Manual de Intervenção Psicológica com Pessoas LGBTQIA+ (9789896931575)

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Gato

Manual de Intervenção Psicológica com Pessoas LGBTQIA+

Manual de Intervenção Psicológica com Pessoas LGBTQIA+

Uma Abordagem Individual, Familiar e Comunitária

Uma Perspetiva Individual, Familiar e Comunitária

Jorge
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ISBN edição impressa: 978-989-693-157-5

1.ª edição impressa: maio de 2024

Paginação: Carlos Mendes

Impressão e acabamento: Cafilesa – Soluções Gráficas, Lda. – Venda do Pinheiro

Depósito Legal n.º 531797/24

Capa: José Manuel Reis

Imagem de capa: © Lera Efremova/Adobe Stock Photo

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© PACTOR V Autoria ......................................................................................................................... IX Prefácio ......................................................................................................................... XIII Anne Marie Fontaine Nota Introdutória ........................................................................................................ XV Jorge Gato Capítulo 1 1 Identidades LGBTQIA+: Multidimensionalidade e Discriminação ao Longo da Vida Jorge Gato Introdução ..................................................................................................................... 1 1.1 Identidades LGBTQIA+: múltiplas dimensões ..................................................... 2 1.2 Preconceito e discriminação contra pessoas LGBTQIA+ .................................... 6 1.2.1 Da homofobia à cisheteronormatividade .................................................. 7 1.2.2 Discriminação de pessoas LGBTQIA+ ao longo da vida .......................... 10 1.2.2.1 Adolescência 10 1.2.2.2 Relacionamentos íntimos 11 1.2.2.3 Parentalidade 12 1.2.2.4 Pessoas com idade mais avançada 15 Considerações finais 17 Referências bibliográficas ............................................................................................. 18 Capítulo 2 29 Modelos de Compreensão e Intervenção Psicológica Individual com Pessoas LGBTQIA+ Daniel Seabra Introdução ..................................................................................................................... 29 2.1 Modelo do Stresse Minoritário ............................................................................. 30 2.1.1 Processos distais ...................................................................................... 31 2.1.2 Processos proximais 33 2.1.3 Fatores de proteção 35 2.2 Modelo da Mediação Psicológica 36 2.3 Modelo da Sensibilidade à Rejeição 37 2.4 Teoria da Segurança Social 37 2.5 Teoria da Intersecionalidade ................................................................................ 38 2.6 Intervenção afirmativa e princípios éticos com pessoas LGBTQIA+ ................... 39
Intervenções cognitivo-comportamentais afirmativas com pessoas LGBTQIA+ 42 2.7.1 Terapia da Aceitação e do Compromisso ................................................. 44 2.7.2 Terapia Focada na Compaixão ................................................................. 49 Considerações finais 54 Entrevista a especialista (Niki Petrocchi) .................................................................. 54 Referências bibliográficas 57 Índice
2.7

Relações Estabelecidas por Pessoas LGBTQIA+: Para uma Intervenção Afirmativa com Casais

Miguel Francisco Filipe e Luana Cunha Ferreira

3.1 Semelhanças e diferenças entre casais do mesmo género e casais de género diferente ...............................................................................................................

3.2 Especificidades dos casais do mesmo género

3.2.1 Dinâmicas relacionadas com o género: negociação de papéis e poder 69

3.2.2 Experiências de estigma: Teoria do Stresse Minoritário ao Nível do

3.3 Experiências das pessoas com uma identidade plurissexual e das pessoas com uma identidade trans ou não-binária em relacionamentos íntimos .............

3.3.1 Pessoas bissexuais ou pansexuais em relacionamentos íntimos ............

3.3.2 Pessoas trans ou não-binárias em relacionamentos

3.4 Terapia Familiar e de Casal: para uma intervenção afirmativa com casais do mesmo género .....................................................................................................

3.4.1 Terapia Familiar e de Casal Afirmativa: competências-chave para a intervenção com casais constituídos por pessoas LGBTQIA+

Famílias Formadas por Pessoas LGBTQIA+ com Filhos/as

Carolina Monteiro Biasutti e Daniela Leal

4.3 Vias para a parentalidade .....................................................................................

4.4 Famílias LGBTQIA+ com filhos/as

4.4.1 Famílias LGBTQIA+ com filhos/as pela via da adoção

4.4.2 Famílias LGBTQIA+ com filhos/as a partir de técnicas de reprodução assistida

4.5 Intervenção Clínica e Psicossocial Afirmativa com famílias LGBTQIA+

4.5.1 Modelo Concetual da Resiliência Familiar

Manual de Intervenção Psicológica com Pessoas LGBTQIA+ VI Capítulo 3 65
Introdução 65
66 3.1.1 Intimidade ................................................................................................. 67 3.1.2 Sexualidade .............................................................................................. 67 3.1.3 Exclusividade ............................................................................................ 68
Comunicação 68
3.1.4
69
71
Casal
79
79
81
íntimos ...................
84
86 Considerações finais 100 Entrevista a especialista (Luana Cunha Ferreira) ..................................................... 100 Referências bibliográficas 103 Capítulo 4 111
Introdução ..................................................................................................................... 111
Portugal .... 112 4.2
113
116
117
4.1 Breve panorama legal sobre os direitos das famílias LGBTQIA+ em
Parentalidade prospetiva......................................................................................
120
122
124
124
129 Considerações finais ..................................................................................................... 130 Entrevista a especialista (Fiona Tasker) .................................................................... 132 Referências bibliográficas ............................................................................................. 135
4.5.2 Mapas Familiares ......................................................................................

