundo Árabe

de conduzir a um perigoso conflito no Médio Oriente, alteraria por completo o equilíbrio de poderes na região e poria em causa o papel que a Arábia Saudita sempre reivindicou para si: líder do mundo muçulmano. E a intervenção saudita no Bahrain serviu precisamente para impedir um possível avanço do Irão, já que o Bahrain, tendo uma população maioritariamente shiita (aproximadamente 70%), parece ser o principal aliado da República Islâmica do Irão na região. No início de 2015, o Reino da Arábia O Reino da Arábia Saudita lidera uma coliSaudita voltou a fazer uma intervengação de 10 Estados (Arábia Saudita, Jorção militar no território de um dos dânia, Emirados Árabes Unidos, Kuwait, seus vizinhos; desta vez, no Yémen. Bahrain, Qatar, Egipto, Paquistão, MarEm março, os sauditas lançaram rocos e Sudão do Norte) com o apoio diuma operação militar no vizinho plomático do Reino Unido, da França e da Turquia. do Sul para defender o regime do Presidente Abd Rabbuh Mansur Al-Hadi, sucessor do Presidente Ali Abdullah Saleh que, em 2012, foi afastado do poder na sequência da “Primavera” Árabe. Em fevereiro, o Presidente Hadi teve de refugiar-se em Aden (Sul do Yémen), depois de rebeldes shiitas do grupo Ansarruallah (conhecidos como Houthis) terem tomado a capital Sanaa. Para evitar mais um foco de instabilidade na Península Arábica, Riade interveio prontamente no sentido de defender o regime. Todavia, este apoio saudita ao Presidente Hadi poderá ter como consequência o apoio de Teerão aos rebeldes Houthis, fazendo reacender, assim, a rivalidade entre o Reino da Arábia Saudita e a República Islâmica do Irão. Podemos sintetizar as razões desta ingerência saudita em três pontos principais:  O Rei Salman Abdulaziz Al Saud, no poder apenas desde janeiro de 2015, quer manter a posição saudita de líder regional (em oposição ao Irão).  A intervenção saudita coincidiu com as negociações sobre o programa nuclear iraniano, pelo que a República Islâmica do Irão poderá abster-se de intervir no terreno na medida em que se quer afirmar como potência regional nuclear, deixando Riade à vontade nesta ação.  Devido à aproximação de Washington a Teerão, em virtude das negociações sobre o programa nuclear iraniano, Riade teme que essa aproximação torne

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ISBN 978-989-693-056-1

19/01/16 15:09


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