DA CRIANÇA
Raíssa Santos
Raíssa Santos
Prefácio de: Prof. Doutor Manuel Matos
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ISBN edição impressa: 978-989-693-180-3
1.ª edição impressa: junho de 2024
Paginação: Carlos Mendes
Impressão e acabamento: Cafilesa – Soluções Gráficas, Lda. – Venda do Pinheiro Depósito Legal n.º 533440/24 Capa: José Manuel Reis Imagem de capa: © PixyPeach
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3.4
3.2.1
3.2.5
Prefácio
O desenho surge como uma necessidade de comunicar e de expor representações psíquicas através da inscrição gráfica no espaço. Terá sido a primeira forma de comunicação coletiva. A escrita cuneiforme, os hieróglifos, os caracteres da nossa ortografia foram desenhados antes de adquirirem o seu valor simbólico universal.
O desenho é muito mais imaginação que imagem. E daí a ligação entre o desenho, enquanto linguagem, a representação e o inconsciente.
Para além das diferenças individuais e coletivas, surge aquilo que todos os humanos têm de igual entre si: o inconsciente, aquilo que, no quotidiano, nem conseguimos lembrar nem esquecer, mas que anima o gesto, dá forma ao traço, e assim surge o desenho enquanto expressão gráfica inscrita no espaço e através da história. Lembro aqui, e a este propósito, L’origine des représentations, obra coletiva sob a direção de François Sacco e Eric Robert (2016), publicada nas edições Ithaque.
Em boa verdade, por imposição do inconsciente nasce o traço e o desenho. E através dele é possível aceder a dimensões psíquicas, umas vezes arcaicas e pré-verbais, outras vezes como forma de dizer sem palavras, confirmando, se dúvida houvesse, a relação entre o desenho na criança e o inconsciente, que corresponde àquilo que ela exprime e não sabe dela mesma.
Numa atualidade dominada pela invasão traumática e desorganizadora da imagem, que mata a imaginação e o pensamento, o livro da Doutora Raíssa Santos O desenho na avaliação psicológica da criança reveste-se de um particular interesse. E vem, como bem refere a autora,
ocupar um espaço em falta. Trata-se, nem mais nem menos, de um instrumento de trabalho precioso para o psicólogo clínico, o psicoterapeuta e o psicanalista de crianças.
O gesto e o traço, em sucessivos afastamentos e aproximações em relação ao eixo central do corpo, progridem em relação à motricidade fina do braço e da mão dando origem ao desenho. O desenho dá conta, e de uma forma particularmente fina, da atividade psíquica e da atividade corporal que dela depende. A criança que desenha serve-se dos gestos que aí utiliza como suporte e transporte das suas projeções.
Raíssa, doutorada em psicologia clínica e psicoterapeuta, numa perspetiva psicanalítica, demonstra-nos isso mesmo, de uma maneira exímia, num livro bem oportuno e verdadeiramente indispensável ao clínico, tanto como elemento de diagnóstico do desenvolvimento psicológico, como a nível pedagógico e terapêutico. Permite, aliás, que o terapeuta avalie, numa situação de teste-reteste, a eficácia do seu trabalho, podendo a partir daí fundamentar um relatório através de provas psicológicas padronizadas.
O Desenho da Casa-Árvore-Pessoa, de J. Buck, o Desenho de Uma Pessoa, de Karen Machover, ou o Desenho da Família, de L. Corman, que a autora estuda até ao mínimo detalhe de conteúdo, dimensão, forma e ocupação espacial, são autênticos testes projetivos complementados pelo inquérito – como acontece no teste de Hermann Rorschach, mas com uma vantagem sobre este no caso das crianças.
Às interpretações de natureza quantitativa no desenho, juntam-se as dimensões de natureza qualitativa, que permitem analisar o modo como a criança se vê, como foi vista pelo outro na envolvente familiar. Nos traços indeléveis revelados na expressão gráfico-projetiva adivinham-se as histórias relacionais mais ou menos traumáticas que formataram a vida psíquica da criança.