Jovens LGBTQIA+ na Escola

5.1 O desenvolvimento das identidades LGBTQIA+ .................................................

5.1.1 Modelo de Formação da Identidade Homossexual de Vivienne Cass .....

5.1.2 Modelo de Desenvolvimento da Identidade Trans de Nuno Pinto e Carla Moleiro

5.1.3 Desenvolvimento das identidades plurissexuais

5.2 Jovens LGBTQIA+ e experiências escolares

5.2.1 Portugal: enquadramento legal e o “plano da realidade” .........................

5.2.2 Clima escolar e bem-estar de jovens LGBTQIA+ em Portugal ................

5.2.3 Principais fatores de risco em contexto escolar .......................................

5.2.4 Principais fatores protetores no contexto escolar ....................................

5.2.5 Especificidades de jovens trans, com identidades não binárias, e intersexo

5.3 Recursos e materiais

5.3.1 Políticas

5.3.4 Outros

6.1 Experiências das pessoas LGBTQIA+ no contexto de trabalho

6.1.1 Sobre as condições prévias à entrada no mercado de trabalho

6.1.2 Sobre a procura de emprego

6.1.3 Sobre as condições e experiências no local de trabalho

6.1.3.1 Discriminações formais ..............................................................

6.1.3.2 Discriminações interpessoais.....................................................

6.1.4 Sobre a gestão das identidades LGBTQIA+ no contexto de trabalho ..... 182

6.1.5 Sobre o processo afirmativo de género concomitante ao exercício profissional 185

6.2 Recursos e estratégias pessoais, comunitários e laborais para lidar com a discriminação

6.2.1 Estratégias pessoais

6.2.2 Estratégias comunitárias...........................................................................

6.2.3 Estratégias das entidades empregadoras ................................................

Índice © PACTOR VII Capítulo 5 143
Fernandes
Introdução
143
Telmo
e Daniela Leal
.....................................................................................................................
144
144
145
147
147
148
150
151
153
156
157
inclusivas ativas 158
159
5.3.2 Serviços de apoio a estudantes................................................................
160
5.3.3 Alianças nas escolas .................................................................................
recursos
iniciativas
161 Considerações finais ..................................................................................................... 162 Entrevista a especialista (Stephen Russell) .............................................................. 163 Referências bibliográficas 166 Capítulo 6 171 Pessoas LGBTQIA+
Pedro J. Teixeira Introdução ..................................................................................................................... 171
e
.....................................................................
no Contexto de Trabalho
172
173
174
177
178
179
186
186
188
192 Considerações finais ..................................................................................................... 194 Entrevista
especialista
194 Referências bibliográficas 197 Índice Remissivo .......................................................................................................... 203
a
(Ignacio Pichardo) .............................................................

AutoriA

Coordenador e Autor

Jorge Gato

Doutorou-se em Psicologia na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, com uma tese sobre famílias formadas por pessoas LGBTQIA+. Terapeuta Sistémico e Familiar pela Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar e Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde pela Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), com especialidade avançada em Psicoterapia. Fez parte do grupo de trabalho nomeado pela OPP para redigir as Linhas de Orientação para a Prática Profissional no Âmbito da Intervenção Psicológica com Pessoas LGBTQ. Investigador no Centro de Psicologia da Universidade do Porto. Os seus interesses de investigação repartem-se pela Psicologia LGBTQ+, Família e Género, assuntos sobre os quais tem publicado a nível nacional e internacional. Está convicto de que os/as psicólogos/as têm um papel imprescindível na sociedade contemporânea, quer a nível da promoção da mudança pessoal, quer da mudança social. Nesta medida, além do trabalho clínico e de investigação, intervém ativamente na defesa dos direitos humanos das pessoas LGBTQ+.

Autoria

Carolina Monteiro Biasutti

Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Mestre e Doutora em Psicologia do Desenvolvimento pelo Programa de PósGraduação em Psicologia da UFES, com período de doutoramento sandwich na Universidade do Porto. Atuou como Psicóloga Hospitalar em Unidade de Terapia Intensiva Neonatal e Pediátrica (UTIN/UTIP) e como Docente na Faculdade Multivix Serra. Atualmente, desempenha a sua prática profissional como Psicóloga Clínica. Os seus interesses de investigação dizem respeito ao desenvolvimento humano, principalmente nos seguintes temas: desenvolvimento infantil, famílias, parentalidade, relações entre pais/mães e filhos/as, fatores de risco e de proteção para o desenvolvimento e resiliência na família. Acredita que as diferentes composições e arranjos familiares possuem valiosas experiências que devem ser partilhadas, e que o papel dos/as psicólogos/as, na prática clínica e profissional, é desmistificar estigmas e auxiliar na promoção de mudanças a nível individual e cultural na sociedade, tornando-a um espaço seguro e mais acolhedor para as diversas formas de expressão humana.

© PACTOR IX

Daniel Seabra

Obteve um mestrado em Intervenções Cognitivo-Comportamentais nas Perturbações Psicológicas e de Saúde, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra. Atualmente, é Doutorando em Psicologia Clínica na mesma instituição com um projeto relacionado com pessoas LGB+ e saúde mental. É Psicólogo Clínico reconhecido pela Ordem dos Psicólogos Portugueses (C.P.: 21077) e Formador nas áreas da Diversidade Sexual e de Género. Participou ainda em alguns projetos relacionados com as pessoas LGBTQIA+ e suas especificidades.

Daniela Leal

Doutorada em Psicologia pela Universidade do Porto, Investigadora e Psicóloga Clínica. Os seus interesses de investigação e intervenção focam-se na Diversidade Sexual e de Género nos contextos familiar, escolar e de intervenção clínica. É, atualmente, Presidente da organização não governamental It Gets Better Portugal e Formadora na Especialização Avançada Pós-Universitária em Intervenção Psicossocial Afirmativa com Pessoas LGBTQ+ no Instituto Português de Psicologia e Outras Ciências (INSPSIC). Autora de publicações científicas nacionais e internacionais, bem como de guias de intervenção nestas temáticas.

Luana Cunha Ferreira

Psicóloga Clínica, Terapeuta Familiar e Docente na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa. Doutorada em Psicologia Clínica e da Família pelas Universidades de Lisboa e Coimbra. Passou pela Universidade de Madison –Wisconsin (Estados Unidos da América) e Universidade de Manchester (Reino Unido). Em Nova York, colaborou ativamente no City College of New York e no Ackerman Institute for the Family, com destaque na colaboração com a Terapeuta de casais Esther Perel. Formadora, Supervisora Clínica, é Cofundadora da Associação Casa Estrela do Mar, Oradora TedX e Autora do livro Sete Casais em Terapia (Editora Ego), com diversas contribuições em publicações científicas.

Miguel Francisco Filipe

Psicólogo Clínico, com um Curso Avançado de Intervenção Psicológica em Públicos LGBTI pelo Instituto CRIAP e um Curso Avançado de Aconselhamento em Saúde Sexual e Reprodutiva pela Associação para o Planeamento da Família (APF). Iniciou a sua prática clínica na Associação Casa Estrela do Mar, onde continua a trabalhar atualmente, assim como na Clínica Social da Casa Qui e em clínica privada. Tem experiência de intervenção nos formatos de psicoterapia individual com adolescentes e adultos e também de terapia familiar e de casal. Além da experiência clínica, tem colaborado pontualmente em alguns projetos de investigação nacionais e internacionais e tem experiência enquanto formador.

