Didática do Português Língua de Herança

Page 1


Didática do Português Língua de Herança Coordenação

Sílvia Melo-Pfeifer Direção

Maria José Grosso


Índice Índices

7

Lista de Autores

11

Abreviaturas e Siglas Utilizadas

15

Nota Prévia

17

Introdução

19

Parte I

25

Notas Conceptuais Capítulo 1 1. Las Lenguas de Herencia, entre lo Propio y lo Extranjero

27 28

Mariana Bono 1.1 Resumen

28

1.2 ¿Cómo Definir la Lengua de Herencia? ¿Quiénes Son Sus Locutores?

28

1.3 De Hablantes a Aprendices: La Herencia como Objeto de Aprendizaje

31

1.4 El Papel de las Instituciones Educativas en el Mantenimiento y el Desarrollo de las Lenguas de Herencia

36

1.5 Reflexiones Finales

37

1.6 Referências Bibliográficas

39

Capítulo 2 2. “Em Casa Mais Português, mas também Alemão”: Perspetivas da Linguística e da Didática de Línguas sobre Narrativas de Uso da Língua de Herança

41 42

Cristina Flores Sílvia Melo-Pfeifer 2.1 Introdução

42

2.2 Da Necessidade de uma Abordagem Integrada do Conceito “Língua de Herança” pela Linguística e pela Didática de Línguas

45

2.3 Estudo Empírico

48

2.4 Perspetivas Interdisciplinares sobre as Narrativas das Crianças Lusodescendentes

51

2.5 Síntese e Perspetivas

61

2.6 Referências Bibliográficas

63

2.7 Anexo

66

© LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS

3


Didática do Português Língua de Herança

Capítulo 3 3. Português: Língua de Herança Colonial – Uma Prática Local

73 74

Maria Luísa Coelho 3.1 Introdução

74

3.2 Português Língua de Herança Colonial

74

3.3 O Português como Instrumento de Pacificação

76

3.4 O Português como Instrumento de Desenvolvimento

76

3.5 Monolinguismo versus Plurilinguismo

78

3.6 O Valor Económico da Língua e da Cultura

80

3.7 O Português de Angola: Uma Língua Local

81

3.8 Uma Conclusão Prudente

82

3.9 Referências Bibliográficas

83

Parte II

85

Português Língua de Herança em Contextos Capítulo 4 4. Português Língua de Herança na Alemanha: Imagens dos Professores e da Comunidade Portuguesa. Implicações Pedagógico-Didáticas

87 88

Sílvia Melo-Pfeifer Alexandra Schmidt 4.1 Introdução

88

4.2 Imagens da Língua de Herança

89

4.3 Estudo Empírico

92

4.4 Análise dos Resultados

95

4.5 Divergências e Interceções 102 4.6 Perspetivas Pedagógico-Didáticas 104 4.7 Referências Bibliográficas 106

Capítulo 5 5. Para uma Pedagogia Diferenciada no Ensino do Português Língua de Herança: Contributos Etnográficos e Psicossociais

109 110

Fátima Silva Estela Lamas 5.1 Introdução 110 5.2 Como Perspetivar o Ensino do Português enquanto Língua de Herança 110 no Estrangeiro 5.3 Contextualização do Estudo Empírico 114

4

© LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS


Índice

5.4 Perfil dos Alunos Lusodescendentes do Ensino do Português Língua de 118 Herança na Alemanha, no Estado da Renânia do Norte-Vestefália 5.5 As Histórias Digitais: Expectativas e Resultados 124 5.6 Considerações Finais 128 5.7 Referências Bibliográficas 129

Capítulo 6 6. Aprendizagem e Representações do Português Língua de Herança em França

131 132

Rosa Maria Faneca 6.1 Introdução 132 6.2 Contextualização Teórica 133 6.3 Design Metodológico do Estudo 139 6.4 Resultados 141 6.5 Conclusões 151 6.6 Referências Bibliográficas 151

Capítulo 7 7. E-Learning como Ambiente de Construção Identitária em Estudantes Universitários de Português Língua de Herança

155 156

Sofia Campos Soares 7.1 Introdução 156 7.2 Uma Dupla Abordagem Construtivista 159 7.3 Da Teoria à Prática: Relato de uma Experiência 161 7.4 Referências Bibliográficas 168 7.5 Anexo 170

Capítulo 8 8. Línguas Maternas no Ensino Básico Finlandês: Práticas Didáticas dos Professores de Português

175 176

Jarna Piippo 8.1 Introdução 176 8.2 O Ensino de Línguas Maternas no Contexto Finlandês 178 8.3 Práticas Didáticas dos Professores de Português Língua Materna 184 8.4 Considerações Finais 198 8.5 Referências Bibliográficas 201

© LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS

5


Didática do Português Língua de Herança

Parte III Formação de Professores de Português Língua de Herança Capítulo 9 9. “Imagens do (Ensino) Português no Estrangeiro”: Da Investigação à Intervenção. Relato de uma Experiência Formativa

205 207 208

Sílvia Melo-Pfeifer Catarina Castro 9.1 Introdução 208 9.2 Breve Contextualização do Projeto e do Módulo de Formação 209 9.3 O Módulo de Formação Presencial 210 9.4 Síntese e Perspetivas 216 9.5 Referências Bibliográficas 217

Capítulo 10 10. Português Língua de Herança: Vozes de Professores em Contexto e Reptos à Formação de Professores

219 220

Ana Sofia Pinho 10.1 Introdução 220 10.2 O Estudo 222 10.3 Resultados: As Vozes dos Professores de Português Língua de Herança 225 10.4 Reflexão sobre a Formação de Professores numa Perspetiva 235 de Didática de Línguas 10.5 Referências Bibliográficas 240

Capítulo 11 11. “Faço o Pino!”: Representações e Práticas de Professores de Português Língua de Herança

245 246

Teresa Ferreira 11.1 Introdução 246 11.2 Curso de Formação em Didática do Português Língua de Herança 246 11.3 Representações e Práticas dos Professores de Português Língua 247 de Herança em Formação 11.4 Considerações Finais 268 11.5 Referências Bibliográficas 271 11.6 Anexo 274

6

© LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS


Lista de Autores COORDENADORA/AUTORA Sílvia Melo-Pfeifer (silvia.melo-pfeifer@uni-hamburg.de)

Licenciada em ensino de Português e Francês e Doutorada em Didática de Línguas, pela Universidade de Aveiro. Desenvolveu um projeto de Pós-Doutoramento no Laboratório de Investigação em Didática da Língua Materna e Estrangeira (LIDILEM), na Université Stendhal Grenoble 3 (França) e no Departamento de Didática e Tecnologia Educativa da Universidade de Aveiro. É membro do Centro de Investigação Didática e Tecnologia na Formação de Formadores (CIDTFF), estrutura de investigação da Universidade de Aveiro. Coordenou o Ensino Português na Alemanha, pelo Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, junto da Embaixada de Portugal em Berlim, entre 2010 e 2013, durante o qual conceptualizou e desenvolveu o projeto “Imagens do (Ensino) Português no Estrangeiro”. É Professora Associada de Didática de Línguas Românicas da Universidade de Hamburgo (Alemanha).

