Hepatologia Clínica

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17 x 24 cm

A Hepatologia é a especialidade médica formalmente ligada à Gastrenterologia que se dedica ao estudo das doenças do fígado e das vias biliares. O fígado é transversal a praticamente todos os fenómenos metabólicos do nosso organismo, pelo que é afetado pela generalidade das doenças sistémicas. Por outro lado, as doenças intrínsecas do fígado, em especial a cirrose, condicionam de uma maneira ou de outra a atividade de todos os restantes órgãos. Neste cruzamento patológico encontra-se a justificação para este livro: agregar, numa perspetiva global, o conhecimento das doenças hepáticas, em que o fígado ocupa o centro da discussão clínica, esbatendo as fronteiras tradicionais de idade, condição e tipo de profissão. Aqui o leitor encontra temas pouco comuns em trabalhos do género, como sejam as doenças que afetam predominantemente as crianças, em particular os erros inatos do metabolismo, e as doenças infecciosas que envolvem o fígado. C

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Esta obra destina-se não só a estudantes da pré-graduação e internos da especialidade, como também a especialistas de Gastrenterologia e de Hepatologia, internistas e, evidentemente, pediatras e cirurgiões. Também poderá ser útil para médicos de outras especialidades que se interessem por rever ou aprofundar conhecimentos nesta área.

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“Conhecendo o autor e o seu percurso, este livro não constitui uma surpresa e estou seguro de que será muito útil, tornando-se uma referência incontornável para todos os que pretendam conhecer mais e melhor a Hepatologia, sejam alunos, médicos ou outros profissionais de saúde.” In Prefácio, de Armando Carvalho

ISBN 978-989-752-473-8

9 789897 524738

JOSÉ VELOSA

JOSÉ VELOSA Professor catedrático jubilado de Medicina e Gastrenterologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa; Presidente da Associação para Investigação e Desenvolvimento da Faculdade de Medicina; Foi diretor do Departamento de Gastrenterologia e Hepatologia do Centro Hospitalar Lisboa Norte; Foi presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia; Foi editor do Jornal Português de Gastrenterologia; Foi coordenador da Comissão Técnica da Subespecialidade de Hepatologia da Ordem dos Médicos.

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HEPATOLOGIA CLÍNICA

HEPATOLOGIA ´ CLINICA

3,58 cm

17 x 24 cm

HEPATOLOGIA ´ CLINICA JOSÉ VELOSA


ÍNDICE

Sobre o Autor ..............................................................................................................................

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Prefácio ....................................................................................................................................... Armando Carvalho

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Nota prévia .................................................................................................................................

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Siglas e abreviaturas .................................................................................................................... XIX

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Extratexto a cores ........................................................................................................................ XXI 1. Breve história da Hepatologia ........................................................................................... 2. O fígado.............................................................................................................................. 3. Sintomas e sinais das doenças hepáticas........................................................................... Sintomas ............................................................................................................................ Sinais ................................................................................................................................. 4. Semiologia laboratorial ..................................................................................................... Transaminases ................................................................................................................... Fosfatase alcalina ............................................................................................................... Gama-glutamiltranspeptidase ............................................................................................ Bilirrubina ......................................................................................................................... Albumina ........................................................................................................................... Tempo de protrombina ...................................................................................................... Gamaglobulina .................................................................................................................. Análises específicas do fígado com valor diagnóstico ......................................................... 5. Imagiologia do fígado........................................................................................................ Ecografia ............................................................................................................................ Tomografia axial computorizada e ressonância magnética ................................................. Colangiorressonância magnética ........................................................................................ Tomografia de emissão de positrões ................................................................................... Radiologia de intervenção .................................................................................................. 6. Colangiografia endoscópica .............................................................................................. Colangioscopia .................................................................................................................. 7. Histologia hepática ............................................................................................................ Anormalidades arquiteturais .............................................................................................. Alterações hepatocelulares.................................................................................................. Alterações dos ductos biliares ............................................................................................ Alterações inflamatórias ..................................................................................................... Fibrose ...............................................................................................................................