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Manual de Intervenção Psicológica com Pessoas LGBTQIA+

Pedro J. Teixeira

Psicólogo, Sexólogo e Terapeuta Sexual pela Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica. Frequenta o Programa Doutoral em Sexualidade Humana da Universidade do Porto e é Bolseiro de Investigação FCT/EUGLOH no Centro de Psicologia da mesma universidade, estando a desenvolver um projeto sobre diversidade e inclusão de pessoas LGBTQIA+ no contexto de trabalho. Tendo trabalhado nos últimos anos na área da Justiça, que corresponde a um dos seus interesses profissionais basilares, tem investido no aprofundamento de conhecimentos e na prática clínica na área abrangente da Sexualidade Humana, com especial enfoque em tópicos relacionados com identidade sexual e de género, numa abordagem intersecional.

Telmo Fernandes

Licenciado em Sociologia e Mestre em Ciências da Educação pela Universidade do Porto. Durante uma década, trabalhou num centro de desenvolvimento local nas áreas da Educação e Formação de populações adultas carenciadas e como Gestor de uma iniciativa de apoio ao empreendedorismo feminino. Foi Formador de áreas como Cidadania, Igualdade de Género, Voluntariado e Educação para a Diversidade Sexual e de Género. Colaborou durante mais de duas décadas com organizações não governamentais nacionais e internacionais que atuam na área LGBTQIA+. Dedicou-se particularmente a questões relacionadas com a juventude, clima escolar, mobilização comunitária e políticas inclusivas, tendo sido responsável por um projeto de diagnóstico e intervenção contra a violência na intimidade e no trabalho sexual de mulheres lésbicas, bissexuais e trans. Entre 2015 e 2023, foi responsável pelo relatório anual do Observatório da Discriminação Contra Pessoas LGBTI+ em Portugal, e colaborou com organizações internacionais como a ILGA-Europe e a IGLYO – International Lesbian, Gay, Bisexual, Transgender, Queer & Intersex Youth and Student Organisation neste âmbito. Atualmente, é Doutorando no Centro de Psicologia da Universidade do Porto, onde investiga fatores protetores do bem-estar e da saúde mental de jovens com identidades sexuais e de género minorizadas em contexto escolar.

Autoria © PACTOR XI

Apesar das notícias relativas aos direitos e reivindicações da comunidade LGBTQIA+ serem frequentes na comunicação social, a dificuldade em separar a informação fiável, comprovada e rigorosa da fantasista e falsa é particularmente evidente neste caso. Este livro é especialmente importante porque ajuda a compreender que tal dificuldade deriva da adesão social a um sistema de crenças perpetuador de estereótipos estigmatizantes desta comunidade.

Jorge Gato está particularmente bem posicionado para coordenar este Manual de Intervenção Psicológica com Pessoas LGBTQIA+: Uma Abordagem Individual, Familiar e Comunitária. Ao longo da sua vasta experiência, tem conseguido unir rigor e integridade nas suas investigações, reconhecidas nacional e internacionalmente, com intenso envolvimento na intervenção psicológica. Está ciente que qualquer intervenção deve estar baseada em evidências científicas e, além disso, situar-se numa perspetiva sistémica, atuando simultaneamente a vários níveis. A sua experiência profissional abrange os diversos níveis do ecossistema: o macro, com intervenções políticas, o meso, com intervenções em instituições sociais, educativas e de saúde, e o micro, directamente com a população LGBTQIA+ e as suas famílias.

Esta obra oferece, assim, um sólido quadro teórico relativo à população LGBTQIA+, baseado em investigações nacionais e internacionais de qualidade. Define conceitos-chave no domínio, salienta a diversidade de problemáticas enfrentadas por esta população e especifica os processos de desenvolvimento das pessoas envolvidas, bem como as suas causas e consequências. Além disso, inclui um amplo leque de estratégias de intervenção: individual, familiar (conjugal e parental) e comunitária, nomeadamente em contextos escolares e profissionais. As diversas estratégias são apresentadas por especialistas com ampla experiência de investigação e intervenção no domínio.

Os resultados de investigação são unânimes em realçar o facto desta comunidade ser alvo de discriminação, tanto em Portugal como noutros países, apesar da legislação portuguesa ser das mais avançadas da Europa. O quadro teórico do “stresse minoritário” evidencia o preconceito e o estigma de que são alvo as pessoas com “identidades sexuais e de género minorizadas”. Este stresse é único, crónico e persistente ao longo da vida e manifesta-se simultaneamente a nível distal e proximal, o que permite compreender o seu impacto no desenvolvimento psicológico, na saúde e no bem-estar destas pessoas. Este estigma é uma forma de stresse acrescido a outras formas de discriminação associadas à etnia e à classe social, entre outras.

© PACTOR XIII
Prefácio

A perceção de que a discriminação, apesar de ser devida a causas estruturais, influencia o desenvolvimento de cada um, tem consequências para a intervenção. De facto, as normas e valores de referência dos/as profissionais de intervenção, as suas convicções, atitudes e grelhas de análise, que adotam espontaneamente, foram desenvolvidas no decorrer da socialização numa sociedade que manifesta este tipo de discriminação face às pessoas LGBTQIA+.

Deste facto derivam várias consequências para a intervenção com a população LGBTQIA+. Os/as profissionais que apoiam as pessoas LGBTQIA+ arriscam-se a orientar inconscientemente a sua intervenção em função de objetivos cisgénero e heteronormativos, visto ser esta a grelha de análise dominante na nossa sociedade. Uma tomada de consciência dos seus próprios preconceitos e pressupostos constitui um pré-requisito indispensável para evitar que sejam agentes de discriminação e estigmatização em intervenções com pessoas adolescentes, adultas ou idosas com identidade sexual ou de género minorizada.

Por outro lado, sendo estruturais as causas da discriminação, esta manifesta-se simultaneamente em diversos níveis e em vários contextos: familiar, escolar, profissional e comunitário. Os profissionais não se podem limitar a intervenções individuais, sendo indispensável intervir simultaneamente nos diversos níveis do ecossistema.

É de realçar que a necessidade de reconhecimento, respeito e aceitação das diferentes manifestações das características humanas é transversal nesta obra. Manifesta-se também no interior do grupo de pessoas com identidade sexual e de género minorizadas, que, de facto, não constitui uma categoria homogénea, existindo subgrupos mais vulneráveis do que outros. O reconhecimento desta heterogeneidade é essencial quando se trata de escolher as formas de intervenção mais adequadas para cada subgrupo e em cada contexto.