AUTORES Alexandra Schmidt (aschmidt@ua.pt)

Doutorada em Didáticas das Línguas e investigadora participante no Laboratório Aberto para a Aprendizagem de Línguas Estrangeiras (LALE). Desenvolveu um projeto de investigação na área das Imagens do Português enquanto Língua de Herança, em colaboração com o Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, e exerceu funções de Adjunta na Coordenação de Ensino Português na Alemanha, na Embaixada de Portugal em Berlim. É atualmente docente de Inglês e de Alemão na G17 – Staatliche Gewerbeschule, em Hamburgo, e desempenha o cargo de Assistente de Direção do projeto “Ensino dual para Migrantes”, no Ministério para a Educação Profissional de Hamburgo (Senado). Ana Sofia Pinho (anapinho@ua.pt)

Professora Auxiliar no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, investigadora do Centro de Investigação “Didática e Tecnologia na Formação de Formadores” (CIDTFF) e membro do Laboratório Aberto para a Aprendizagem de Línguas Estrangeiras (LALE), da Universidade de Aveiro. Possui um Doutoramento em Didática de Línguas e Formação de Professores pela mesma instituição e tem participado em projetos nacionais e internacionais sobre os seus principais interesses de investigação, nomeadamente educação plurilingue e intercultural, intercompreensão, desenvolvimento profissional, comunidades e culturas de colaboração na formação de professores/formadores.

© LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS

11


Didática do Português Língua de Herança

Catarina Castro (castro.aclm@gmail.com)

Doutorada em Línguas, Literaturas e Culturas, com especialidade em Didática das Línguas Estrangeiras, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (2015), e Mestre em Ensino do Português como Língua Segunda e Língua Estrangeira, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (2008). Exerceu funções como Leitora de Língua e Cultura Portuguesas do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, na Universidade Nacional de Timor-Leste (2001/2002) e nas Universidades Humboldt e Livre de Berlim (2004 a 2010). Atualmente, trabalha como Professora visitante na Universidade Autónoma de Barcelona e iniciou um Pós-Doutoramento, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, na área da Linguística Aplicada/Formação de Professores. Cristina Flores (cflores@ilch.uminho.pt)

Professora Auxiliar do Departamento de Estudos Germanísticos e Eslavos da Universidade do Minho. Doutorou-se em 2008 em Ciências da Linguagem com uma dissertação intitulada A competência sintáctica de falantes bilingues luso-alemães regressados a Portugal. Um Estudo sobre Erosão Linguística. Publicou vários artigos em revistas nacionais e internacionais, capítulos de livros e editou quatro livros. Desenvolve o seu trabalho de investigação na área da Linguística, nomeadamente do Bilinguismo, da Aquisição de Línguas Segundas e Línguas de Herança e da Erosão Linguística. Participa em vários projetos de investigação relacionados com a temática do Bilinguismo e das Línguas de Herança. É membro da equipa redatorial da revista Diacrítica. Ciências da Linguagem, da Universidade do Minho, e membro da Direção da Associação Portuguesa de Linguística. Estela Lamas (estela.lamas@mac.com)

Professora Catedrática da área das Ciências da Educação da Universidade de Santiago de Compostela. Desenvolve trabalho académico, investigações, orientação e coorientação de dissertações e teses nos domínios da Língua e Literatura Portuguesas, da Educação de Adultos, da Avaliação e do Currículo. Colabora desde longa data com universidades estrangeiras, quer na Europa, quer na América do Sul quer em África, com especial destaque para a Universidade de Santiago de Compostela. É reitora honorária da Universidade Jean Piaget de Cabo Verde, dirigiu o Instituto Superior de Língua Portuguesa, sedeado no campus universitário da Cidade da Praia, Ilha de Santiago, Cabo Verde. Fátima Silva (fatimasilva19@gmail.com)

Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – Variante Estudos Ingleses e Alemães – Ramo Educacional, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Concluiu na Universidade de Évora o Curso de Mestrado em Educação, variante

12

© LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS


Lista de Autores

Desenvolvimento Pessoa e Social. Doutorada pela Universidade de Santiago de Compostela, no âmbito da identificação da identidade linguística e cultural de alunos lusodescendentes, na Alemanha, no estado da Renânia do Norte-Vestefália, do Ensino do Português no Estrangeiro (EPE) enquanto língua de herança. Com uma experiência de 14 anos de ensino em Portugal, é atualmente docente do EPE, desde 2010. Jarna Piippo (jarna.piippo@helsinki.fi)

Mestre em Filologia Espanhola e Língua Finlandesa e possui um diploma de estudos avançados na área de Literatura. Foi leitora e assistente de Línguas Ibero-Românicas na Universidade de Helsínquia entre 1994 e 2012. Também deu aulas de português como língua materna a crianças e jovens, no ensino básico. Atualmente trabalha como tradutora, intérprete e professora de finlandês, espanhol e português, na educação de adultos. Maria Luísa Coelho (luisacoelho1@yahoo.com.br)

Licenciada em Filologia Germânica, Mestre em Filosofia Política, e Doutorada pela Universidade de Utrecht na Holanda. Ensinou língua e literatura portuguesas em vários países da Europa. Lecionou durante cinco anos na Universidade de Brasília, na Universidade Agostinho Neto em Luanda e é atualmente Leitora do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua em Berlim. Tem publicadas obras de ficção em Portugal, no Brasil, nos EUA e na Bélgica e é autora de vários artigos de análise e crítica literária. Mariana Bono (mbono@princeton.edu)

Lecturer en Princeton University (EUA). Es especialista en estudios sobre el multilingüismo y la adquisición de terceras lenguas, con doctorado en la Université de la Sorbonne. La clase de lengua es el epicentro de su trabajo de investigación, cuyo principal objetivo es estudiar los aspectos psicolingüísticos y sociolingüísticos que caracterizan a la adquisición del español en contextos institucionales, tales como el impacto de los conocimientos previos, los fenómenos de transferencia y el papel de la reflexividad y de la interacción verbal en el proceso de aprendizaje. Rosa Maria Faneca (rfaneca@ua.pt)

Licenciada em Francês-Português, pela Université de La Sorbonne Nouvelle (França). Possui um Diplôme d'Études Approfondies (DEA) em Didática das Línguas, pela mesma universidade, e é Doutorada em Didática das Línguas, pela Universidade de Aveiro, sobre a temática do Ensino-Aprendizagem do Português como Língua de Herança em meio associativo, em França. Foi professora de Português e Francês e formadora de Francês/Português para adultos em França e Portugal e é, desde janeiro de 2013, bolseira de Pós-Doutoramento no Laboratório Aberto para a Aprendizagem de Línguas Estrangeiras, estrutura do Centro de Investigação Didática e Tecnologia na Formação de Formadores, Departamento de Educação, da Universidade de © LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS

13


Didática do Português Língua de Herança

Aveiro, onde é membro da equipa de investigação e docente. Os seus interesses de investigação centram-se sobretudo na Didática do Português, na Didática do Plurilinguismo, nas Línguas de Herança, na diversidade linguística e cultural e nos repertórios plurilingues e pluriculturais. Sofia Campos Soares (sofia.soares@gmail.com)

Licenciada em Ensino de Inglês e Alemão (1997), pela Universidade de Aveiro, Mestre em Estudos Ingleses (2004), pela Universidade de Aveiro, e Mestre em Português Língua Estrangeira/Língua Segunda (2012), pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Foi professora do ensino secundário em Portugal (1996-2003) e Leitora de Língua e Cultura Portuguesas do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, na Universidade de Zagreb, Croácia (2003-2010), e na Universidade de Massachusetts Boston e Boston College, nos EUA (2010-2012). Foi responsável pelo Centro de Língua Portuguesa do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, na Universidade de Zagreb e na Universidade de Massachusetts em Boston. Neste momento, é docente do Ensino Português no Estrangeiro (Alemanha), pelo Camões – Instituto da Cooperação e da Língua. Teresa Ferreira (teresaferreira@esse.ipp.pt)

Doutorada em Didática de Línguas e licenciada em Ensino de Português e Inglês, pela Universidade de Aveiro. É coautora e coordenadora da equipa de autoras dos manuais de Português para o estrangeiro Lado a Lado (Porto Editora) e coautora do Programa e manuais de Português do Ensino Secundário Geral em Timor-Leste. Atualmente, é Professora Assistente Convidada da Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto. Desenvolve outras atividades relacionadas com o ensino de Português Língua Não Materna, como a formação de professores e futuros professores, em cursos de e-learning (entre eles “Didática do Português Língua de Herança”, a cargo do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua), ou a elaboração de provas de certificação de nível de proficiência.