Aí se observam os movimentos que vão da representação psíquica ao gesto no desenho. Sabendo nós que as representações são inscrições mnésicas inseparáveis das experiências vividas. Desenhar é muito mais uma atitude mental do que um ato motor. Merleau-Ponty (1964), em L’oeil et l’esprit, nas edições Gallimard, p. 36, diz-nos que “a imagem mental é a
vidência que nos torna presente aquilo que está ausente”, o que demonstra bem a importância do desenho e de tudo o que ele nos transmite. As dimensões lúdica e criativa do desenho permitem descortinar a originalidade e a espontaneidade afetiva e emocional, consentânea com a normalidade e segurança psíquica. A criança ou o adolescente que não brinca está doente. Nesse caso retraem-se e as emoções e a afetividade, em vez de as exprimirem pela palavra, pelos gestos delicados e, naturalmente, pelo desenho, não acontecem.
Situações há em que as ações grosseiras do ponto de vista gestual tornam impossível o desenho. Assim acontece quando as dimensões patológicas dificultam a motricidade fina, uma vez que sem ela não há desenho.
Ao longo deste livro a autora demonstra muitíssimo bem como o desenho na criança é um revelador de representações psíquicas que estão subjacentes às especificidades do traçado. E as exemplificações dadas com a história clínica de quatro casos paradigmáticos mostram bem as potencialidades das provas de desenho na criança e no jovem. Mas mostram sobretudo o rigor da investigação da autora e a minúcia da exposição que eu não encontrei noutros anteriormente.
O conhecimento desta obra deve ser objeto de ensino tanto na psicologia clínica como nas disciplinas de exame psicológico da criança e do adolescente, no currículo académico da licenciatura ou de mestrado, enquanto livro de referência.
Lisboa, 4 de junho de 2024
Prof. Doutor Manuel Matos Psicanalista
Introdução
O desenho infantil foi alvo de um interesse crescente a partir dos finais do século xix, a par com a curiosidade e importância que o mundo da infância foi ocupando, de forma igualmente amplificada, nas ciências sociais e humanas.
No campo da psicologia, a intervenção psicológica com crianças desde cedo integrou a noção de que o acesso ao seu mundo e conflitos internos só seria possível tendo em consideração as especificidades que se prendem com as suas características e fases de desenvolvimento, e com o recurso ao simbólico e ao lúdico como principais instrumentos de compreensão e de comunicação com a criança. Deste modo, o desenho infantil, juntamente com o brincar, revelou-se, desde sempre, essencial à prática profissional, enquanto modalidade de avaliação e de intervenção psicológica com crianças.
Com esta obra, pretende-se preencher uma lacuna existente na literatura técnica psicológica portuguesa relativa à compreensão e utilização do desenho na avaliação psicológica da criança.
Seria impossível expor e analisar em algumas páginas a totalidade do material e questões relacionadas com a temática do desenho infantil abordadas na literatura internacional do último século. Assim, teremos de selecionar a informação apresentada, acreditando que os conteúdos abordados permitirão ao leitor a solidez teórica necessária à sua ligação à prática.
Procurando uma abordagem prática em todos os momentos, com ilustrações várias e vinhetas clínicas, esta obra pretende constituir-se
como ferramenta fundamental para os profissionais de psicologia que trabalham com crianças e que entendem o desenho infantil como meio primordial de comunicação com a criança e de avaliação do seu mundo interno, atribuindo-lhe uma preponderância essencial para o sucesso da sua prática clínica.
Tendo por base a certeza de que só uma boa compreensão dos aspetos teóricos inerentes à utilização desta poderosa ferramenta permitirá o sucesso da sua utilização prática como prova projetiva, no Capítulo 1, começaremos por abordar, de um modo geral, algumas definições ligadas ao desenho infantil, procurando compreender a sua importância e a forma como as competências gráficas se desenvolvem à medida que a criança cresce.
No Capítulo 2, apresentaremos o processo de avaliação psicológica da criança e as suas especificidades, aprofundando a utilização de provas projetivas na avaliação infantil, dado que o desenho é sobretudo (embora não apenas) utilizado no âmbito das provas projetivas, sendo este o campo sobre o qual esta obra se debruça.
No Capítulo 3, daremos a conhecer algumas provas projetivas de desenho na avaliação psicológica da criança, abordando as suas características gerais e normas de aplicação e interpretação. As provas abordadas serão o Teste do Desenho da Casa-Árvore-Pessoa (House-Tree-Person –HTP), de John Buck (1948), o Teste do Desenho de Uma Pessoa, de Karen Machover (1949), e o Teste do Desenho da Família, de Louis Corman (1964). Relativamente a cada uma delas, apresentaremos um caso clínico ilustrativo da sua riqueza para a avaliação psicológica e compreensão do funcionamento do sujeito.