A riqueza das informações apresentadas e o leque de estratégias de intervenção, já experimentadas por profissionais experientes, constituem um recurso inestimável para quem intervém junto de populações com identidades sexuais e de género minorizadas. Pode também ser de grande utilidade para intervir noutras formas de discriminação ainda prevalentes na nossa sociedade. Esta obra contribui para a construção de uma sociedade mais inclusiva e acolhedora, onde cada pessoa possa integrar-se, sem renunciar à expressão da sua singularidade.

Anne Marie Fontaine Professora Emérita da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto abril de 2024

Manual
LGBTQIA+ XIV
de Intervenção Psicológica com Pessoas

notA introdutóriA

De acordo com um inquérito recente1, 7% das pessoas em Portugal têm uma identidade LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, trans, queer, intersexo, assexuais e outras identidades sexuais e de género minorizadas)2. Esta percentagem é claramente inferior à média reportada nos 30 países inquiridos (9%) e corresponde a metade das pessoas com estas identidades na vizinha Espanha (14%). Sendo a amostra espanhola representativa da sua população e a amostra portuguesa tendencialmente urbana e instruída, mais contrastantes podem ser considerados os números reportados nestes dois países. As razões para estas diferenças radicam, muito provavelmente, em condições sociais que permitem (ou não) a expressão e a visibilidade destas identidades nos países considerados. De facto, como se verá no primeiro capítulo deste livro, as pessoas LGBTQIA+ são menos visíveis e relatam níveis mais elevados de discriminação em Portugal, comparativamente com muitos outros países da Europa Ocidental.

A discriminação tem efeitos perniciosos no bem-estar e na saúde física e mental das pessoas, famílias e comunidades LGBTQIA+. Nesta medida, é urgente a divulgação de conhecimento científico sistematizado, quer acerca dos riscos e desafios enfrentados por estas pessoas, quer dos recursos e fatores de proteção de que podem dispor. Um dos recursos mais valiosos que podemos oferecer a esta população são as chamadas intervenções culturalmente competentes e afirmativas. Estas intervenções não patologizam nem problematizam as identidades LGBTQIA+, considerando-as antes expressões da diversidade sexual e de género humana. Pelo menos no campo da Psicologia, a necessidade de intervenções culturalmente competentes e afirmativas já se encontra plasmada no Código Deontológico da profissão. Mais concretamente, no Princípio 5.5, referente à não discriminação, pode ler-se que “Os/as psicólogos/as não discriminam os seus clientes em razão de qualquer tipo de factor ou condição”. Já no princípio seguinte, refere-se que:

Quando desenvolvem uma prática dirigida a populações minoritárias, os/as psicólogos/as procuram obter conhecimento profissional e científico relevante para intervir de forma ética e eficaz, adequando as suas intervenções a fatores

1 O inquérito desenvolvido pela consultora IPSOS (2023) entrevistou um total de 22 514 pessoas adultas em 30 países. Note-se que as amostras do Brasil, Chile, Colômbia, Irlanda, México, Peru, Portugal, Roménia, Singapura, África do Sul, Tailândia e Turquia eram mais urbanas, mais instruídas e/ou mais ricas do que a população em geral. Os resultados do inquérito para estes países devem ser vistos como um reflexo das opiniões de um segmento mais privilegiado da população.

2 Ao longo deste livro, as designações “identidades sexuais e de género minorizadas” e o acrónimo “LGBTQIA+” serão utilizados de forma equivalente.

© PACTOR XV

conhecidos associados à idade, sexo, orientação sexual, identidade de género, etnia, origem cultural, nacionalidade, religião, língua, nível socioeconómico, capacidade ou outros [destacado nosso].

A nosso ver, estas orientações aplicam-se a qualquer área de atuação cujo intuito seja o de promover o bem-estar das pessoas LGBTQIA+ ao longo do seu ciclo de vida e em diversos contextos, como sejam a saúde, a educação ou o trabalho.

As competências de intervenção afirmativas abarcam três aspetos distintos: aquisição de conhecimento científico atualizado sobre os desafios específicos associados à pertença a grupos vulnerabilizados; adaptação das técnicas de intervenção às especificidades desses grupos; e promoção da reflexão sobre atitudes e valores pessoais face a grupos minorizados. É neste âmbito que propomos o presente Manual de Intervenção Psicológica com Pessoas LGBTQIA+: Uma Perspetiva Individual, Familiar e Comunitária

Perante a escassez de livros em língua portuguesa sobre a temática e após diversas solicitações de públicos formativos, decidimos dar à estampa esta obra, com o objetivo principal de disseminar conhecimento científico atualizado sobre as pessoas LGBTQIA+ ao longo do seu ciclo de vida e em diversos contextos, articulando modelos de compreensão e modelos de intervenção. O manual tem em consideração as especificidades do contexto português (e.g., aspetos legais e culturais), elencando também um conjunto de recursos e materiais didáticos sobre as temáticas tratadas. Cada capítulo é ainda complementado com uma pequena entrevista a uma pessoa especialista no domínio abordado.

O livro tem a nossa coordenação e a coautoria de jovens investigadores/as que connosco têm trabalhado ao longo dos últimos anos e que se têm especializado em diversos modelos de compreensão e intervenção com pessoas, famílias e comunidades LGBTQIA+. O primeiro capítulo, da nossa autoria, introduz os consensos científicos atuais acerca das características sexuais, orientações sexuais e identidades de género minorizadas, sublinhando o seu caráter multidimensional, desenvolvimental, fluido e intersecional. Neste capítulo, é ainda apresentada uma análise concetual sobre o preconceito e a discriminação contra as pessoas LGBTQIA+ e caracterizada a discriminação de que são potencialmente vítimas em diferentes momentos do seu ciclo vital.

No segundo capítulo, da autoria de Daniel Seabra, são apresentados modelos teóricos de compreensão dos fatores de vulnerabilidade e de resiliência das pessoas LGBTQIA+. Numa lógica de intervenção psicológica individual, são listadas, em primeiro lugar, as características das intervenções culturalmente competentes e afirmativas, bem como os princípios éticos que devem pautar o trabalho com pessoas com identidades sexuais e de género minorizadas; em segundo lugar, são

Manual
LGBTQIA+ XVI
de Intervenção Psicológica com Pessoas

apresentadas duas intervenções cognitivo-comportamentais desenhadas para estes/as clientes. O capítulo termina com uma entrevista a Niki Petrocchi, especialista em Psicoterapia com pessoas LGBTQIA+.