14

© LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS


Nota Prévia No Ensino e Aprendizagem do Português para Falantes de Outras Línguas, o livro

a Didática do Português Língua de Herança, coordenado por Sílvia Melo-Pfeifer, é um marco significativo nesta temática, a qual constitui uma área fértil de investigação. A língua de herança, como matéria atual de reflexão, tem uma particular importância para os que ensinam português em Portugal ou no estrangeiro, em contextos diversificados, e que lidam com uma complexidade de situações em que a língua portuguesa, na literatura didática conhecida, apresenta uma face poliédrica de diferentes traços conceptuais. Na verdade, em função dos públicos e dos contextos, há cada vez mais necessidade de expandir ou “ultrapassar” conceitos como língua materna ou língua estrangeira, mas a criação de conceitos ou a fixação de novas designações não é só uma questão semântica, pois relaciona-se e entrecruza-se, de forma sistémica, com muitos outros fatores, atribuindo também a cada um deles significados resultantes das diversas interfaces (linguísticas, sociais, culturais, etc.), havendo necessidade de delimitar e especificar áreas de estudo conceptualmente próximas. Assim, embora o tema central deste livro seja a língua de herança, os artigos, distribuídos por 11 capítulos, têm temas e finalidades diversificados. A obra, dividida em três partes, dedica a primeira parte a notas conceptuais, a segunda à língua de herança em contexto e a terceira parte faz referência às necessidades formativas dos professores que trabalham com públicos e contextos de língua de herança. Este livro, Didática do Português Língua de Herança, constitui um contributo da maior importância não só para os professores e autores de manuais que lidam com os contextos de língua de herança, mas também para todos os que estudam ou se interessam por esta temática.

Maria José Grosso Diretora da Coleção

© LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS

17


Introdução A

Didática de Línguas de Herança é um campo de investigação relativamente novo em Portugal, quer se trate da aquisição das línguas dos falantes imigrantes em território nacional quer se refira à aquisição do português nos países de emigração [refira-se aqui, como exceções, os trabalhos do Laboratório de Investigação em Educação em Português (LEIP), da Universidade de Aveiro, e do Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC)]. Já em termos de práticas no terreno, podemos dizer que a Didática de Línguas de Herança se faz há mais de cinco décadas, se apenas atentarmos no contexto da emigração portuguesa1 e nos professores que, desde os primeiros protocolos de cooperação com os países de acolhimento, se empenham em transmitir a língua portuguesa (LP) em contextos migratórios (embora os objetivos desta transmissão, acordando às dinâmicas sociopolíticas e económicas dos contextos migratórios, tenham entretanto adquirido outros contornos). A constatação desta discrepância entre a dimensão investigativa da Didática e a sua dimensão praxiológica foi o primeiro ponto de partida para esta obra. O segundo ponto de partida é talvez mais complexo e prende-se com a terminologia adotada. Quando se fala em língua de herança (LH), rejeitam-se, de forma mais ou menos óbvia e consciente, outros conceitos com que os mesmos públicos (falantes, alunos e professores de línguas transmitidas na diáspora) poderiam ser identificados: língua materna, língua de origem, língua segunda, língua minoritária, língua de imigrantes, de entre outros (ver, a este propósito, os textos de Bono, de Flores & Melo-Pfeifer e de Pinho, na presente obra; ver ainda Bizarro, Moreira & Flores, 2013). Ora, convém afirmar, nenhum destes rótulos escapa ao crivo de uma observação crítica (García & Kleifgen, 2010; Melo-Pfeifer & Schmidt, 2013; Wiley, 2014). O conceito de língua materna tem sido julgado desadequado para dar conta das competências bilingues dos falantes que adquirem duas línguas, mesmo que de forma sucessiva, em contexto de mobilidade. Falar de origem ou de imigrantes, quando se empregam os conceitos língua de origem ou língua de imigrantes, pode estigmatizar os sujeitos que se pretende descrever, por lhes impor uma identidade com a qual podem não se identificar (por exemplo, tendo nascido no país de acolhimento, este é entendido como o seu país natal, sendo rejeitado o “rótulo” de imigrante). Além disso, os sujeitos podem ter múltiplas origens, reivindicar algumas e rejeitar outras. Por seu turno, as designações língua segunda e língua minoritária têm sido empregadas sobretudo em contextos onde coexistem várias línguas oficiais, com estatutos sociolinguísticos diferentes. O próprio conceito de LH pode ser visto de forma negativa, remetendo para uma herança indesejada, insuficiente, pouco valorizada e inútil. Distanciando-nos destas conotações mais negativas, entenderemos, no decorrer desta introdução, o conceito de herança de forma positiva, que representa uma transmissão intergeracional de algo que gera um valor acrescido e mesmo simbólico para quem o recebe. 1 O contexto português e o ensino do português europeu são os domínios mais privilegiados pela presente obra. No entanto, as problemáticas abordadas e as perspetivas abertas pelos diferentes autores podem ser consideradas transversais a outros contextos.

© LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS

19


Didática do Português Língua de Herança

Ora, nenhum conceito é neutro (García & Kleifgen, 2010; Wiley, 2014), e utilizar um em detrimento de outros aponta para um determinado modo de formar, enformar e transformar a realidade. Deste modo, entendemos que os sujeitos podem ter várias LH (associadas a várias origens) e que as podem adquirir de forma sucessiva ou simultânea (a par ou não com a ou as línguas do país de acolhimento), numa geometria altamente variável (García & Kleifgen, 2010). Podemos aceitar que a LH, sendo minoritária no país de acolhimento, pode ser maioritária em contexto mundial (por exemplo, caso do português no Mundo, em confronto com o luxemburguês). Falar de LH implica ainda aceitar que as competências não são equiparáveis às dos falantes ditos maternos/nativos que cresceram, por exemplo, num ambiente monolingue (como é frequentemente o caso em Portugal), pelo simples facto de que as competências monolingues não são comparáveis às competências bi e plurilingues, em que as várias línguas se interpenetram e se interinfluenciam (aqui faz todo o sentido recordar o conceito de multicompetency de Cook, 1992, e a sua crítica ao modelo comparativo nativo/não-nativo, de 1997). Ao optarmos pelo conceito LH, reconhecemos ainda, como na aquisição de outras línguas (nomeadamente as que se designam estrangeiras), que as competências podem ser muito desequilibradas e instaurar um continuum no que comummente se chama “proficiência linguística”. A este continuum, Hornberger (2002) dedica o nome de continua of biliteracy, em que as línguas e as competências em cada uma não são estanques (as “duas solidões” a que se refere Cummins, 2008), mas antes interagem num modelo de comunicação interlinguística constante, a que a noção de “competência plurilingue” alude (Coste, Moore & Zarate, 1997). Conforme veremos, os autores dos diferentes capítulos nem sempre adotam o conceito de LH para se referirem ao português e ao seu ensino nos países que investigam, adotando, por vezes, a designação que é mais comum nos seus contextos de trabalho. É o caso de Jarna Piippo, que utiliza o conceito de língua materna, por esta ser a designação corrente na Finlândia e na legislação que enforma o ensino das línguas das comunidades identificadas com background migratório. Rosa Maria Faneca reporta-se a conceitos como ELCO (Enseignement des Langues et Cultures d’Origine, em português “Ensino das Línguas e Culturas de Origem”), por este ser o formato institucional em França, contexto em que desenvolveu o seu projeto de investigação. Em termos de análise, porém, todos os conceitos usados ao longo desta obra tentam apropriar-se da mesma realidade: o desenvolvimento de competências em português em contextos migratórios, num misto de aquisição em ambiente familiar e de aprendizagem em contexto escolar (geralmente extraletivo, de forma complementar ao currículo escolar do país de acolhimento) (Rothman & Judy, 2014). Este misto de aprendizagem e de aquisição (que, como todas as dicotomias, pode ser criticado), refira-se, é ele também muito desigual e desequilibrado: pode ser simultâneo ou sequencial, com fronteiras mais ou menos nítidas entre os dois processos. Porque reconhecemos a heterogeneidade teórica e conceptual, por um lado, e empírica e praxiológica, por outro, da Didática do Português Língua de Herança, bem como a necessidade de formar professores para esta realidade pautada pela 20

© LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS


Introdução

heterogeneidade constitutiva dos alunos, articulámos a presente obra em três partes: “Notas Conceptuais”, “Português Língua de Herança em Contextos” e “Formação de Professores de Português Língua de Herança”.