Acreditamos que, assim constituída, esta obra permitirá percorrer as dimensões fundamentais do desenho infantil e da sua utilização na prática da avaliação psicológica infantil, tornando-se um ponto de partida essencial para o profissional que pretende utilizar esta técnica na sua prática clínica.
Por fim, uma breve nota para sublinhar que nomes, locais e alguns outros dados foram alterados, no sentido de preservar o anonimato, sem prejuízo da compreensão clínica dos casos apresentados. Os desenhos apresentados são reais e não deverão ser reproduzidos para quaisquer fins.
O Desenho Infantil
Os Estados Partes reconhecem o direito da criança ao descanso e ao lazer, ao divertimento e às atividades recreativas próprias da idade, bem como à livre participação na vida cultural e artística.
Os Estados Partes devem respeitar e promover o direito da criança de participar plenamente da vida cultural e artística e devem estimular a oferta de oportunidades adequadas de atividades culturais, artísticas, recreativa e de lazer, em condições de igualdade.
Artigo 31 da Convenção sobre os Direitos da Criança (Assembleia Geral das Nações Unidas, 1989, ratificada por Portugal em 1990)
1.1 Introdução
Tal como refere Florence de Mèredieu (1974), existe, desde sempre, uma estreita conexão entre as ideias filosóficas dominantes em cada momento e o estudo da criança, em geral, e das suas produções gráficas, em
particular. Assim, o desenho da criança, após ter sido desconsiderado ou mal entendido por muito tempo, passou a ser objeto de estudo, graças ao interesse contemporâneo por tudo o que diz respeito à infância. As conceções relativas à infância modificaram-se progressivamente e as descobertas das leis próprias da psique infantil e da originalidade do seu desenvolvimento levaram a uma admissão crescente das particularidades do seu universo.
1.2 Definições e Importância do Desenho Infantil
O interesse pelo desenho infantil data de finais do século xix, a princípio em estreita ligação com os primeiros trabalhos de psicologia experimental. Os estudos e as disciplinas interessadas no desenho infantil rapidamente se diversificaram, indo desde a psicologia à estética, passando pela pedagogia e pela sociologia, entre muitas outras. Este interesse prosseguiu e continuou em paralelo à descoberta da unicidade da infância, depois de muitos séculos de abordagem da criança como adulto em miniatura, sem interesse pelas particularidades e diferenças do mundo infantil. Mais tarde, e especificamente no campo da psicologia, o desenho é introduzido no tratamento psicanalítico e na compreensão do mundo interno da criança (Mèredieu, 1974).
Muitos psicanalistas, começando por Melanie Klein (1932), encararam o desenho como forma de a criança exprimir as suas fantasias, num mecanismo semelhante ao trabalho do sonho, em que pode brincar graficamente com personagens e objetos a dois níveis: um mais consciente e intencional, outro mais inconsciente. O conteúdo manifesto do desenho esconde, então, um conteúdo latente, camuflado pelas defesas e pelo simbolismo.
Na atualidade, compreendemos o desenho infantil como uma forma de expressão natural e saudável da criança, que exprime o seu estado afetivo e o modo como se coloca em diferentes contextos e ambientes relacionais. Revela o seu desenvolvimento, a forma como se liga ao mundo,
às pessoas e aos objetos. Engloba um processo que carrega consigo uma história única e um desejo próprio. Permite avaliar o seu mundo interno com sensações e visões próprias e, paralelamente, alertar para dificuldades intelectuais ou afetivas vividas pela criança. Importa sublinhar a forma como o desenho infantil muda depois da escolarização e da aprendizagem da leitura e da escrita. O valor social de alguns objetos e assuntos, até então não percebidos, passa a ser reconhecido e explorado. O ensino tende a subordinar o desenho a outras disciplinas e a outros modelos e tipos de conduta. O desenho passa a ter um caráter reflexivo de acontecimentos, estereótipos, nuances culturais e tradições, que compõe o código social de cada criança (Mèredieu, 1974).