A vida relacional das pessoas com identidades sexuais e de género minorizadas tem sido alvo de atenção crescente. Assim, além de modelos de compreensão e programas de intervenção individuais, são da maior importância as abordagens que se debruçam sobre a esfera dos relacionamentos familiares. No terceiro capítulo, Miguel Francisco Filipe e Luana Cunha Ferreira caracterizam as experiências das pessoas LGBTQIA+ em relacionamentos íntimos, abordando também algumas adaptações dos modelos de Terapia Familiar e de Casal para uma intervenção afirmativa com casais e famílias constituídos por estas pessoas. Dado o enfoque psicoterapêutico do capítulo, é ainda apresentado um caso clínico ilustrativo. A especialista entrevistada é Luana Cunha Ferreira, coautora do capítulo e terapeuta de casal e familiar sistémica com larga experiência na investigação e intervenção nos relacionamentos íntimos de pessoas LGBTQIA+.

A parentalidade exercida no âmbito das famílias formadas por pessoas LGBTQIA+ é a temática principal do quarto capítulo, de Carolina Biasutti e Daniela Leal. As autoras começam por traçar um panorama legal dos direitos destas famílias em Portugal, explorando, em seguida, os percursos parentais das pessoas com identidades sexuais e de género minorizadas, desde a parentalidade prospetiva até à diversidade de vias para a concretização dos seus projetos parentais. No campo da intervenção, é proposto um modelo de resiliência familiar e descrita uma técnica de avaliação/intervenção afirmativa – os Mapas Familiares. A especialista entrevistada, Fiona Tasker, é uma académica e pioneira no estudo das famílias formadas por pessoas LGBTQIA+.

O caráter estrutural da discriminação torna as intervenções comunitárias indispensáveis. Nesta medida, os capítulos finais são dedicados a dois importantes contextos de intervenção: a escola e o trabalho. No quinto capítulo, Telmo Fernandes e Daniela Leal debruçam-se sobre os modelos de desenvolvimento das identidades sexuais e de género minorizadas; sobre a evolução do sistema educativo português no que diz respeito à proteção de jovens LGBTQIA+; e sobre as suas experiências escolares negativas e positivas. São também apresentados recursos e materiais para o trabalho comunitário escolar com jovens LGBTQIA+. O capítulo encerra com uma entrevista a Stephen Russell, académico especialista em adolescentes com identidades sexuais e de género minorizadas.

O sexto e último capítulo, escrito por Pedro J. Teixeira, aborda as questões da discriminação e do bem-estar das pessoas LGBTQIA+ no local de trabalho. O autor começa por examinar as condições prévias à entrada no mercado de trabalho, abordando depois a gestão das identidades LGBTQIA+ no emprego, com um enfoque particular no processo afirmativo de género das pessoas trans. Tal como no capítulo anterior, são sugeridos recursos e estratégias pessoais, comunitários,

Nota Introdutória © PACTOR XVII

laborais e legais para lidar com a discriminação na esfera laboral. O especialista entrevistado é Ignacio Pichardo-Galán, académico que coordenou um dos maiores estudos a nível mundial sobre a diversidade sexual e de género no local de trabalho.

Para finalizar, gostaríamos de destacar que este livro se dirige não apenas a profissionais e estudantes da área da Psicologia, mas também de outras áreas afins de intervenção social e comunitária (Serviço Social, Ensino, Sociologia, Educação Social, entre outras) e, ainda, ao público em geral. Que este manual seja útil a todas as pessoas que por ele se interessarem e, sobretudo, às pessoas, famílias e comunidades LGBTQIA+.

XVIII
Manual de Intervenção Psicológica com Pessoas LGBTQIA+

■ Reflexividade sobre o self – a reflexividade da pessoa interventora é um imperativo ético na formação e na prática dos interventores sistémicos e terapeutas familiares e de casal e, embora seja um tema frequente, raramente o é com um cariz de desafiar as normas cisheteronormativas e brancas internalizadas pela pessoa interventora através do seu desenvolvimento pessoal, relacional e profissional.

Estudo de caso Bia e Alex – À procura de uma imagem de casal

How do lesbian women sexually thrive when we were “never meant to survive”?

Iasenza (2002, p. 2)

Nesta secção, será descrito, de forma breve, um caso clínico9 referente ao processo de Terapia Familiar e de Casal de um casal do mesmo género, ilustrando alguns dos temas, das estratégias e das abordagens previamente endereçados neste capítulo. De modo a facilitar a leitura, optou-se por não destacar no corpo do texto referências bibliográficas, mas sim técnicas e estratégias especificas da Terapia Familiar e de Casal sistémica, assim como citações diretas das clientes, tal como foram recordadas pela terapeuta, por forma a tornar presente as suas vozes.

Ato I – Encontro

A primeira sessão de Terapia Familiar e de Casal foi marcada por iniciativa de Alex, gestora de redes sociais e a parceira mais jovem (37 anos) deste casal de mulheres cis. Bia, consultora de mercados, de 43 anos, iniciou a relação com Alex há três anos, e coabitam desde os seis meses de relação. Logo na primeira mensagem enviada a solicitar Terapia Familiar e de Casal, Alex referiu que precisavam de “ajuda urgente por conflitos frequentes e a falta de desejo sexual”. A partir deste momento, todas as mensagens foram sempre partilhadas entre todas – terapeuta e clientes. As sessões iniciaram-se na semana seguinte, através de uma plataforma online e com periodicidade quinzenal. A terapeuta deste caso clínico é uma mulher cis, de 41 anos, queer 10

Na primeira sessão, após a introdução à sessão, a terapeuta, por forma a dar voz à parceira que não tinha efetuado o pedido de acompanhamento, ofereceu o primeiro espaço da sessão a Bia, pedindo-lhe que partilhasse a visão quanto ao motivo para este pedido de terapia de casal. Bia é uma pessoa racializada, com um rosto redondo e expressão carinhosa e ocupa o espaço de forma determinada, com a sua fala

9 Por questões de confidencialidade e proteção da intimidade das clientes, este caso é fictício, mas apenas no sentido em que não se reporta a um caso em particular, mas a uma reconstituição de vários recortes de casos clínicos verídicos, dentro desta temática.