Notas Conceptuais

Nesta parte, propõem-se reflexões teóricas em torno do conceito de LH. Mariana Bono, no texto “Las Lenguas de Herencia, entre lo Propio y lo Extranjero”, apresenta-nos o conceito de uma perspetiva norte-americana, explicitando os traços que o aproximam e afastam de outros conceitos e ilustrando as suas potencialidades para compreender a relação dos sujeitos com esta língua dos seus repertórios. De seguida, Cristina Flores e Sílvia Melo-Pfeifer debruçam-se sobre o conceito na dupla perspetiva da Linguística e da Didática de Línguas, tentando articular as duas visões e ilustrando, através da análise de um mesmo corpus de desenhos e de produções textuais, a complementaridade das duas posições teóricas. Segue-se uma perspetiva pouco comum acerca da LH, desta pela voz de Maria Luísa Coelho, no texto “Português: Língua de Herança Colonial – Uma Prática Local”, em que se interroga o conceito à luz de uma perspetiva neo e pós-colonial, alargando, pois, o âmbito de circulação do conceito a outros contextos. Português Língua de Herança em Contextos

Ao longo dos cinco capítulos que compõem esta segunda parte, são descritos e analisados quatro contextos de ensino-aprendizagem do português como LH: o contexto alemão (Sílvia Melo-Pfeifer e Alexandra Schmidt e Fátima Silva e Estela Lamas), o contexto francês (Rosa Maria Faneca), o contexto norte-americano (Sofia Campos Soares) e o contexto finlandês (Jarna Piippo). No primeiro texto, apresentam-se e analisam-se as imagens e as representações dos professores e da Comunidade Portuguesa, recolhidas através de inquérito por questionário online, acerca do ensino-aprendizagem da LP na Alemanha, para da análise se retirarem ilações pedagógico-didáticas mais promotoras da articulação escola-comunidade no ensino da LH. Fátima Silva e Estela Lamas caracterizam, de forma pormenorizada, os alunos de português língua de herança (PLH), apelando a uma pedagogia diferenciada neste contexto de ensino, dada a heterogeneidade em sala de aula. Rosa Maria Faneca discute as representações dos alunos de origem portuguesa em França acerca da LP e da sua aprendizagem. Trata-se de alunos de Português em contexto associativo, para quem a LP se reveste de funções essencialmente afetivas e identitárias. De seguida, Sofia Campos Soares descreve o ensino-aprendizagem de LH em contexto universitário norte-americano, descrevendo um curso de formação inovador online, concebido para aquele contexto, e algumas das linhas de força da sua implementação. Para finalizar esta secção, Jarna Piippo analisa o enquadramento educativo do © LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS

21


Didática do Português Língua de Herança

designado “ensino de línguas maternas” na Finlândia, dando conta, através de análise documental e de entrevistas a docentes, das potencialidades, dos constrangimentos e mesmo dos obstáculos ao ensino do PLH naquele país. Uma grande atenção é dada pela autora à forma como os professores concebem e avaliam as suas práticas letivas, de forma a compreender as suas necessidades formativas.

Formação de Professores de Português Língua de Herança

As necessidades formativas são também abordadas na terceira secção desta obra. Sílvia Melo-Pfeifer e Catarina Castro apresentam os fundamentos teóricos que embasaram a conceção de uma formação presencial de professores da rede de Ensino Português na Alemanha, do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua. Partindo de um projeto colaborativo desenvolvido entre a Coordenadora do Ensino junto da Embaixada de Portugal em Berlim (entre 2010 e 2013) e os professores no terreno, foram posteriormente concebidas as jornadas de formação “Imagens do (Ensino) Português no Estrangeiro”, baseadas num projeto homónimo, em que os professores foram confrontados com os resultados do referido projeto e realizaram um módulo de formação tendo como ponto de partida resultados da investigaçao conjunta. Ana Sofia Pinho debruça-se sobre o mesmo contexto, tendo por base a atividade formativa que concebeu para as anteriormente referidas jornadas de formação. A perspetiva da autora-formadora é de uma relevância didática atual, pois parte das “vozes” dos professores para a identificação de identidades formativas, adotando uma postura original, entre o émico e o ético da formação contínua. Por fim, Teresa Ferreira analisa as práticas e as representações de professores de PLH em diferentes contextos, tendo por base um corpus de interações recolhidas no âmbito da formação online “Didática do Português Língua de Herança”, implementado pelo Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, e disponibilizado aos docentes da sua rede de ensino. A autora, também formadora no referido curso, centra a sua análise e discussão em cinco aspetos principais: os desafios pedagógico-didáticos e as necessidades formativas mencionados pelos professores em formação, os estatutos de língua e os contextos de ensino do PLH tal como são percebidos por aqueles, as suas representações relativas ao recurso a outras línguas na aula de PLH, o diagnóstico que os professores fazem das imagens dos alunos sobre Portugal e, finalmente, as mensagens que os professores em formação deixam acerca do ensino-aprendizagem do PLH. Algumas palavras finais são ainda devidas acerca da organização desta obra. Primeiro, a presente obra conta com o apoio do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, que apoiou a organizadora e o projeto “Imagens do (Ensino) Português no Estrangeiro” desde o primeiro momento. Segundo, alguns capítulos são inspirados pelas indagações do terreno e foram escritos pelos docentes que nesses terrenos atuam ou atuaram (capítulos de Maria Luísa Coelho, Fátima Silva, Rosa Maria Faneca, Sofia Campos Soares e Jarna Piippo). São, pois, capítulos feitos de experiência! 22

© LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS


Introdução

Outros são resultado de investigações de formadores ou de coordenadores de ensino, que, confrontados com um corpo docente empenhado e indagador, se propuseram a “inventar” outras possibilidades de olhar para os contextos, de uma complexidade muito óbvia, em que qualquer resposta multiplica perguntas (capítulos de Sílvia Melo-Pfeifer e Catarina Castro, Ana Sofia Pinho e Teresa Ferreira). Uns e outros são produtos de observações de terrenos formativos, quer da sala de aula (em contexto de ensino básico ou universitário) quer da formação de professores. Uns e outros ilustram, decerto sem refletir a complexidade na sua totalidade, a multidimensionalidade da ação docente naqueles terrenos e a heterogeneidade dos públicos (pais, alunos e comunidades) junto dos quais desenvolvem a sua prática letiva. Uns e outros justificam a necessidade da presente obra e o desejo de que se venham a desenvolver mais estudos na área da Didática do PLH.