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8. Outros auxiliares de diagnóstico em Hepatologia........................................................... Elastografia hepática transitória ......................................................................................... Outros métodos de imagem ............................................................................................... Biomarcadores de fibrose hepática...................................................................................... Provas de função hepática .................................................................................................. 9. Hepatite e doença hepática crónica................................................................................... Hepatite ............................................................................................................................. 10. Hepatites víricas hepatotrópicas ....................................................................................... Hepatite A ......................................................................................................................... Hepatite B.......................................................................................................................... Hepatite D ......................................................................................................................... Hepatite C ......................................................................................................................... Hepatite E.......................................................................................................................... 11. Cirrose hepática ................................................................................................................. 12. Complicações da cirrose .................................................................................................... Icterícia .............................................................................................................................. Hipertensão portal ............................................................................................................. Ascite ................................................................................................................................. Encefalopatia hepática ....................................................................................................... Hiponatremia .................................................................................................................... Falência renal na cirrose ..................................................................................................... Complicações cardiopulmonares da cirrose ....................................................................... Coagulopatia da doença hepática ....................................................................................... Infecções bacterianas ......................................................................................................... Falência hepática aguda na cirrose ..................................................................................... Carcinoma hepatocelular ................................................................................................... 13. Cirrose hepática alcoólica ................................................................................................. Hepatite alcoólica .............................................................................................................. 14. Complicações da cirrose de acordo com a etiologia ......................................................... Cirrose de causa vírica ....................................................................................................... Cirrose de causa metabólica ............................................................................................... Cirrose de causa autoimune ............................................................................................... 15. Doenças autoimunes do fígado ......................................................................................... Hepatite autoimune ........................................................................................................... Síndromes de sobreposição da doença hepática autoimune ................................................ Colangite biliar primária.................................................................................................... Colangite esclerosante primária ......................................................................................... Colangite autoimune ......................................................................................................... Doença celíaca ................................................................................................................... Hepatite bystander .............................................................................................................. Hepatite dos inibidores dos pontos de controlo imunológico ............................................. 16. Hepatite tóxica ................................................................................................................... Patogénse ........................................................................................................................... Clínica e fatores de risco .................................................................................................... Diagnóstico da lesão hepática induzida por fármacos .......................................................

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Índice

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Tratamento ........................................................................................................................ Quadros clínicos de hepatotoxicidade ................................................................................ Hepatotoxicidade induzida por produtos naturais e suplementos dietéticos ....................... Falência hepática aguda ..................................................................................................... Causas................................................................................................................................ Complicações..................................................................................................................... Tratamento ........................................................................................................................ Acute-on-chronic liver failure ............................................................................................. Doenças metabólicas do fígado......................................................................................... Esteato-hepatite não alcoólica ............................................................................................ Doença hepática de sobrecarga de ferro ............................................................................. Porfirias ............................................................................................................................. Doença de Wilson ............................................................................................................. Deficiência de D1-antitripsina ............................................................................................ Doenças do metabolismo dos aminoácidos ........................................................................ Outras doenças metabólicas do fígado ............................................................................... Doenças de armazenamento do fígado (storage diseases) ................................................ Doenças de armazenamento de glicogénio (glicogenoses) ................................................. Doenças de armazenamento lisossomais ............................................................................ Esfingolipidoses ................................................................................................................. Mucopolissacaridoses ......................................................................................................... Mucolipidoses .................................................................................................................... Oligossacaridoses ............................................................................................................... Outras doenças de armazenamento.................................................................................... O fígado nas doenças sistémicas ....................................................................................... Doenças cardiovasculares................................................................................................... Doenças reumatológicas .................................................................................................... Doenças hematológicas ...................................................................................................... Hematopoiese extramedular hepática ................................................................................ Vasculites ........................................................................................................................... Doenças endócrinas ........................................................................................................... Doença inflamatória do intestino....................................................................................... Doenças metabólicas.......................................................................................................... Doenças renais ................................................................................................................... Amiloidose ......................................................................................................................... Doenças vasculares do fígado ........................................................................................... Isquemia hepática .............................................................................................................. Infarto hepático ................................................................................................................. Síndrome de Budd-Chiari .................................................................................................. Trombose da veia porta ...................................................................................................... Peliose hepática .................................................................................................................. Síndrome de obstrução sinusoidal (doença veno-oclusiva) ................................................. Telangiectasia hemorrágica hereditária............................................................................... Colangiopatia isquémica (biliopatia portal) .......................................................................