10 Psicóloga clínica e terapeuta familiar. A terapeuta não teve acesso, em nenhuma vertente da sua educação formal de base (licenciatura, mestrado, doutoramento ou especialização em Terapia Familiar e de Casal), a informação técnica sobre questões LGBTQIA+ ou terapia afirmativa, tendo procurado autonomamente, ao longo da vida profissional, formações específicas na área, assim como bibliografia e supervisão.

Relações Estabelecidas
LGBTQIA+:
uma Intervenção Afirmativa com Casais © PACTOR 89
por Pessoas
Para

assertiva e corpo robusto e musculado. Sem tempo a perder, Bia afirma que sempre percebeu que Alex era uma pessoa ansiosa, mas que nos últimos tempos esta ansiedade estava a tomar conta da relação, transbordando quaisquer mecanismos de contenção que Alex, ou mesmo a própria Bia, pusessem em prática. Alex, cabisbaixa, concordou silenciosamente, e Bia continuou explicando que a ansiedade de Alex estava a saturar a relação e que ultimamente os conflitos eram constantes, com consequências graves para a estabilidade e intimidade do casal. Alex concordou em parte, afirmando que apesar da sua ansiedade potenciar alguns conflitos, uma boa parte destes “eram provocados” por Bia quando se sentia rejeitada, explicando que, desde há seis meses, não sentia vontade de se envolver sexualmente com Bia. Assim, no final da primeira sessão foi encontrada uma plataforma partilhada relativamente à definição do problema11 – “sentimo-nos cada vez mais afastadas a vários níveis e não nos conseguimos apoiar ou entender” –, embora Bia destacasse mais os contributos da ansiedade de Alex e Alex a conflituosidade de Bia, especialmente quando era sexualmente rejeitada. Nesta primeira sessão, foram brevemente exploradas as soluções tentadas (relativamente às discussões, tentam não ir para a cama zangadas ou interromper a discussão, para não ficarem sem falar durante dias; quanto à frequência sexual, Bia tenta tomar a iniciativa e Alex tenta controlar a ansiedade quando pensa nas iniciativas de Bia), que neste caso se constituem especificamente como “más soluções”, no sentido em que contribuem para padrões de comportamento que mantêm o problema. Foram também brevemente explorados alguns recursos do casal, a nível individual (Bia – excelente rede social de apoio, muitas atividades sociais, trabalho é fonte de prazer; Alex – mantém acompanhamento psicológico, comunicação assertiva, tem várias atividades criativas e desportivas, como a cerâmica e a dança), relacional (partilham do gosto pela dança e efetivamente ainda dançam, partilham do mesmo sentido de humor peculiar, têm excelentes memórias da sua vida em conjunto e o sexo, quando acontece, é por ambas considerado muito satisfatório) e contextual (vida financeiramente estável, boa integração na comunidade e rede social, residência em bairro urbano “LGBTQIA+ friendly”). Tendo sido detetada uma marcada frequência, severidade e impacto de discussões de casal, no final da primeira sessão a terapeuta efetuou a primeira prescrição para casa – um limite de tempo para as discussões, de 15 minutos. Esta prescrição visava:

■ Avaliar as competências de gestão emocional individual e diádica;

■ Verificar a flexibilidade e permeabilidade à mudança;

■ Validar a disponibilidade e as capacidades do casal para aderir a propostas da terapeuta.

Ao longo das sessões iniciais, de frequência quinzenal, foram naturalmente explorados alguns temas clássicos das escolas de Terapia Familiar e de Casal – tais como as narrativas do casal quanto à sua história relacional e familiar, ao desenvolvimento da sua relação, particularmente quanto à intimidade emocional e sexual, aos papéis que ocupavam na relação e aos principais padrões de comportamento potenciadores de conflito. No entanto, os temas emergentes neste processo terapêutico foram sistematicamente enquadrados numa lente afirmativa(83) de questionamento, identificação, avaliação e desconstrução de normas, atribuições e impactos decorrente de

11 Esta organização de sessão segue as indicações gerais do modelo de primeira consulta do MRI, desenvolvido nos anos 60 pelos percursores da Psicologia Sistémica e da Terapia Familiar e de Casal: Gregory Bateson, Paul Watzlawick, Don Jackson, entre outros(89)

Manual de Intervenção Psicológica com Pessoas LGBTQIA+ 90

5 Jovens LGBTQIA+ na Escola

Introdução

Nas últimas décadas, as possibilidades de identificação e expressão de género e da sexualidade entre as camadas mais jovens têm sofrido mudanças profundas. As alterações no plano do reconhecimento de direitos das pessoas com identidades minorizadas, assim como as transformações no plano das experiências concretas, individuais e coletivas, incluindo nas comunidades educativas, apresentam-se como um conjunto de desafios para as Ciências Sociais, assim como para quem pensa e trabalha na intervenção. Torna-se assim fundamental investigar e compreender essas mudanças, através da auscultação das representações, das atitudes, dos valores e dos construtos junto das novas gerações. Importa também reconhecer o surgimento de novas formas de identificação, que traduzem a resistência a categorizações binárias tradicionais, percebidas como limitadores das possibilidades de exploração identitária(1). Em idades cada vez mais precoces, assistimos com efeito a uma visibilidade crescente de novas identidades sexuais e de género minorizadas(2)

Por outro lado, não devemos descurar os obstáculos e as matrizes culturais, sociais e psicológicas que ainda limitam essas possibilidades de exploração nas camadas mais jovens. Importa, como tal, reconhecer o papel de variáveis como o estatuto socioeconómico, a pertença étnica e cultural, a filiação religiosa, a diversidade funcional e intelectual, entre outras, que produzem oportunidades e vivências diferenciadas que se cruzam de forma intersecional com as identidades sexuais e de género. O preconceito e a discriminação são experiências particularmente danosas quando nos referimos a populações mais vulneráveis. A investigação com jovens LGBTQIA+ tem demonstrado que, tanto o bem-estar, nomeadamente ao nível de algumas dimensões de saúde mental, assim como o desempenho académico, podem estar comprometidos quando existem experiências escolares negativas(3)

Este capítulo tem como objetivo oferecer uma revisão de algumas questões centrais relacionadas com as experiências de jovens LGBTQIA+ no contexto escolar. Apresentam-se inicialmente alguns aspetos acerca do desenvolvimento destas identidades, recorrendo aos modelos mais populares na literatura científica. Em seguida, traça-se um panorama sobre as principais dimensões, designadamente

© PACTOR 143

Modelostresseminoritário

Estigma (stressores distais e proximais)

