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Compreendendo historiograficamente o período de 1835 a 1885, esta obra tenta ainda descrever, nas suas várias vertentes, a evolução dos processos que nortearam o início da assistência aos doentes mentais, sem esquecer as causas e consequências políticas do próprio pensamento estatístico, que por sua vez terão interagido com o desenvolvimento científico. É ainda referido o aporte intelectual que os principais alienistas portugueses de então, sobretudo Joaquim Pedro Bizarro, Miguel Bombarda, Júlio de Matos e António Sena, tiveram da medicina europeia, bem como os efeitos que perduraram nos últimos anos do século XIX.
ISBN 978-989-752-394-6
9 789897 523946
NUNO BORJA SANTOS
Nuno Borja Santos – Médico Psiquiatra; atualmente dirige a Unidade de Internamento de Doentes Agudos do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Dr. Fernando Fonseca; doutorado em História, Filosofia e Património da Ciência pela Universidade Nova de Lisboa (2016); autor do livro Parafrenias publicado pela Lidel.
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Este livro permitirá ao leitor ter uma completa visão histórica e estatística dos primeiros cinquenta anos da Psiquiatria em Portugal, partindo da posição filosófica de Ian Hacking acerca da implicação da estatística oitocentista.
OS PRIMEIROS CINQUENTA ANOS DA PSIQUIATRIA PORTUGUESA
OS PRIMEIROS CINQUENTA ANOS DA PSIQUIATRIA PORTUGUESA (1835-1885)
11,5 mm
14,5 cm x 21 cm
NUNO BORJA SANTOS
OS PRIMEIROS CINQUENTA ANOS DA PSIQUIATRIA PORTUGUESA (1835-1885)
Uma viagem à luz da estatística
Índice
Autor................................................................................................................
VII
Agradecimentos................................................................................................ VIII Prefácio............................................................................................................ IX Nota Prévia...................................................................................................... XXI Introdução....................................................................................................... XXIII
1 A doença mental e a assistência aos alienados em Portugal................... 1
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A era pré-moderna..................................................................................... 1 O pós-guerra peninsular............................................................................ 3 A abertura do Hospital de Rilhafoles......................................................... 10 Aspetos gerais ...................................................................................... 10 Implementação do asilo ....................................................................... 12 A instituição entre 1848 e 1885................................................................. 17 Os livros de registo de admissões e papeletas......................................... 18 Os livros de registo de ofícios expedidos............................................... 32 O Hospital Conde de Ferreira................................................................... 44 A abertura............................................................................................ 44 O arquivo............................................................................................. 50 As terapêuticas usadas................................................................................ 52 Enquadramento legal................................................................................. 54 Bibliografia................................................................................................ 56
2 A Produção escrita da Psiquiatria portuguesa de 1835 a 1885.............. 61 Os periódicos............................................................................................ 61 A segunda metade da década de 30....................................................... 61 De 1840 a 1885................................................................................... 77 Os compêndios......................................................................................... 86 V
Os Primeiros Cinquenta Anos da Psiquiatria Portuguesa
A obra de Miguel Bombarda................................................................ 87 A obra de António Sena........................................................................ 92 A obra de Júlio de Matos...................................................................... 104 Bibliografia................................................................................................ 112 Conclusões....................................................................................................... 121 Tabelas............................................................................................................. 129 Índice Remissivo.............................................................................................. 149
VI
Autor Nuno Borja Santos
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Nuno Borja Santos nasceu em 1958, em Lisboa, licenciando-se em Medicina em 1986, após frequência do curso de Biologia da Faculdade de Ciências. Especializou-se em Psiquiatria no Hospital Miguel Bombarda, em 1993. Atualmente dirige a Unidade de Internamento de Doentes Agudos do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Dr. Fernando Fonseca. Membro da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde. É doutorado em História, Filosofia e Património da Ciência pela Universidade Nova de Lisboa (2016). É autor do livro Parafrenias (2015) da mesma editora.