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22. Hipertensão portal ............................................................................................................ Hipertensão portal cirrótica ............................................................................................... Hipertensão portal não cirrótica ........................................................................................ 23. Doenças das vias biliares ................................................................................................... Obstrução biliar ................................................................................................................. Colangite autoimune ......................................................................................................... Colangiopatia IgG4 ........................................................................................................... Colangiopatia isquémica (biliopatia portal) ....................................................................... Obstrução aguda da via biliar principal ............................................................................. Colangite iatrogénica ......................................................................................................... Quisto do colédoco ............................................................................................................ Litíase da vesícula .............................................................................................................. Litíase do colédoco ............................................................................................................ Litíase intra-hepática .......................................................................................................... Colecistite aguda................................................................................................................ Pólipos da vesícula biliar .................................................................................................... Colesterolose vesicular ....................................................................................................... Vesícula de porcelana ......................................................................................................... Anomalias congénitas da vesícula ...................................................................................... Carcinoma da vesícula ....................................................................................................... 24. Infecções do fígado ............................................................................................................ Infecções víricas do fígado ................................................................................................. Infecções bacterianas do fígado.......................................................................................... Infecções fúngicas do fígado .............................................................................................. Infecções parasitárias do fígado ......................................................................................... Hepatite granulomatosa ..................................................................................................... 25. Hiperbilirrubinemias ........................................................................................................ Hiperbilirrubinemias conjugadas ....................................................................................... Hiperbilirrubinemias não conjugadas ................................................................................ 26. Colestase crónica ............................................................................................................... Doenças colestáticas crónicas de causa genética ................................................................. Doenças colestáticas crónicas de causa não genética .......................................................... 27. Gravidez e doença hepática................................................................................................ Doenças hepáticas relacionadas com a gravidez ................................................................. Doenças hepáticas preexistentes ......................................................................................... Doenças hepáticas agudas coincidentes com a gravidez ..................................................... 28. Lesões focais do fígado ...................................................................................................... Lesões focais quísticas do fígado ........................................................................................ Lesões focais sólidas do fígado ........................................................................................... 29. Tumores do fígado ............................................................................................................. Tumores sólidos do fígado e vias biliares ............................................................................ Neoplasias quísticas benignas do fígado............................................................................. Tumores malignos do fígado e vias biliares ........................................................................ 30. Cirurgia não hepática em doentes com cirrose ................................................................

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Índice remissivo ..........................................................................................................................

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SOBRE O AUTOR

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José Velosa nasceu em 1948, em Porto Santo, Madeira. É professor catedrático jubilado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Foi diretor, durante 10 anos, do serviço de Gastrenterologia e Hepatologia do Centro Hospitalar Lisboa Norte, EPE. Presentemente, é presidente da Associação para Investigação e Desenvolvimento da Faculdade de Medicina (AIDFM) e exerce a sua atividade profissional no Hospital Lusíadas Lisboa. Como investigador, tem-se dedicado principalmente ao estudo da hepatite vírica e do carcinoma hepatocelular. Tem participado em numerosos estudos internacionais e é autor de dezenas de trabalhos em diversas revistas nacionais e internacionais, bem como de capítulos de livros. Em 1995 foi distinguido com o Prémio Nacional de Gastrenterologia da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia. Foi editor do Jornal Português de Gastrenterologia durante quatro anos, presidente da direção da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, vice-presidente da Associação Portuguesa para o Estudo do Fígado (APEF) e coordenador da Comissão Técnica da Secção de Subespecialidade de Hepatologia da Ordem dos Médicos.