Apoio da família

Apoio de pares, docentes e pessoal não docente

Modelos positivos

Apoio da comunidade

Políticas escolares inclusivas

Atividades extracurriculares

Conectividade escolar EXTERNOS INTERNOS

EXOSISTEMA MICROSISTEMA

Adaptado de Fernandes et al. (2023)(24)

Fatores protetores

Bem-estar de estudantes LGBTQ

Visibilidade/outness

Quebra de regras de género e sexualidade

Agência pessoal

Características psicossociais

NÍVEL INDIVIDUAL

Fig. 5.1 Fatores protetores internos e externos para o bem-estar de estudantes LGBTQ+

Como fatores externos, a literatura tem salientado o papel protetor de uma comunidade envolvente das escolas que apoia – algo que é sentido sobretudo quando existem leis protetoras e recursos como centros comunitários, nos serviços especializados e nas celebrações do orgulho. Foi também identificada a função protetora da existência de modelos LGBTQIA+ visíveis, que possibilitem uma identificação positiva tanto dentro, como fora das escolas (e.g., em espaços públicos ou nos media). Da mesma forma, escolas em que são sinalizadas estratégias inclusivas são as que contribuem também para reduzir a incidência do bullying homofóbico e transfóbico e diminuir o seu impacto, por exemplo, encorajando as denúncias e uma intervenção mais efetiva(3). Dentro das escolas, tem sido demonstrado o papel protetor do apoio de docentes, pessoal não docente (tais como profissionais da área da Psicologia ou Educação Social) e de pares. Neste sentido, um estudo português identificou uma correlação entre a presença de currículos inclusivos e níveis mais reduzidos de depressão, assim como maior resiliência e autoestima(57). A literatura internacional tem igualmente demonstrado a eficácia de estratégias escolares alternativas na inclusão de jovens com identidades minorizadas, nomeadamente através de atividades extracurriculares como o teatro, o desporto ou os clubes inclusivos (iniciativa que descreveremos em detalhe mais à frente). Existe também forte evidência científica de que o suporte social da família atua como um fator protetor, minimizando o impacto das experiências negativas e promovendo a resiliência. A investigação tem também salientado a importância da conexão com

Manual de Intervenção Psicológica com Pessoas LGBTQIA+ 154

a evolução da implementação de medidas que concretizem os princípios orientadores da não discriminação e da promoção da inclusão nas comunidades educativas. Não restam dúvidas acerca do efeito nefasto da homofobia e da transfobia no bem-estar e saúde mental da população adolescente LGBTQIA+. Importa como tal prestar atenção ao papel desempenhado por diferentes fatores protetores, tanto ao nível interno (individual e psicológico), como ao nível externo (no contexto familiar, escolar e relacional), no desenvolvimento equilibrado da identidade. Uma prática afirmativa eficaz deve ter estes fatores em consideração nas estratégias que visem, por um lado, a promoção de competências de resiliência e de bem-estar, e, por outro, uma melhoria do clima escolar como forma de prevenir os riscos. Trata-se também de uma prática que deve ir além da mera leitura de sintomas, prestando atenção às possibilidades de capacitação individual que se encontram com frequência fora dos circuitos, das estratégias e dos currículos escolares convencionais. Finalmente, deve ser uma intervenção capaz de assegurar um papel de mediação no contexto escolar, o que pressupõe a disponibilidade para um diálogo empático com vários agentes (jovens, mas também docentes, pessoal não docente e famílias, entre outros), mais horizontal e permeável às constantes mutações na forma como a identidade e a sexualidade são entendidas pelas novas gerações, incluindo os seus veículos, referências, conceitos e linguagens.

Entrevista a especialista (Stephen Russell)

Stephen Russell é professor de Desenvolvimento Infantil e diretor da School of Human Ecology na Universidade de Texas, em Austin (Estados Unidos da América [EUA]). É um especialista em Saúde na Adolescência e Jovem Adultez, com um foco na orientação sexual e na identidade de género. O seu livro de 2016, Sexual Orientation, Gender Identity and Schooling: The Nexus of Research, Practice and Policy, foi distinguido pela American Psychological Association e pela Society for Research on Adolescence. Foi membro da direção da Society for Research in Child Development, do National Council on Family Relations e do Council on Contemporary Families, SIECUS: Sex Ed for Social Change. Foi presidente da Society for Research on Adolescence entre 2012 e 2014.

1. Porque é que decidiu estudar e pesquisar o clima escolar e o bem-estar e saúde mental de jovens LGBTQIA+?

“Saí do armário” durante os meus estudos de pós-graduação quando estava a estudar o desenvolvimento e a relação de adolescentes com as figuras parentais. Trabalhava como pós-doutorando na Universidade da Carolina do Norte quando foi implementada a primeira fase do National Longitudinal Study of Adolescent to Adult Health (Add Health). Uma colega que trabalhava no estudo mostrou-me uma das perguntas incluídas: “Já tiveste uma atração romântica por um homem?” e “[…] por uma mulher?” Ela disse: achas que algum dos rapazes disse que sim em relação a um homem? Bem, olhámos para os dados, e isso

Jovens LGBTQIA+ na Escola © PACTOR 163

tornou-se o primeiro estudo nacional sobre orientação sexual e risco na saúde nos EUA. Enquanto fazia isso, iniciei um dos meus primeiros empregos, como professor na Universidade da Califórnia em Davis. Esses primeiros artigos foram publicados e receberam alguma atenção da imprensa. Naquela época (meados dos anos 90 do século xx na Califórnia), começaram a aparecer os primeiros clubes Gay-Straight Alliance (GSA), constituídos por jovens nas escolas. Fui abordado pelo grupo que começou a criar uma rede desses clubes no ensino médio – a GSA Network. Esse grupo e outras pessoas e coletivos preparavam e defendiam uma lei de não discriminação na Educação no Estado da Califórnia. Envolvi-me como “o investigador”, mesmo tendo a consciência que não sabia nada sobre o contexto escolar. Mas esse movimento discutia o que se passava nas escolas e argumentava que eram necessárias pesquisas para documentar e defender mudanças nas políticas. Participei num grupo que acabou por se tornar o California Safe Schools Coalition. Este grupo defendia a inclusão de uma pergunta sobre bullying homofóbico numa pesquisa estadual com jovens, e começou a coletar os seus próprios dados (que eu analisei) através de clubes GSA em todo o Estado. Por todas as razões óbvias, o foco inicial era sobre bullying e saúde mental.

2. Quais são as principais descobertas neste campo de estudo nas últimas duas décadas e quais são as tendências de pesquisa atuais?