VII
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Prefácio Pediu-me o Dr. José Nuno Borja Santos para prefaciar o seu livro Os primeiros cinquenta anos da psiquiatria portuguesa (1835-1888): uma viagem à luz da estatística, baseado na sua tese de doutoramento, efetuada na Faculdade de Ciências e Tecnologia, da Universidade Nova de Lisboa, sobre A importância da estatística na emergência da Psiquiatria portuguesa no século XIX. Aceitei com prazer o seu convite, pois conheço bem as suas qualidades de trabalho e inteligência desde que comigo trabalhou no Hospital Miguel Bombarda, há alguns anos. Este estudo, que agora apresenta, constitui, entre nós, um trabalho ímpar de investigação sobre uma época fundamental da nossa Psiquiatria, que levou à inauguração dos hospitais de Rilhafoles e Conde de Ferreira, e sobre os estudos estatísticos que o permitiram. Assim, debruçou-se sobre os trabalhos de Joaquim Pedro de Abranches Bizarro nas enfermarias de S. Teotónio e Santa Eufémia, do Hospital de S. José, para onde tinham transitado os doentes “fora do seu siso” que se encontravam internados no Hospital de Todos-os-Santos e que, depois do terramoto de 1 de novembro de 1755, foram transferidos para aquelas enfermarias, e sobre os estudos de António Ribeiro e Bernardino António Gomes, visando a organização de um hospital psiquiátrico em Portugal, o último dos quais efetuado em vários países da Europa. Também analisa a ação dos primeiros diretores do Hospital de Rilhafoles, que foram, sucessivamente, Caetano Beirão, Martins Pulido, Guilherme Abranches e Caetano da Silva, através dos seus relatórios e da análise do funcionamento daquele hospital, centrando-se, fundamentalmente em dados estatísticos. Também analisa a fundação do Hospital Conde de Ferreira, no Porto, e o seu funcionamento, de acordo com os livros e relatórios dos seus dois primeiros diretores, António Maria de Sena e Júlio de Matos. Estudou ainda estas duas instituições através dos respetivos arquivos, nomeadamente no que se refere aos livros de admissões e altas e os correspondentes aos ofícios de pedidos, assim como às terapêuticas neles usadas e o respetivo enquadramento legal, quer no que diz respeito à própria instituição quer aos respetivos doentes. IX
Os Primeiros Cinquenta Anos da Psiquiatria Portuguesa
Finalmente, analisa toda a produção científica ligada à Psiquiatria e a outros trabalhos estatísticos, como o efetuado por Clemente José Bizarro, irmão de Joaquim Pedro, já citado, que publicou uma análise estatística sobre a epidemia de “cólera-morbo”, que então tinha atingido a sociedade portuguesa, dando particular ênfase às publicações do Jornal da Sociedade de Ciências Médicas. Divide este período em duas épocas, uma mais produtiva, entre 1835 e 1840, e outra entre 1840 e 1885, marcada por uma certa decadência da produção científica, sobretudo no âmbito da estatística. Enfim, debruça-se sobre as ações e publicações das três grandes figuras da Psiquiatria portuguesa da época: António Maria de Sena, Miguel Bombarda e Júlio de Matos. Com eles termina, aliás, o período do domínio do positivismo na Psiquiatria portuguesa, conforme reconhece Barahona Fernandes. Sobral Cid, profundamente influenciado pela obra de Freud, tinha uma conceção marcadamente psicoterapêutica na abordagem dos doentes mentais, e Barahona Fernandes uma visão holística e integrativa da doença mental que, aliás, apresentou e defendeu na sua ultima lição como professor de Psiquiatria. Não quer isto dizer que antes de 1835 não houvesse atividades, porventura importantes, na Psiquiatria portuguesa, conforme o próprio autor, aliás, refere. Assim, não podemos deixar de mencionar a ação de três figuras importantes da nossa História, que, de resto, são referidas pelo autor deste trabalho. Pedro Hispano, depois Papa João XXI (que se encontra enterrado em Viterbo, Itália), foi uma figura importante da medicina da Alta Idade Média e usou um tratamento eficaz contra a epilepsia; o Rei D. Duarte, que, na sua obra O Leal Conselheiro, tem um capítulo em que conta: “Em como adoeci com humor merencório e do que se seguiu”; e, finalmente, acima de todos, S. João de Deus, que organizou uma verdadeira comunidade terapêutica em Granada, na qual desenvolveu o tratamento de doentes mentais, conforme se pode ver nos frescos que ornamentam a igreja que tem o seu nome, em Lisboa. Citemos ainda os trabalhos de Garcia de Orta, no século XVI, sobre produtos (na sua maioria naturais) que poderiam ser usados no tratamento de várias doenças, incluindo em algumas de base psicológica, no seu Colóquio dos Simples e Drogas, muito influenciado pelos Descobrimentos Portugueses. No presente trabalho, o autor, parte das conceções de Ian Hacking sobre o desenvolvimento da estatística no mundo ocidental, sobretudo a partir do século XIX, e a sua aplicação às ciências naturais e sociais (ainda que as X