1.3 Desenvolvimento do Desenho Infantil
O desenhar na criança começa com o que podemos chamar de rabisco – movimento oscilante, depois giratório, que surge como expressão pulsional de um ritmo biopsíquico próprio e efetuado pelo simples prazer do gesto. Só posteriormente, ao perceber a relação de causalidade, em que o seu gesto criou um traço, a criança tornará a fazê-lo, agora pelo prazer do efeito produzido. Deste modo, na criança o desenho é, primeiro que tudo, motor. Ao observarmos a criança pequena a desenhar, percebemos que todo o corpo funciona e que a criança sente esse movimento de uma forma agradável. O prazer do gesto é o que conta, a manipulação das cores, a sua impressão e marca no papel. O real e o imaginário estão de mãos dadas num intercâmbio instantâneo. Com o avançar da idade, esta instantaneidade vai diminuindo, o desenho torna-se mais esmerado, a preocupação com o sucesso vai-se instalando, as produções infantis aproximam-se das produções adultas (Mèredieu, 1974).
Marthe Bernson (1966) distinguiu três estágios do rabisco (Figura 1.1):
1. Estágio Vegetativo Motor (por volta dos 18 meses ou por vezes mais cedo) – surge o traçado mais ou menos convexo, arredondado
ou mais alongado (garatujas), em que o lápis não sai da folha, criando turbilhões elípticos que partem do centro para o exterior e que correspondem a uma simples excitação motora da criança.
2. Estágio Representativo (entre os 2 e os 3 anos) – surgem esboços, delineamentos de formas, que se tornam possíveis pelo levantar do lápis da folha que produz o traço descontínuo e também formas isoladas. O gesto é mais lento, há uma tentativa de reproduzir o objeto e as verbalizações acompanham o desenhar. Surgem as linhas mais retas e, inicialmente, as verticais predominam sobre as horizontais.
3. Estágio Comunicativo (início aos 3/4 anos) – surge a vontade de “escrever”, de imitar o adulto e de comunicar através do desenho (escrita fictícia). O controlo duplo (do ponto de partida e do ponto de chegada) e uma melhor coordenação olho-mão permitem o aperfeiçoamento das formas. Surge o emoldurar das figuras e o enquadramento do desenho nos contornos da folha. A criança está preparada para o aparecimento da figura humana dotada de corpo e quatro membros.
Algumas Provas Projetivas de Desenho na Avaliação Psicológica da Criança
Projective methods of exploring motivations have repeatedly uncovered deep and perhaps unconscious determinants of self-expression which could not be made manifest in direct communication.
It is safe to assume that all creative activity bears the specific stamp of conflict and needs pressing upon the individual who is creating.
Karen Machover
(1949, p. 4)
3.1 Introdução
O facto de ser uma técnica de fácil aplicação, geralmente bem aceite pelas crianças, torna o desenho uma das técnicas de avaliação psicológica mais utilizadas. Além disso, reduz, muitas vezes, o choque que a situação de teste pode causar, constituindo-se como um elemento facilitador do exame clínico e de adaptação ao ambiente e ao examinador (Campos, 2003).
Partindo do pressuposto de que haveria um tipo de grafismo próprio de cada fase do desenvolvimento, o desenho foi utilizado inicialmente para avaliar o desenvolvimento cognitivo e o Quociente de Inteligência (QI) da criança. A título de exemplo, referimos o Teste do Desenho da Figura Humana, de Florence Goodenough (1926), elaborado pela autora a partir da análise de 4000 desenhos. Nesta prova são pedidos à criança três desenhos: de um homem, de uma mulher e de si mesma. Cada desenho é depois cotado relativamente à presença ou ausência de 51 itens, com o objetivo de estimar a inteligência geral da criança, comparando a sua idade mental (avaliada no desenho) com a sua idade cronológica. Este sistema preciso de cotação avalia desde a anatomia da figura até aos detalhes ou acessórios que apresenta.
A evolução do desenho infantil permite-nos aceder também ao modo como a criança se está a desenvolver e a integrar as suas experiências emocionais. A evolução faz-se por etapas e a observação de regressões significativas a estádios anteriores do grafismo ou a não progressão natural para a fases mais avançadas poderão ser sinais de distúrbios profundos ou de crises passageiras. Tais regressões podem encontrar-se dentro de um mesmo desenho ou em diversos desenhos (Mèredieu, 1974).