É gratificante perceber que existe agora um consenso científico sobre o papel das políticas e práticas escolares na criação de climas seguros, solidários e que garantam o bem-estar de toda a população estudantil, incluindo a LGBTQIA+. Estas medidas podem incluir, por exemplo: políticas inclusivas de não discriminação e de combate ao bullying; educação e formação de pessoal docente e não docente; acesso a recursos e apoio por parte da escola (nomeadamente, ter responsáveis pelos gabinetes de apoio a estudantes com formação neste âmbito, e assegurar que existem livros inclusivos nas bibliotecas); e oportunidades de liderança para a população estudantil (como acontece nos clubes GSA e noutras atividades).

Em relação às tendências de pesquisa, sinto que há uma atenção crescente à diversidade dentro da juventude LGBTQIA+. Há mais interesse em entender a intersecionalidade, isto é, a forma como ser LGBTQIA+ se pode cruzar com outras pertenças sociais, em particular com aquelas que sofrem também de opressão em função da “raça” ou etnia, do sexo ou género, da classe social, do estatuto de migrante, entre outras. Existe também um maior interesse na compreensão da diversidade no desenvolvimento, que parte do pressuposto de que existem caminhos múltiplos na consciência de si e no coming out, que diferem em função do contexto e da posição social individual. Estas abordagens estão a transformar as questões que se colocam acerca da juventude LGBTQIA+ no contexto escolar. Outra área de investigação, que eu espero que se torne uma tendência, foca-se na avaliação concreta do impacto de intervenções. Existe um pequeno número de intervenções testadas que se focam na saúde mental de pessoas

Manual de Intervenção Psicológica com Pessoas LGBTQIA+ 164

da identidade LGBTI pela hierarquia direta

Fig. 6.2 Revelação da identidade LGBT no contexto de trabalho

6.1.5 Sobre o processo afirmativo de género concomitante ao exercício

profissional

Muitas pessoas TNB adiam o início do seu processo afirmativo de género (social e/ou médico) até à idade adulta, normalmente por medo de rejeição, empatia com o sofrimento dos familiares, questionamento identitário prolongado, transfobia internalizada e/ou outros motivos. Nesse sentido, é comum tentarem previamente conquistar alguma autonomia económica da família e estabelecer uma rede de suporte comunitário, para depois darem passos mais efetivos na sua afirmação de género, muitas vezes quando já estão inseridas no mercado de trabalho.

O início do processo afirmativo de género (ou de transição, como também é designado) quando a pessoa já está integrada num local de trabalho tem merecido alguma atenção da investigação recente(13). O processo afirmativo inicia-se tipicamente com a revelação da identidade TNB no local de trabalho, em maior ou menor escala, sem que a pessoa tenha de fazer necessariamente alterações significativas imediatas na sua expressão de género, nome e forma de tratamento. Este processo afirmativo poderá tornar-se temporariamente muito exigente e desafiante para a pessoa, aumentando a sua vulnerabilidade pessoal e diminuindo

Pessoas LGBTQIA+ no Contexto de Trabalho © PACTOR 185 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% Conhecimento
0% UE
UE Trans Portugal LGB Portugal Trans 9 10 11 13 15 21 21 9 64 63 60 70 12 6 8 8
UE Trans Portugal LGB Portugal Trans 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Conhecimento da identidade LGBTI pelos/as colegas de trabalho 25 34 22 27 13 10 17 19 46 42 51 38 16 14 10 16 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10%
identidade LGBTI
0%
UE Trans Portugal LGB Portugal Trans 9 15 11 16 4 10 8 9 70 76 74 69 12 5 5 7 Ninguém Alguns A maioria Todos
LGB
UE LGB
Conhecimento da
pelos/as clientes e outros/as
UE LGB

Stresse – intraminoritário, 36 – minoritário, 30, 52, 72

Manual de Intervenção Psicológica com Pessoas LGBTQIA+

Suporte social, 35

T

Taxa de desemprego, 175

Técnicas de reprodução assistida, 122

Terapia – Cognitivo-Comportamental, 42 – da Aceitação e do Compromisso, 44 – Focada na Compaixão, 49

Testes por correspondência, 176

São assinaláveis os progressos legislativos que se têm observado em Portugal, em termos dos direitos humanos das pessoas LGBTQIA+. Contudo, o preconceito e a discriminação continuam a fazer parte da vida quotidiana de muitas pessoas com identidades sexuais e de género minorizadas, com impacto significativo no seu bemestar. Perante a escassez de obras em língua portuguesa sobre intervenção psicológica com esta população, decidimos dar à estampa este Manual de Intervenção Psicológica com Pessoas LGBTQIA+.

Teoria – da Intersecionalidade, 38 – da Objetificação, 91 – da Segurança Social, 37

Tomada de perspetiva, 46

Trans*, 3

Treino da mente compassiva, 53

Três Sistemas de Regulação Emocional, 50 V

Valores, 45

Violência, 181

Em cada um dos seus seis capítulos é apresentado o estado da arte relativo a modelos de compreensão e intervenção com estas pessoas, a nível individual, familiar e comunitário, em diversos contextos e fases do seu ciclo vital. Os modelos propostos são afirmativos das identidades LGBTQIA+, problematizando e agindo quer sobre o preconceito e a discriminação quer sobre os seus efeitos. Cada capítulo apresenta um conjunto de sugestões de recursos e materiais de intervenção, sendo complementado com uma entrevista a uma pessoa especialista de renome internacional em estudos LGBTQIA+. O manual dirige-se não só a profissionais de Psicologia mas também a todas as pessoas que intervêm com a p o pulação LGBTQIA+ , à própria comunidade LGBTQIA+ e pessoas aliadas.

Temas:

Características sexuais, orientações sexuais e identidades de género minorizadas

Preconceito e discriminação contra as pessoas LGBTQIA+

Modelos teóricos de compreensão e intervenção psicológica individual

Intervenções cognitivo-comportamentais

Experiências das pessoas LGBTQIA+ em relacionamentos íntimos

Intervenção a rmativa com casais e famílias LGBTQIA+

Parentalidade exercida no âmbito das famílias formadas por pessoas LGBTQIA+

Mapas Familiares

Proteção de jovens LGBTQIA+ e as suas experiências escolares

Gestão das identidades LGBTQIA+ no emprego

Manual
LGBTQIA+ 206
de Intervenção Psicológica com Pessoas
www.pactor.pt ISBN 978-989-693-157-5 9 789896931575

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