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Prefácio
primeiras ações neste campo remontem ao século XVII, a Blaise Pascal e à Academia de Port Royal), para analisar a evolução da Psiquiatria naquele período, como, aliás, já referimos. Em França, Foucault, na sua Histoire de la folie à l’âge classique, considera que no período da monarquia absoluta, sobretudo nos reinados de Luís XIV e Luís XV, se verifica o encerramento dos doentes mentais e dos marginais, em geral, nos chamados Hospitais Gerais (que nada têm que ver com os hospitais gerais dos nossos dias), o que implicava, necessariamente, a sua exclusão da sociedade. Através das suas várias obras, como Les mots et les choses, L’archéologie de Savoir, Surveiller et punir, Dits et écrits, Foucault desenvolveu estes conceitos, estabelecendo a sua teoria crítica e a sua crítica da ideologia, pedras angulares do seu pensamento. Nada disto existiu em Portugal. Ainda que D. João III tivesse pedido ao seu físico-mor que tratasse dos doentes “fora do seu siso“ que se encontravam no Hospital de Todos-os-Santos, a maioria dos doentes mentais vivia em situação de total abandono e a figura do louco da aldeia era uma imagem vulgar na literatura coeva (Ângelo Ribeiro). O incêndio do Hospital de Todosos-Santos, em agosto de 1750, e sua posterior destruição durante o terramoto de 1755, levou Pombal, muito marcado pelas ideias absolutistas (ainda que considerado, geralmente, um déspota iluminado), a determinar que os doentes mentais fossem transferidos para o Palácio Almada, para a enfermaria, posteriormente designada por S. João de Deus, e depois para as já referidas enfermarias de S. Teotónio e Santa Eufémia, do Hospital de S. José. Todos estes factos põem, portanto, o problema da influência da Psiquiatria francesa em Portugal, que está presente ao longo de todo o presente trabalho. A França era, desde o início do século XVII, a primeira potência do mundo. Esta posição foi, sobretudo, marcante no reinado de Luís XIV. Apesar das derrotas de fim do reinado, os tratados de Utrecht e Rastatt parecem manter esse predomínio, não obstante algumas perdas territoriais verificadas nas colónias. Mas o tratado de Paris, assinado no reinado de Luís XV, se, por um lado, confirma a França como grande potência continental, faz-lhe, por outro, perder a sua posição de primeira potência mundial, que passa para o Reino Unido. Em compensação, no campo artístico e cultural a sua posição vai manter-se até aos anos 50 do século XX (altura em que passa para os EUA). De qualquer modo, nos anos 50 e 60 do século XX, a França consegue ainda um número incomparável de prémios Nobel de Literatura, com Gide, Mauriac, Camus, Saint-John, Perse e Sartre (que o recusou, todavia). O grande século XI
Os Primeiros Cinquenta Anos da Psiquiatria Portuguesa
XVII marca a sua importância neste campo e nele avultam grandes figuras da literatura mundial, como Corneille, Racine, La Fontaine, La Rochefoucauld, para além de outros (Molière e os libertinos) que mostram uma atitude marcadamente crítica para a sociedade, que põem em causa. Mas o século XVIII (o século das luzes), com os chamados filósofos (Voltaire, Rousseau, Diderot e d’Alembert – os criadores da Enciclopédia – e Montesquieu, um crítico do antigo regime que defendeu a separação dos poderes do Estado) acentuou aquela última atitude. O francês torna-se, entretanto, uma língua franca entre Madrid e S. Petersburgo. Esta posição crítica relativamente à sociedade de então vai repercutir-se na própria evolução política da França, cuja ação se vai notar na guerra da independência dos EUA, na qual se verifica uma recuperação da Marinha de guerra e, por outro lado, uma intervenção num conflito claramente libertário. Todos estes factos vão levar à Revolução Francesa e, depois, às guerras da França com o resto da Europa, durante o consulado de Napoleão Bonaparte. Através dos exércitos franceses, as ideias revolucionárias espalham-se pela Europa (em Portugal, muitos dos chamados afrancesados foram oficiais ou antigos oficiais do exército napoleónico). Apesar da sua prudente política, o príncipe regente (futuro D. João VI) viu chegar o momento em que tinha de escolher entre o império Francês e o Reino Unido, seu tradicional aliado e cujas tropas se preparavam para ocupar a Península Ibérica, pelo que decidiu retirar-se para o Brasil, onde criou uma nova nação pujante no hemisfério Sul, ao mesmo