Paralelamente, desde cedo, o desenho foi reconhecido como uma forma de expressão da personalidade e do mundo psíquico como um todo, distinguindo-se o seu valor projetivo (Mèredieu, 1974). Zucker (1983, citado por Campos, 2003) verificou nas suas pesquisas que os desenhos são os primeiros a indicar estados psicopatológicos incipientes e os últimos a perder os sinais de perturbação depois de o paciente estar recuperado, sendo, portanto, altamente sensíveis às tendências psicopatológicas.
Fazendo uma breve referência ao Desenho Livre, a criança tem toda a liberdade relativamente ao que escolhe desenhar e como o desenha, expressando-se livremente, sendo, muitas vezes, utilizado como ponto de partida para o estabelecimento de uma relação descontraída que facilitará a aplicação subsequente de outras provas psicológicas. Pela sua abertura e total falta de estandardização, o Desenho Livre não poderá ser considerado uma prova projetiva, podendo, no entanto, servir de comparação
relativamente ao desempenho da criança nas produções mais dirigidas (Fagulha, 1992).
A interpretação nas provas gráficas assenta, em grande medida, na teoria psicanalítica, que entende os desenhos como representações simbólicas do modo como a criança perceciona a realidade em que está inserida, os seus sentimentos, atitudes, necessidades, desejos e conflitos. Além disso, é sempre possível analisar os aspetos de desenvolvimento geral, cognitivos, grafo-percetivos, entre outros.
No entanto, é de sublinhar a importância de que qualquer interpretação de um desenho deve ser feita no contexto vivencial da criança, bem como no contexto em que foi desenhado. Toda a dinâmica do sistema de signos deve ser considerada, pois, se assim não for, a interpretação será nula. Di Leo (1985) sublinhava a importância de encararmos os desenhos como instrumentos que fazem parte dos procedimentos gerais de diagnóstico, devendo ser um auxílio na avaliação clínica. Fialho (2019) acrescenta que o desenho infantil é apenas uma expressão de elementos de um todo que constitui a personalidade da criança, possibilitando-nos a compreensão do seu mundo interno no contexto da relação clínica, correspondendo ao espaço transicional de Winnicott (1969). “O mais importante não é o desenho realístico, no sentido do desenho fotográfico do objeto, mas as alterações e deformidades provenientes das projeções inerentes ao mundo interno da criança, as quais vão impregnar o objeto externo […]. O material desenhado está impregnado de aspetos brutos, não defensivos, do inconsciente, ao mesmo tempo que põe em ação aspetos defensivos do Eu” (Fialho, 2019, p. 45-46).
Campos (2003) refere as bases fundamentais do campo da interpretação do desenho como técnica projetiva, ilustrando as suas conclusões com referências a diversos estudos:
Uso dos significados de símbolos provenientes do campo psicanalítico do estudo de sonhos, artes, fantasia e outras atividades influenciadas pelo inconsciente;
Experiência clínica com fenómenos patológicos e mecanismos de defesa compreensíveis na estrutura concetual do simbolismo;
Simbolização ligada às associações livres dos pacientes;
Evidência empírica de estudos de caso;
Simbolização presente nos desenhos de psicóticos;
Correlação entre as projeções que surgem nos desenhos em diversas fases do tratamento e do quadro clínico;
Consistência interna entre as respostas a testes de personalidade, a história clínica e os desenhos produzidos;
Fundamentação em estudos experimentais.
Abordaremos seguidamente, numa perspetiva desenvolvida por Campos (2003), algumas hipóteses interpretativas aplicáveis à análise geral de desenhos.
3.1.1 Localização no Papel
Quando o desenho se situa maioritariamente no meio da página, estamos, muito provavelmente, perante uma criança ajustada à realidade, mais autodirigida e autocentrada.
Já desenhos fora do centro da página poderão remeter para uma criança menos controlada, mais dependente.
No caso de o desenho se encontrar maioritariamente num dos cantos, é possível colocar a hipótese de fuga ou evitamento do meio.
Se estiver localizado mais para a esquerda do centro horizontal, remeterá para um comportamento controlado, desejando satisfazer as suas necessidades e impulsos, preferindo satisfações intelectuais a emocionais.
Quando localizado mais para a direita do centro horizontal, poderá indicar um comportamento impulsivo, procurando satisfação imediata das suas necessidades e impulsos.