RefeRências BiBliogRáficas BIZARRO, R., MOREIRA, M. A. & FLORES, C. (2013). Português língua não materna: investigação e ensino. Lisboa: Lidel – Edições Técnicas. COOK, V. (1992). Evidence for multi-competence. Language Learning, 42, 4, pp. 557-591. COOK, V. (1997). Monolingual bias in second language acquisition research. Revista Canaria de Estudios Ingleses, 34, pp. 35-50. COSTE, D., MOORE, D. & ZARATE, G. (1997). Compétence Plurilingue et Pluriculturelle. Vers un Cadre Européen Commun de référence pour l”enseignement et l”apprentissage des langues vivantes: études préparatoires. Strasbourg: Conselho da Europa. Disponível em http://www.coe.int/t/dg4/linguistic/source/ sourcepublications/competenceplurilingue09web_fr.doc. Acedido em 26 de maio de 2016. CUMMINS, J. (2008). Teaching for transfer: Challenging the two solitudes assumption in bilingual education. In Cummins, J. e Hornberger, N. (ed.), Encyclopedia of Language and Education, Vol 5. Bilingual Education. Boston: Springer Science + Business Media, pp. 66-75. GARCÍA, O. & KLEIFGEN, J. A. (2010). Educating Emergent Bilinguals. New York: Teachers College, Columbia University. HORNBERGER, N. (2002). Multilingual Language Policies and the Continua of Biliteracy: An Ecological Approach. Language Policy, 1, pp. 27-51. MELO-PFEIFER, S. & SCHMIDT, A. (2013). “Dessine-moi tes langues et je te dirais qui tu es”: le rapport des enfants lusodescendants au portugais comme langue-culture d”origine en Allemagne. In Les Cahiers de l”ACEDLE N.° 10(1), pp. 113-148. Disponível em http://acedle.org/IMG/pdf/Melo-Pfeifer_Schmidt_RDLC_v10_n1.pdf. Acedido em 26 de maio de 2016. ROTHMAN, J. & JUDY, T. (2014). Portuguese Heritage Bilingualism in the United States. In Willey, T., Peyton, J., Christian, D., Moore, S. & Liu, N. (ed.), Handbook of Heritage, Community, and Native American Languages in the United States, pp. 132-141. Oxon: Routledge. WILEY, T. (2014). The problem of defining heritage and community languages and their speakers: on the utility and limitations of definitional constructs. In Willey, T., Peyton, J., Christian, D., Moore, S. & Liu, N. (dir.), Handbook of Heritage, Community, and Native American Languages in the United States, pp. 19-26. Oxon: Routledge.

© LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS

23


Didática do Português Língua de Herança

2. “Em Casa mais Português, mas também alEmão”: PersPetivas da Linguística e da didática de Línguas sobre narrativas de uso da Língua de Herança Cristina Flores Universidade do Minho

Sílvia Melo-Pfeifer CIDTFF – Universidade de Aveiro (Portugal) Universidade de Hamburgo (Alemanha)

2.1 introdução

A Linguística e a Didática de Línguas (DL), como disciplinas autónomas, têm tomado caminhos teóricos diferentes e optado por procedimentos metodológicos também diferentes nas suas abordagens aos objetos de investigação. Não obstante (ou mesmo por causa desses caminhos paralelos), conforme reconhecemos num estudo preliminar, ambas as disciplinas têm vindo a explicar os fenómenos da aquisição, uso e transmissão das línguas de herança (LH) de forma diversa e complementar, acentuando diferentes aspetos e fatores envolvidos nesta trilogia (Flores & Melo-Pfeifer, 2014). Para efeitos de compreensão (e em articulação com as contribuições anteriores nesta obra), consideramos como LH a língua que é adquirida por crianças que crescem no seio de famílias com background migratório e têm exposição (mais ou menos) regular a duas línguas: a língua dominante do país onde vivem e a língua do país de origem dos pais (ou avós), a sua LH1 (Rothman, 2009; Valdés, 2005). Nos últimos 15 anos, os estudos linguísticos que focam a aquisição bilingue em contexto de migração têm recorrido ao conceito de LH com o intuito de usar um termo mais independente quanto ao peso de fatores como a “dominância linguística”, a “ordem de aquisição” ou a “carga emocional” na caracterização das línguas da criança bilingue (ou multilingue, segundo recente proposta de García & Wei, 2014). Neste sentido, o uso deste termo pretende deixar em aberto se a LH é a língua dominante do falante ou a menos usada, se é aquela que foi adquirida em primeiro lugar ou ao mesmo tempo que a língua do país de acolhimento, se é a língua com a qual o falante bilingue se identifica mais ou da qual menos gosta, etc. Como realça Meisel (2013), a definição do conceito é sobretudo sociolinguística, pois foca o contexto de aquisição da língua. Já termos mais comuns como o de língua materna (LM), língua nativa, língua primeira, língua segunda (LS) ou língua dominante minoritária contêm na própria designação a perspetiva pela qual a língua-alvo é focada (e cuja justeza e adaptação epistemológica não pretendemos abordar nesta contribuição). De qualquer forma, a escolha de um conceito nunca é completamente neutra e qualquer que seja o ângulo de análise adotado, este trará sempre consigo uma certa tendência epistemológica e heurística (Wiley, 2014). 1

42

Ou línguas de herança, no caso de os pais terem diferentes línguas maternas.

© LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS


“Em Casa Mais Português, mas também Alemão”: Perspetivas da Linguística e da Didática de Línguas sobre Narrativas de Uso da Língua de Herança

De facto, um dos objetivos principais dos estudos linguísticos centrados no desenvolvimento de uma LH é precisamente a análise das condições de aquisição da LH, isto é, a descrição da influência de fatores como a idade e a ordem de aquisição, a quantidade e a qualidade do input, as estratégias de aquisição do sistema linguístico. Partindo do pressuposto de que o conhecimento linguístico de um falante é moldado pelas condições (dinâmicas e multifatoriais) em que essa língua é adquirida, torna-se então indispensável perceber como é que a aquisição de uma língua num contexto social muito específico, o de migração, determina o seu desenvolvimento. É inegável que o repertório linguístico do falante de herança (FH) é caracterizado por pluralidade e heterogeneidade, evidenciando o carácter idiossincrático das suas competências na LH. A competência da criança imigrante na sua LH não é igual à de uma criança que cresce no respetivo país de origem: não é nem se espera que seja. O que interessa ao linguista é saber onde residem as diferenças, como as pode explicar e o que elas lhe dizem sobre a faculdade da linguagem do ser humano. O que sabemos sobre esta faculdade com alguma certeza é que está biologicamente programada para a aquisição multilingue (Meisel, 2001). A criança que tem contacto ativo com várias línguas adquire essas línguas naturalmente, embora o estado final deste processo de aquisição multilingue (se é que podemos falar mesmo de um “estado final” de aquisição) nunca seja igual à soma das competências linguísticas dos falantes monolingues das respetivas línguas (Grosjean, 1982, 1989). O resultado deste processo é, pelo contrário, uma competência multilingue dinâmica e inovadora, moldada pela frequência e pelos diferentes contextos de uso das diferentes línguas. Como realçam Rothman & Treffers-Dallers (2014), é indispensável percebermos que esta competência multilingue é tão “nativa” como a competência de falantes que crescem desde a nascença com a exposição a apenas uma língua. Na maioria dos estudos linguísticos, apenas estes são designados de falantes nativos, pressuposição que urge abandonar. No caso da criança FH, o contacto com a sua LH ocorre sobretudo no seio da família e na sala de aula dos cursos extracurriculares de ensino dessa língua, quando frequentam estes programas. Ora, sabendo que, em condições normais, o contacto ativo e prolongado com a língua promove a sua aquisição2 (Brown, 1973), a descrição destes contextos e dos agentes sociais que os integram ajuda-nos a compreender, de forma complementar, como se desenvolve a competência na LH da criança bilingue e que representações sociais, identitárias e afetivas fundamentam este desenvolvimento. Por seu turno, a DL tem procurado explicitar aspetos relacionados com: i) as representações sociais acerca das LH (por parte da sociedade de acolhimento, dos professores, dos encarregados de educação e dos próprios alunos); ii) a construção da identidade linguístico-cultural dos FH; iii) a gestão e a articulação dos recursos afetivos, linguístico-comunicativos e cognitivoverbais em situações de aprendizagem em sala de aula e de interação social; iv) os vários estatutos e papéis escolares 2

Note-se que este processo não se cinge à linguagem oral.

© LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS

43


Didática do Português Língua de Herança

e extraescolares e os cenários de aprendizagem da LH; v) a gestão curricular da heterogeneidade do perfil do falante de uma LH pelos professores, nos diferentes níveis de ensino; vi) as necessidades formativas específicas dos professores que trabalham com este público; e, finalmente, vii) as políticas linguísticas desenvolvidas pelos países designados de origem e de acolhimento destinadas a regulamentar o ensino-aprendizagem das LH. Dito de outra forma, a DL, situada atualmente num paradigma plurilingue (Alarcão et al., 2009; Gajo, 2013), tende a privilegiar uma perspetiva plurilingue dos repertórios linguísticos, afetivos, cognitivos e comunicativos dos FH, na interação que estes estabelecem com e nos contextos socioeducativos, económicos e políticos. Ora, nestes contextos, marcados por dinâmicas plurideterminadas e imprevisíveis, jogam-se e manipulam-se identidades, estatutos, papéis, expectativas, pressões e tensões que a DL tenta compreender, explicitar e reutilizar em contextos de ensino-aprendizagem. Partindo deste breve enquadramento acerca das mais recentes tendências investigativas da Linguística e da DL, tentaremos, ao longo deste capítulo, responder às seguintes questões: • Que perspetivas teóricas de articulação das duas perspetivas disciplinares se podem vislumbrar, de modo a valorizar os repertórios plurais e heterogéneos dos FH e a evidenciar o carácter idiossincrático das suas competências na LH (Secção 2.2)? • Como é que, de um ponto de vista metodológico, se poderão estudar aqueles repertórios e competências, valorizando a perspetiva do falante/aprendente de LH, designadamente na análise dos seus discursos de uso da LH (Secções 2.3 e 2.4)? Para tal, partiremos de um conjunto de dados de diferente natureza (desenhos ou narrativas visuais, narrativas escritas e entrevistas orais) recolhidos junto de alunos de uma turma de Português Língua de Herança (PLH), na Alemanha, no ano letivo de 2012/2013. O objetivo da nossa análise será o de descrever, através da confluência de diferentes dados, a natureza e o desenvolvimento de uma LH, tanto da perspetiva da DL como da perspetiva aquisitiva. Tentaremos, por um lado, perceber como é que os alunos de PLH explicam e dão sentido às suas competências em LH em situações de uso: como falam da aquisição e do uso do PLH? Que processos julgam explicar esta aquisição? Que cenários, instrumentos e atores são apresentados como mediadores deste processo? Que comparações se estabelecem com a aquisição-aprendizagem de outras línguas? Com quem usam os conhecimentos que desenvolvem? Em que contextos? Existe uma demarcação, nos discursos dos alunos, dos processos de aquisição, de aprendizagem e de uso? Por outro lado, usaremos os dados recolhidos nas narrativas e a sua análise pela DL para demonstrar que o FH desenvolve uma competência plurilingue muito própria. Os dados permitem-nos demonstrar que esta competência é o resultado de um processo de aquisição natural, resultante da interação da criança com o meio 44

© LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS


“Em Casa Mais Português, mas também Alemão”: Perspetivas da Linguística e da Didática de Línguas sobre Narrativas de Uso da Língua de Herança

plurilingue em que está inserida e impulsionado pelo contacto com a LH e com outras línguas presentes na paisagem linguística local, nas diferentes situações de uso. O desenvolvimento da competência plurilingue do FH é, pois, mediado pelos diversos cenários, instrumentos e atores com os quais aquele falante interage.

2.2 da nECEssidadE dE uma abordagEm intEgrada do ConCEito “língua rança” PEla linguístiCa E PEla didátiCa dE línguas

dE

HE-

Num estudo anterior (Flores & Melo-Pfeifer, 2014), colocámos em destaque a confluência de algumas linhas de força da investigação em DL e da Linguística acerca das LH, que tentaremos desenvolver nesta contribuição. A primeira é a centralidade que ambas as disciplinas conferem aos discursos dos FH, numa perspetiva compreensiva dos fenómenos aquisitivos e linguísticos. No entanto, conforme cremos, muitos destes discursos dão corpo a um conjunto de representações sociais e imagens individuais alusivas ao domínio das LH, não espelhando na totalidade os contextos e os processos de aquisição, uso e manutenção daquelas línguas (ou deles só dando um vago reflexo!). Na verdade, não é raro encontrar, nos discursos do FH, afirmações discutíveis, baseadas em representações da sociedade de acolhimento ou de origem, da escola e dos professores, da comunicação social e do senso comum: que falam mal, que confundem as línguas, que misturam. Estes “escolhos” advêm de uma visão maximalista do conhecimento linguístico e de uma perspetiva que coloca, no sujeito bilingue, a projeção de dois sujeitos monolingues, considerados os únicos detentores de competência “nativa”. Na base desta visão distorcida estão falsos pressupostos acerca da mente humana e da nossa faculdade de linguagem, nomeadamente a ideia de que existe um processo e produtos de aquisição “corretos” e outros tidos como “desviantes”. Nesta ótica, o processo apelidado como correto é aquele que parte do estado inicial (a Gramática Universal, se quisermos seguir Chomsky, 1968) e termina pretensamente num estado final equiparado à competência linguística de um falante monolingue, projetado como tendo um conhecimento infalível e estático da sua LM. No entanto, mesmo a visão nativista da aquisição da linguagem, que coloca no centro de todo o processo um dispositivo inato de aquisição, reconhece a importância crucial do input ao qual o falante é exposto e das situações em que é chamado a usar as suas competências. Ora, é indiscutível que são os dados linguísticos presentes no input do falante, designadamente em situações de interação, que moldam a sua competência linguística. Se este input é multilingue, sobretudo se é multilingue desde os primeiros anos de vida, o falante desenvolve naturalmente uma competência multilingue e fá-lo de forma tão natural, complexa e dinâmica como um falante exposto a apenas uma língua. Isto significa que a mente humana não deixa de ativar, nem ativa de forma “desviante”, o seu dispositivo de aquisição da linguagem por estar exposta a mais de que uma língua. Por conseguinte, a competência que resulta deste processo é tão nativa com a de um falante exposto a apenas uma língua. É o que García (2005) © LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS

45


Didática do Português Língua de Herança

designa de “herança bilingue”, para se referir a repertórios que se adquirem (quase) simultaneamente. Um outro aspeto interessante, nesta centralidade conferida aos discursos dos FH, é a análise da subjetividade na descrição das práticas: há os sujeitos que negam qualquer competência nas LH e há os que as reivindicam sem as falarem, há os sujeitos que as excluem das suas práticas sociais e há os que as elevam a um nível fantasioso. A Linguística e a DL, através de uma análise dos fenómenos linguísticos e de uma análise crítica dos discursos dos sujeitos, podem trabalhar juntas para desvendar estas inconsistências, tentando explicá-las e rentabilizá-las, embora recorrendo a fontes teóricas e a estudos empíricos bastante diferentes. De facto, só é possível explicar esta subjetividade se concebermos a competência linguística do falante bilingue como um sistema de saberes complexo, dinâmico e multidimensional, sustentado por uma diversidade de fatores linguísticos e extralinguísticos, de que as duas disciplinas dão conta com diferentes enfoques. Assim, sabemos que o sujeito é capaz de mobilizar, total ou parcialmente, a multiplicidade dos conhecimentos linguísticos de acordo com o contexto de comunicação ou com os seus propósitos comunicativos e/ou expressivos (Grosjean, 2001). Muitas vezes, dificuldades de ativação (Paradis, 2004) ou habilidades de translanguaging (García & Wei, 2014) são erroneamente confundidas com falta de competência por parte dos próprios sujeitos e por parte da sociedade. Além disso, o saber linguístico engloba vários domínios, como o léxico, a morfossintaxe ou a perceção e produção dos sons, e, por vários motivos, nem todos estes domínios se desenvolvem de igual forma. É frequente conhecermos pessoas que consideramos muito proficientes numa ou em várias línguas mas que têm uma pronúncia que não se ajusta a um código linguístico coincidente com uma designada norma linguística (vulgo “língua”) ou, ao invés, é comum os FH apresentarem uma competência de perceção e produção fonética muito mais desenvolvida do que, por exemplo, a sua competência lexical (Knightly et al., 2003). A segunda linha de força daquele diálogo interdisciplinar é a relevância que ambas as disciplinas concedem ao contexto e às vivências migratórias, designadamente às formas, à qualidade e à quantidade de contacto que aqueles falantes têm com as suas línguas em diferentes contextos, com particular destaque para a LH e a língua maioritária. Neste quadro, ambas as disciplinas tenderão a conferir particular destaque ao contexto da investigação, tentando situar os estudos dentro de um enquadramento maior que coloca os sujeitos dentro da sua temporalidade e espacialidade. Deste modo, as produções linguísticas observadas e analisadas adquirem a espessura dos contextos em que são recolhidas, deixando de ser pensadas apenas na unidimensionalidade (complexa, certo!) do falante e das suas características individuais, como o sexo e a idade, e adquirindo toda a sua complexidade através da descrição e compreensão dos fenómenos e práticas sociais mais vastos. Assim, consideram-se o sujeito e as suas características individuais como determinantes nas competências e saberes, mas estes passam também a ser explicitados à luz das dinâmicas linguísticas e comunicativas sociais e socializantes (Blommaert, 2010) em que se envolvem. 46

© LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS


“Em Casa Mais Português, mas também Alemão”: Perspetivas da Linguística e da Didática de Línguas sobre Narrativas de Uso da Língua de Herança

Uma terceira linha de confluência interdisciplinar que reconhecemos, e em relação com os aspetos anteriormente evocados, é o reconhecimento de que se torna necessário sair de um paradigma exclusivamente comparativo da análise do desenvolvimento de competências, quer entre os FH e os “falantes nativos”, quer entre os FH e os aprendentes de uma língua estrangeira (LE) quer entre as competências em diferentes línguas de um mesmo sujeito. De acordo com esta perspetiva comparativa, o FH situa-se quer numa posição de défice quer numa posição de vantagem, o que não dá conta da originalidade e da mutabilidade dos seus repertórios, enquanto conjunto de saberes em evolução, feito de múltiplas confluências e influências. Esta perspetiva comparativa acentua a ideia, da qual claramente discordamos, de que o objetivo da aquisição da LH é atingir um estado comparável ao de um falante monolingue, o qual é idealmente equiparado ao “falante nativo”. Como realçámos anteriormente, esta abordagem tende a ignorar a especificidade da competência multilingue, eliminando outras possibilidades de maior complexidade, designadamente: • Os sujeitos poderão sentir-se mais expressivos e mais autênticos através de práticas linguísticas de crossing (Rampton, 1998) ou de translanguaging (García & Wei, 2014), porquanto estas se exprimem através de uma mobilização situada da multiplicidade de códigos semióticos disponíveis. • Os sujeitos poderão manipular os seus conhecimentos das diferentes línguas conforme as circunstâncias e de acordo com os seus objetivos comunicativos, para passar uma ideia de “identidade múltipla”, de “estrangeiro”, de “exótico”, para acentuar ou rejeitar diferentes tonalidades identitárias, como “timidez” ou “reflexividade”. • Os sujeitos bilingues constroem um saber linguístico complexo, com uma gramática própria, através da exposição, em situações concretas, a dados que desencadeiam a coconstrução do saber interiorizado do falante. A particularidade dos dados, provenientes de diferentes línguas, molda um saber linguístico muito particular, incompatível com a conceção de um “estado final monolingue” ou de uma “soma de monolinguismos”. Na verdade, para dar um exemplo e sair do paradigma monolingue e do paradigma bilingue assente em ideologias monolingues, outros fatores podem estar na origem de diferentes aspetos presentes em produções consideradas atípicas, designadamente a interação com línguas terceiras (De Angelis & Dewaele, 2011), por exemplo, as LE aprendidas em contexto escolar (Bono, 2011), ou mesmo o contacto com outros FH, com repertórios linguísticos em diferentes estágios de desenvolvimento. Neste sentido, ambas as perspetivas disciplinares reconhecem que a “competência linguística” não é um produto estável, mas antes um processo dinâmico e maleável, fruto das experiências linguísticas e das biografias dos falantes. É à luz destes pressupostos iniciais que consideramos, com May, que “greater interdisciplinarity thus opens up the possibilities of reconceptualizing and/or reconfiguring existing disciplines in order to overcome theoretical and research impasses” (2014: 15). Assim, o presente texto tenta explorar potenciais sinergias entre a Linguística © LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS

47


Didática do Português Língua de Herança

(de teor marcadamente cognitivista) e a DL (que reconhece a sua viragem epistemológica na discussão de fenómenos relacionados com o plurilinguismo) no campo de estudos da LH, tentando complexificar as abordagens mais comuns nas duas disciplinas.

2.3 Estudo EmPíriCo 2.3.1 Corpus e metodologia

O projeto que configurou este estudo intitulou-se “Imagens do (Ensino) Português

no Estrangeiro” (http://cepealemanha.wordpress.com/imagens-do-ensino-portugues-no-estrangeiro/) e visava conhecer representações de diferentes atores (professores e leitores, aprendentes, pais e encarregados de educação) e públicos do processo de ensino-aprendizagem do português em diferentes contextos (ensino integrado, ensino paralelo, cursos livres, opcionais ou integrados no currículo académico) acerca da língua portuguesa (LP) e do seu ensino-aprendizagem. Deste projeto, no âmbito do qual foram recolhidos os dados para esta contribuição, fizeram parte os seguintes momentos de recolha: • Questionário online a membros das comunidades portuguesas, a encarregados de educação, alunos e professores no estrangeiro. • Recolha de desenhos junto de crianças entre os 6 e os 12 anos do Ensino do Português no Estrangeiro (EPE), ilustrativas da instrução “desenha-te a falar as línguas que conheces”. • Recolha de desenhos, entrevistas de explicitação e textos descritivos dos desenhos junto de cursos selecionados. O nosso corpus foi recolhido no quadro desta terceira fase de recolha e é constituído por um conjunto de 10 entrevistas, desenhos e breves narrativas escritas (ver Anexo, com desenhos e excertos das respetivas narrativas de explicitação), realizadas em sala de aula, junto de alunos do Ensino Português na Alemanha, a cargo do Camões – Instituto de Cooperação e da Língua, no ano letivo de 2012/2013. Os dados foram recolhidos pela própria professora numa das suas três turmas, no Estado Federado da Renânia do Norte-Vestefália. Os desenhos foram digitalizados e as narrativas manuscritas pelos alunos foram transcritas num programa de texto corrente, mantendo a ortografia, a sintaxe e a pontuação originais. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas. A Tabela 2.1 apresenta o perfil etário e de proficiência linguística, assim como a nacionalidade das crianças e dos pais, tais como nos foram indicados pela professora da turma3. 3

48

Para salvaguardar o anonimato dos participantes, os seus nomes foram substituídos por pseudónimos.

© LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS


“Em Casa Mais Português, mas também Alemão”: Perspetivas da Linguística e da Didática de Línguas sobre Narrativas de Uso da Língua de Herança

nacionaLidade

código da entrevista

Pseudónimo

idade

País de nascimento

criança

a1

Félix

8

Alemanha

Alemã

a2

Rosa

8

a3

Feliciana

a4

Pai

5

mãe

níveL4

Português Portuguesa

A1

Alemanha

Portuguesa Português Portuguesa

A1

8

Alemanha

Portuguesa Português Portuguesa

A1

Bina

9

Alemanha

Portuguesa Português Portuguesa

A2

a5

Ana

9

Alemanha

Portuguesa Português Portuguesa

A2

a6

Joana

10

Alemanha

Portuguesa Português Portuguesa

A2

a7

Nuno

11

Alemanha

Portuguesa

Portuguesa

A1+

a8

Miguel

12

Alemanha

Portuguesa Português Portuguesa

A2

a9

Arnaldo

11

Alemanha

Portuguesa Português Portuguesa

A2

a10

Bia

11

Alemanha

Portuguesa Português Portuguesa

A2+

Espanhol

6

Tabela 2.1 – Perfil dos participantes 456

Em termos de análise, num primeiro momento, fizemos corresponder a cada desenho uma narrativa escrita e uma entrevista, conforme ilustra o exemplo da Tabela 2.2 (ver Anexo). desenHo

narrativa

transcrição da entrevista

Nexta Foto stou eu. Eu extou a surir. E extou a aprender.

Professora: Olá Rosa Aluna (Rosa): Olá Professora: Quantos anos é que tu tens? Aluna (Rosa): Oito Professora: Oito:::?...Olha...diz-me lá...descreve-me lá...esse desenho que tu tens aí? Aluna (Rosa): Sou eu (...)

Tabela 2.2 – Dados relativos à aluna Rosa

Para uma discussão crítica acerca da utilização dos níveis do Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas na descrição da proficiência dos FH, ver Flores & Melo-Pfeifer (2014). Transcrevemos a nota da professora: “Na nacionalidade da criança tive por base as inscrições dos alunos no curso online. Nas inscrições que os pais preencheram em papel, a maioria coloca as duas nacionalidades: alemã e portuguesa.”. 6 O pai já não integra o agregado familiar. 4

5

© LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS

49


Didática do Português Língua de Herança

No seu conjunto, estes três tipos de documentos, pelo contexto em que foram produzidos e pelo conteúdo, poderão ser designados por “narrativas”, no sentido em que espelham a perspetiva dos sujeitos sobre as suas vivências, tal como são contadas por eles ou com eles (Barkhuizen, 2013; Barkhuizen et al., 2014). No caso concreto deste estudo, são narrativas autobiográficas acerca do desenvolvimento e do uso da LH (em contextos formais e informais), elicitadas e mediadas pelo professor, no contexto da sala de aula. O primeiro tipo de narrativas solicitado, designado por Kalaja et al. (2013) como “narrativas visuais”, integra o que se poderia chamar “narrativas multimodais” (Barkhuizen et al., 2014:52) e reconhece o valor semiótico do desenho como produção individual da criança (Moore & Castellotti, 2011:119). Este tipo de narrativa é usado frequentemente em investigação etnográfica como estímulo para entrevistas de explicitação (como no caso deste estudo ou conforme relatado em Moore & Castellotti, 2011) ou isoladamente para dar conta da perspetiva dos sujeitos acerca de determinados aspetos (como em Melo-Pfeifer, 2014, ou Melo-Pfeifer & Schmidt, 2012), uma vez que é uma forma eficaz de aceder à imagem mental e às representações da criança acerca do seu mundo (Moore & Castellotti, 2011; Molinié, 2009). No nosso caso, a instrução dada às crianças foi “desenha-te a falar as línguas que conheces”. Os segundo e terceiro tipos de narrativas podem ser considerados, no âmbito deste estudo, como “narrativas de explicitação”, uma escrita e a outra oral. No primeiro caso, a criança descreve o que desenhou, por escrito; no segundo caso, através do formato de entrevista, a criança coconstrói, com a professora, o sentido da sua produção visual, enriquecida por um conjunto de outros elementos que adulto e criança consideram importante acrescentar no hic et nunc da situação comunicativa. Este terceiro tipo de dados – de produção oral livre – constitui a nossa base de análise linguística (Secção 3.2 deste capítulo). No âmbito deste estudo de caso, com um corpus deliberadamente reduzido, considerou-se importante cruzar esta tripla origem dos dados de forma a oferecer uma perspetiva multidimensional dos repertórios destas crianças. Recordamos que, em Melo-Pfeifer & Schmidt (2012), a análise exclusiva dos cerca de mil desenhos de crianças lusodescendentes na Alemanha foi suficiente para mostrar as imagens das línguas e culturas mais frequentemente associadas à Alemanha e a Portugal (e a outras línguas-culturas dos seus recursos linguístico-comunicativos). Dito isto, são os objetivos das investigações que ditam as necessidades e os processos metodológicos envolvidos na análise de narrativas.

50

© LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS


“Em Casa Mais Português, mas também Alemão”: Perspetivas da Linguística e da Didática de Línguas sobre Narrativas de Uso da Língua de Herança

2.4 PErsPEtivas intErdisCiPlinarEs lusodEsCEndEntEs

sobrE as

narrativas

das

Crianças

2.4.1 A Didática de Línguas: “Ah:::....então tu aprendes...alemão e português com a tua irmã?”

Uma primeira análise das narrativas visuais recolhidas mostram a LH associada a um contexto de ensino-aprendizagem, em sala de aula (o que pode ser uma intromissão do contexto de investigação, uma vez que os dados foram recolhidos neste contexto). Na verdade, as crianças ilustram situações de aprendizagem formal, num espaço marcado pela presença do quadro, dos livros e dicionários, das secretárias e da professora. Esta associação torna-se ainda mais óbvia quando analisamos as narrativas escritas de explicitação, em que a professora é mencionada mesmo quando não foi desenhada (Tabela 2.3 e Anexo, produções A5): desenHo a5

narrativa

excerto da entrevista a5

No meu desenho eu estou a ver uma Meninha. E ela esta dizer Eu gosto de Portugal. Ela aprende Almãho Portuguez e English. Ela esta semtada e esta a ver o que a Porfessora escreveu. Ela esta a trabhalar a meninha.

Professora: Eu gostava que tu me descrevesses... o que é que tu tens aí desenhado...à tua frente Aluna (Ana): Eu tenho a mim a dizer que gosto Portugal...e hhh...tu escrevestes...eu...e...em alemão...e...tu...e nós...e eu aprendo na escola... alemão e... inglês Professora: E:::? Aluna (Ana): Português Professora: Ah:::...E como é que tu aprendes essas línguas todas...explica lá...o que é que tu fazes pa aprender alemão por exemplo? Aluna (Ana): Hhhh...a ler:::...a escrever:::...a ver em livros:::...

Tabela 2.3 – Dados relativos à aluna Ana (nove anos)

Este tríptico evidencia, adicionalmente, a relevância do cruzamento das informações visuais, escritas e orais, uma vez que, a par de informações que se repetem, outras emergem apenas em alguns dos suportes. É também curioso observar que, © LIDEL EDIÇÕES TÉCNICAS

51



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.