tempo que evitava as situações difíceis que tinham ocorrido entre a família real espanhola e Napoleão. Mas deixou o seu país original (Portugal) decapitado e numa situação de grande instabilidade, entregue às disputas entre anglófilos e francófilos e sob o governo de um oficial inglês intratável e despótico, o general Beresford. A revolução liberal de 1820 pôs fim ao governo do militar inglês, enquanto D. João regressava a Portugal, deixando como regente do Brasil o seu filho, D. Pedro. O príncipe acabou por se proclamar Imperador do Brasil, ao mesmo tempo que uma longa luta se abria em Portugal, entre liberais e absolutistas. Entretanto, D. Pedro, que sucedera ao pai como rei de Portugal, promulgou uma Carta Constitucional, em 1826, e abdicou da coroa portuguesa em favor da sua filha, D. Maria II, uma vez que se tornara impossível manter os dois povos (portugueses e brasileiros) sob a égide de um soberano comum. Depois de uma revolução no Brasil, que o levou a abdicar da coroa daquele país, sendo sucedido pelo seu filho, D. Pedro II, D. Pedro assumiu o comando XII
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Prefácio
das forças liberais em Portugal. O seu Ministério, de que fazia parte Mouzinho da Silveira, promulgou, ainda na ilha Terceira, nos Açores, uma legislação que alterava completamente o regime de propriedade em Portugal (completando e alargando as disposições da Carta). A morte precoce de D. Pedro, deixando o poder nas mãos inexperientes de D. Maria II, não facilitou as coisas. Depois de se ter dividido entre liberais e absolutistas, o país cindiu-se entre Setembristas (favoráveis à restauração da Constituição de 1820) e Cartistas, (naturalmente favoráveis à Carta). Costa Cabral, que integrava um ministério Setembrista, foi ao Porto proclamar novamente a Carta Constitucional, que tinha sido substituída, entretanto, pela Constituição de Setembro. Costa Cabral pôde inspirar, assim, um novo Ministério, chefiado pelo Duque da Terceira, que ficou marcado pelo seu carácter atrabiliário, mas, sobretudo, por uma importante política de fomento, como reconhece o seu admirador, Barbosa Colen. Apesar desse desenvolvimento, e devido às referidas características de carácter, as quais, naturalmente, influenciaram o seu Governo, Cabral acabou por ser derrubado por uma revolução (a Revolução de Maria da Fonte). Contudo, depois de alguns conflitos que levaram a uma curta guerra civil, o Partido Cartista voltou ao poder, através do Governo do Duque de Saldanha, que, consequentemente, Costa Cabral apoiava. Foi este Governo que, em 1848, criou o Hospital de Rilhafoles (e não o Governo da Regeneração, também presidido por Saldanha, criado em 1851, mas em oposição a Costa Cabral e à direita do Cartismo), em consequência de o Presidente do Conselho se sentir condoído, numa atitude própria da sua personalidade, com a sorte dos doentes mentais. Em resumo, as ideias liberais, como as novas conceções de Psiquiatria, vinham de França, porque este era o país então dominante e onde aquele tipo de pensamento nasceu. Aliás, só a coligação de toda a Europa conseguiu vencê-la e dominá-la. Todo o complexo movimento político que acima descrevemos muito sucintamente está ligado às novas ideias sobre a igualdade de todos os homens e a necessidade de compreensão entre eles (liberdade, igualdade e fraternidade era o lema da Revolução Francesa). Viagens na minha terra e Frei Luís de Sousa, de Garrett, assim como Eurico, o Presbítero, Opúsculos ou Harpa de Crente, de Herculano, transmitem-nos esta perspetiva. XIII
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É neste contexto que Pinel, simbolicamente representado como tendo libertado os doentes mentais das suas “correntes”, exige uma atitude de tolerância, respeito e compreensão para com eles, centrada nos chamados “tratamentos morais”, assentes no uso do trabalho e no evitamento dos castigos, tão usados na época do “grande encerramento”. Assim, esta abordagem foi a expressão das novas ideias e deixava de encorajar a repressão usada durante o absolutismo, apesar de se ter de reconhecer que o regime absolutista procurou sempre respeitar os direitos da nação e dos súbditos, ainda que como membros das ordens que integravam aquela. Por outro lado, a ideia de uma análise estatística na organização e implementação das novas terapêuticas não pode ser separada do cenário em que ocorre. A França napoleónica necessitava de estatísticas bem estruturadas. Era um Estado fortemente centralizado e organizado, muito vasto e povoado, que estava constantemente em guerra e que precisava de manter e satisfazer as necessidades do povo, assim como a organização, deslocamento e necessidade de substituição dos seus exércitos. Só assim se compreende que depois de uma campanha tão destruidora para as forças francesas como fora a da Rússia, Napoleão conseguisse organizar rapidamente as suas tropas, substituindo-as pelo exército dos “Maria Luísas”, para fazer face à sublevação que, entretanto, acontecia na Alemanha. A resposta britânica ao Bloqueio Continental decretado por Napoleão contra o Reino Unido provocou o ataque e destruição de navios mercantes franceses, que levavam para França o açúcar oriundo das ilhas do Atlântico, as Antilhas, que então dominava, pelo que houve a necessidade de se organizarem extensas culturas de beterraba que permitiram a extração daquele produto. Também aqui era necessário organizar solidamente as estatísticas nacionais francesas para responder àquelas necessidades. Mas, numa nação com uma cultura tão rica nos planos literário, artístico e, evidentemente, científico, era natural que este desenvolvimento da estatística se repercutisse na sua aplicação às ciências naturais e sociais. O famoso estudo de Émile Dürkheim sobre o suicídio (1897) mostra bem a sofisticação e desenvolvimento que tais trabalhos exigiam e as contribuições que a análise estatística deram para a sua realização. O trabalho de Pinel, continuado pelo seu discípulo e sucessor, Esquirol, assenta igualmente em estudos estatísticos (como refere o Dr. Borja Santos no seu trabalho), os quais não podemos separar deste contexto global que atinge XIV
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Prefácio
a França do século XIX e que, aliás, é mantido pela monarquia constitucional que sucedeu a Napoleão e que se mostrou capaz de conciliar a paz e o desenvolvimento com a liberdade política. Esta situação não se mantém, contudo, durante todo o século XIX, e Magnan e Morel (1852, 1860, 1867) afastam-se das ideias de Pinel e Esquirol, criando o conceito daquilo que, segundo eles, atingia os doentes mentais. Estas pessoas seriam, na sua essência, indivíduos com uma degenerescência diferente da dos outros indivíduos. Ao mesmo tempo, o uso de estatísticas passa a ser menos usado nestas situações, porque menos necessário neste contexto. A Psiquiatria francesa vai perdendo, entretanto, o seu prestígio e vai sendo substituída pela Psiquiatria alemã como entidade dominante, a nível mundial, neste campo. Esta situação vai manter-se até 1945, altura em que este predomínio passa para os EUA, situação que se mantém até hoje. É neste contexto que aparecem os trabalhos de Haecker (1871), sobre a hebefrenia, e de Kahlbaum (1874), sobre a catatonia. Mais tarde, Emil Kraepelin vai unir estas duas situações com outras, no seu conceito de demência precoce (1893), uma designação que Eugen Bleuler (1911), já profundamente influenciado pela psicanálise, vai substituir por esquizofrenia. Não podemos também esquecer a contribuição de um povo de língua alemã, a Áustria (através de Freud), e da própria Alemanha, através do grupo de Berlim, no qual avultam os nomes de Mélanie Klein e Wilhelm Reich, para a organização e desenvolvimento da psicanálise. A Alemanha aparecia também como um país de fortes tradições culturais. Se a literatura alemã, apesar de incluir figuras brilhantes como Göethe e Schiller, estava longe de atingir a grandeza e a importância da homónima francesa, em compensação, no campo da Filosofia integrava figuras da maior relevância a nível mundial, como Kant, Hegel, Schopenhauer ou Nietzsche (para além de outras que, não sendo alemãs, foram fortemente influenciados pelos filósofos daquele país, como Kierkegaard), enquanto a França estava numa posição claramente inferior neste campo do conhecimento, com Cabanis, Condorçet, Condillac e Comte. Um último ponto que gostaria de sublinhar neste trabalho é a importância que, cada vez mais, a bioestatística tem como eixo fundamental de investigação psiquiátrica. Conjuntamente com a epidemiologia, ela constitui a ferramenta principal do planeamento psiquiátrico e vai permitir organizar, em novos termos, a promoção da Saúde Mental, com os seus três níveis de XV
Os Primeiros Cinquenta Anos da Psiquiatria Portuguesa
prevenção: primária ou profilaxia, secundária ou diagnóstico precoce e tratamento e, finalmente, terciária ou reabilitação. Em 1964, Leopold Bellak, no seu Manual de Psiquiatria Comunitária, considerava que tinha havido três revoluções psiquiátricas: a de Pinel, permitindo desenvolver a aceitação do doente mental e ver o seu tratamento como uma possibilidade de recuperação; a de Freud, que levava a uma nova compreensão dos problemas do homem através do estudo e análise da metapsicologia; e, finalmente, a psiquiatria comunitária, que levara a uma nova visão da intervenção em Saúde Mental, centrada na própria comunidade. A estas três revoluções, Linn veio juntar uma outra – que se situava entre a segunda e a terceira referidas por Bellak – que consistia na utilização das instituições como veículo da ação terapêutica. Surgiu como reação ao uso e desenvolvimento de atitudes repressivas contra os doentes mentais tomadas durante a II Guerra Mundial, sobretudo pelo regime nazi e similares. Várias foram as intervenções que podiam integrar este tipo de ação, como a psicoterapia institucional francesa, as comunidades terapêuticas, quer as de expressão analítica (Foulkes, Bion, Main) quer as de Maxwell Jones, ligadas ao desenvolvimento do que ele denominava Psiquiatria Social e que visava uma ação centrada na comunidade, e, ainda, a terapêutica ocupacional. Levanta-se aqui o problema das chamadas terapêuticas de mediação, que implicavam o desenvolvimento de uma ação terapêutica através de uma atividade e, só muito acessoriamente, pelo uso da palavra e que levam a uma modificação do funcionamento do indivíduo. São oriundas do tratamento moral de Pinel e Esquirol, da terapêutica mais ativa de H. Simon, centrada na organização ergo e socioterapêutica das enfermarias, da ergoterapia e da terapêutica ocupacional, estas muito difundidas entre nós, nomeadamente nos hospitais Júlio de Matos e Miguel Bombarda, e que foram objeto de um livro de Barahona Fernandes e Seabra Dinis, que teve muito êxito quando foi publicado. Neste contexto global, Freud chamou também a atenção para a importância, nestas situações, da contribuição da atividade onírica e da criatividade, e, na sua esteira, Winnicott deu particular atenção aos aspetos da transitividade. Também a socioterapia, introduzida inicialmente pelas citadas comunidades terapêuticas, de que foi exemplo, entre nós, a experiência do Dr. Medina no Hospital Miguel Bombarda, por ser veiculada pela própria organização do sistema, como ocorreu na psicoterapia institucional francesa, e, com Sivadon em La Varrière nestas atividades psicoterapêuticas. Também a utilização de XVI
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Prefácio
grupos pode ter uma ação catalisadora nestas atividades, como afirma Käes, e como eu próprio desenvolvi nos hospitais de Santa Maria (hospital de dia) e Miguel Bombarda, nas enfermarias em que estavam integradas as equipas que ali dirigi. O desenvolvimento de intervenções autogestionárias, levadas a cabo por J. Bierer (entre outros), com os clubes sociais terapêuticos, hospitais de dia e hospedarias comunitárias autodirigidas, completam este quadro. Se entrarmos agora nos novos aspetos que têm caracterizado, nos últimos anos, a intervenção na comunidade, chamaremos a atenção para a importância dos programas residenciais, como o “encontrar residência em primeiro lugar” (usado para os sem-abrigo), que visam a reinserção destes indivíduos na comunidade, e aqueles que visam integrá-los no mundo do trabalho, como os realizados na Colónia do Sacramento e/ou em Fountain House. Não se pode ainda deixar de sublinhar a cada vez maior importância atribuída aos utentes na organização destes programas, algo que se tem desenvolvido ao longo dos últimos anos e é hoje considerado fundamental para a planificação da Saúde Mental. Para se obter esta ação é necessário transmitir o poder (empowerment) aos utentes e organizar grupos que possam analisar os resultados obtidos com o desenvolvimento desses programas (grupos de recovery). Assim, passou-se de uma planificação centrada nos cuidadores para outra que tem como eixo os próprios utentes, o que, aliás, já estava prefigurado nas conceções da terapêutica autogestionária de Bierer e outros já referidos. Claro que a descrição, que temos vindo a fazer, dos cuidados que visam a promoção da Saúde Mental e que estão expressas nas narrativas de Bellak e Linn, (atrás referidas), centram-se, sobretudo, nos aspetos psicológicos da intervenção e nos níveis de planeamento utilizados. Esquecem (ou parecem esquecer) os extraordinários avanços verificados no campo do conhecimento da anatomia do sistema nervoso central (SNC), ocorridos desde a década de 80 do século XX, e que são particularmente relevantes no campo da Neurohistologia, repercutindo-se no também campo da Neurofisiologia, o que levou a uma maior compreensão do funcionamento dos órgãos centrais do SNC, particularmente do encéfalo, do diencéfalo e do tronco cerebral, que constituem a base do funcionamento mental do indivíduo. Em certos casos, explicam os desenvolvimentos, conceitos e perspetivas oriundos da própria psicanálise, criando-se, assim, novas perspetivas que fazem a síntese entre estas duas disciplinas, no que é designada por neuropsicanálise. XVII
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Por outro lado, também não podemos esquecer o grande desenvolvimento que tem ocorrido na área da psicofarmacologia, algo que nos tem permitido tratar situações psiquiátricas que, no passado, nunca pensávamos poder fazer. Também não podemos esquecer os grandes progressos verificados na área da Psicologia, sobretudo a partir de Freud. A evolução ocorrida no campo da compreensão do outro foi igualmente muito importante para a Psiquiatria. O estudo do caso Schreber, por Freud, dá-nos uma visão da esquizofrenia, então denominada “demência precoce”, que não existia antes da publicação daquele trabalho. De modo similar, o estudo da personalidade e problemas do pequeno Hans deu-nos uma compreensão nova das fobias (e, naturalmente, dos estados de pânico, como hoje são designadas). Não podemos ainda deixar de referir a grande evolução obtida com as novas técnicas de psicoterapia, como as técnicas cognitivas, de expressão corporal e outras. Pinel abriu o caminho ao desenvolvimento da Psiquiatria como disciplina científica. Sem ele, toda a evolução atrás descrita, incluindo a abordagem freudiana, não seria possível. Esta evolução foi muito auxiliada pelo uso da estatística que, como vimos, estava muito desenvolvida em França, por razões ligadas à própria organização do Estado. Foi este estudo que o Dr. Borja Santos fez e do qual nos deu uma compreensão especial. Também não podemos deixar de sublinhar a grande influência que o Dr. Borja Santos mostrou que Pinel tinha tido na Psiquiatria portuguesa e, em particular, nas três grandes figuras representativas desse período: António Maria de Sena, Miguel Bombarda e Júlio de Matos. Para terminar, detenhamo-nos momentaneamente naquele que acabou por dar o nome ao Hospital Rilhafoles, instituição que ele próprio dirigiu – Miguel Bombarda. Este médico deixou uma descrição apocalíptica das circunstâncias em que se encontravam os doentes mentais naquele hospital: encerrados em celas, onde recebiam a comida através de um postigo (como ainda hoje se pode ver no espaço museológico que constitui a enfermaria prisão), por vezes nus ou seminus, mesmo nos dias de inverno, deitados sobre palha, muitas vezes coberta pelos seus próprios dejetos. Esta descrição nada tem que ver com os doentes que existiam naquela instituição durante os últimos anos em que dirigiu o hospital, já que os utentes usavam os seus próprios fatos e eram apoiados por um serviço de reabilitação, XVIII
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em casos de tratamentos prolongados, ou em hospitais de dia, situados nas áreas de intervenção das respetivas equipas cuidadoras, que também procuravam deslocar os próprios internamentos para aquelas zonas. Um programa residencial já fora também ali desenvolvido, o que permitiu diminuir o número de doentes internados. Mas toda esta evolução parecia pré-anunciar o fim próximo do hospital, já que deixara de corresponder às novas necessidades de uma instituição psiquiátrica moderna e às próprias funções residenciais que vinha a desempenhar. O Hospital Miguel Bombarda correspondeu a uma determinada época histórica, durante a qual foi muito importante para a Psiquiatria portuguesa. Ao inaugurá-lo, Saldanha soube responder às necessidades do seu tempo. Ele não conhecia, certamente, a obra de Pinel, ao contrário dos psiquiatras da época, como Bizarro e Bernardino António Gomes, e, depois deles, Bombarda e Júlio de Matos. Mas concluiu que era necessário fazer algo pelos doentes mentais e conseguiu-o. Depois disso, o hospital chegou a ser utilizado como centro de formação e de ensino da Psiquiatria em Portugal. Nos últimos anos da sua existência, procurou-se prepará-lo para uma transição lenta para uma situação de apoio às equipas cuidadoras que ali trabalhavam. Mas essa ação preparava já o seu encerramento, algo que acabou por ocorrer, já que a instituição deixou de corresponder às novas necessidades da promoção da Saúde Mental. O Dr. Borja Santos mostra-nos, neste trabalho, como a ação de Pinel se foi fazendo sentir nos psiquiatras portugueses, levando o próprio Presidente do Conselho e o Estado, em geral, a responderem à evolução da atitude perante a doença mental e como, para isso, foi decisiva a análise estatística da situação existente. E, acrescentarei eu, quando a mesma análise levou a que se considerasse o hospital inútil, levando ao seu encerramento. Foi isso que o Dr. Borja Santos nos ensinou neste trabalho, é essa a grande contribuição do mesmo.
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António Guilherme Ferreira
Chefe de Serviço de Psiquiatria do Hospital Miguel Bombarda e seu Diretor (de 1986 a 1997) e Diretor Clínico (de 1986 a 1994).
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Nota Prévia Esta obra baseia-se numa tese de doutoramento, cujo objeto foi o de avaliar se a teoria de Ian Hacking acerca do desenvolvimento da estatística no mundo ocidental, nomeadamente na sua aplicação às ciências naturais e sociais, se verificou no nascimento da Psiquiatria portuguesa. Por outras palavras, a hipótese investigada incidiu sobre a possibilidade de os alienistas portugueses da época se terem apetrechado ou não, em termos científicos, de referências estatísticas que, de acordo com o autor canadiano, já então eram usadas noutros países, sobretudo em França (embora também por razões políticas), para, nomeadamente, aperfeiçoar os sistemas classificativos das doenças mentais que, então, davam os primeiros passos na Psiquiatria europeia. Esta investigação fez-se tanto no que diz respeito à análise da bibliografia existente e, como tal, do pensamento de alguns alienistas portugueses do século XIX, bem como através da documentação dos arquivos do Hospital de Rilhafoles. Refletiu-se ainda sobre a existência de um eventual efeito de feedback que o pensamento estatístico possa ter operado sobre a produção científica e os relatórios daquela instituição, no sentido de influenciarem o desenvolvimento da Psiquiatria portuguesa e a assistência aos alienados no país. No entanto, com este trabalho também se pretendeu, para além de dar a conhecer e valorizar a importância dos dados estatísticos no funcionamento do hospital, que cessou funções em 2012, preencher uma lacuna na história da Psiquiatria portuguesa do século XIX, cujo conhecimento é ainda incipiente, sobretudo no que se refere à sua primeira metade. A presente obra, continuando a manter a estrutura daquela tese, valoriza mais, contudo, as questões relacionados com a investigação histórica da Psiquiatria portuguesa do século XIX e a sua produção escrita (tanto através da imprensa como de livros), embora norteada pela ligação ao eventual pensamento estatístico das suas principais figuras e pelo desenvolvimento científico nas instituições psiquiátricas nacionais – os hospitais de S. José, de Rilhafoles e Conde de Ferreira. Este último aspeto tem que ver com o período temporal escolhido: 1835 a 1885. O ano de início, selecionado por ser aquele em que começa a existir uma reflexão escrita acerca da problemática dos alienados em Portugal, e o de XXI
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Compreendendo historiograficamente o período de 1835 a 1885, esta obra tenta ainda descrever, nas suas várias vertentes, a evolução dos processos que nortearam o início da assistência aos doentes mentais, sem esquecer as causas e consequências políticas do próprio pensamento estatístico, que por sua vez terão interagido com o desenvolvimento científico. É ainda referido o aporte intelectual que os principais alienistas portugueses de então, sobretudo Joaquim Pedro Bizarro, Miguel Bombarda, Júlio de Matos e António Sena, tiveram da medicina europeia, bem como os efeitos que perduraram nos últimos anos do século XIX.
ISBN 978-989-752-394-6
9 789897 523946
NUNO BORJA SANTOS
Nuno Borja Santos – Médico Psiquiatra; atualmente dirige a Unidade de Internamento de Doentes Agudos do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Dr. Fernando Fonseca; doutorado em História, Filosofia e Património da Ciência pela Universidade Nova de Lisboa (2016); autor do livro Parafrenias publicado pela Lidel.
www.lidel.pt
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Este livro permitirá ao leitor ter uma completa visão histórica e estatística dos primeiros cinquenta anos da Psiquiatria em Portugal, partindo da posição filosófica de Ian Hacking acerca da implicação da estatística oitocentista.
OS PRIMEIROS CINQUENTA ANOS DA PSIQUIATRIA PORTUGUESA
OS PRIMEIROS CINQUENTA ANOS DA PSIQUIATRIA PORTUGUESA (1835-1885)
11,5 mm
14,5 cm x 21 cm
NUNO BORJA SANTOS
OS PRIMEIROS CINQUENTA ANOS DA PSIQUIATRIA PORTUGUESA (1835-1885)
Uma viagem à luz da estatística