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PREFÁCIO

O conhecimento médico aumenta a cada dia que passa, o número de publicações cresce exponencialmente, a hiperespecialização é uma realidade da Medicina atual, o tempo para atualização e reflexão do médico escasseia. Procuram-se métodos para selecionar os melhores dados da literatura médica e fornecê-los depurados e simples a quem tem de os aplicar na clínica. Com esta realidade em fundo, com tanta informação e diversas formas de a tratar e tornar acessível num simples premir de tecla, mesmo num telemóvel, será que um livro de texto ainda faz sentido? Quando um livro é publicado, ainda está atual? Perante a permanente renovação do conhecimento médico, cada vez mais extenso, de que precisamos mais? De sabedoria ou de muito saber? Por maior que seja o conhecimento que podemos abarcar, é completamente impossível conhecer tudo o que é publicado, mesmo numa área muito limitada da Medicina. Além disso, de tudo aquilo que se publica, mesmo nas melhores revistas, só uma pequena parte vem a ter um impacto real e útil na prática clínica e muito do que consideramos hoje relevante pode vir a ser posto em causa ou mesmo desmentido no futuro, às vezes num tempo muito curto. É incontestável que hoje o mais importante é a forma como se seleciona e utiliza o conhecimento do que a quantidade de informação que se possui. Ou seja, sem surpresa, como acontece desde sempre, a sabedoria é muito mais importante que o saber. Pese embora todos os meios ao dispor para selecionar o conhecimento mais relevante, incluindo a classificação das revistas, a medicina baseada na evidência, a decisão apoiada informaticamente, a inteligência artificial, nada dis-

pensará o cérebro humano, a sua capacidade de reflexão e de análise, o bom senso, sabendo-se que a incerteza existirá sempre. Neste contexto, há muito que um livro de Medicina deixou de pretender ser uma simples reposição dos últimos conhecimentos sobre um assunto. Um livro tem um tempo diferente de um artigo ou de uma publicação na internet. O tempo do livro não é o imediato, é o que assenta em dados estabelecidos, o que resulta de profunda reflexão sobre os temas abordados, baseada na vivência do autor; é o tempo da sabedoria. É isso que torna o livro possível, indispensável e insubstituível. Importa então saber avaliar a importância do livro que temos pela frente. Para isso, devemos refletir sobre o tema, a forma como o livro o aborda e, talvez o mas importante, o seu autor. Hepatologia Clínica – Manual de Doenças do Fígado, dizemo-lo já, é um excelente exemplo do que temos vindo a falar. Vejamos porquê. A Hepatologia moderna começou a afirmar-se nos anos 50 do século passado, com nomes importantes da Medicina que desenvolveram o gosto e a prática pelo estudo e o tratamento das doenças do fígado. As descobertas do vírus da hepatite B (VHB) em 1965, do vírus da hepatite C (VHC) em 1989, o início da transplantação hepática em 1963, ou, muito recentemente, a introdução das novas terapêuticas para a infecção pelo VHC, com quase 100% de eficácia, são exemplos de autênticas revoluções. Mas são também paradigmas da importância de juntar vários saberes e experiências para se progredir no conhecimento, na descoberta e na prática clínica. Na verdade, o mais marcante na história da Hepatologia é a multidisciplinaridade envolvida


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na sua prática. A ligação muito estreita entre a clínica e a anatomia patológica no início, o envolvimento da investigação básica nas grandes descobertas dos vírus das hepatites, ou, mais recentemente, no estudo do fígado gordo não alcoólico, o papel primordial da cirurgia, o contributo imprescindível da imagiologia no diagnóstico e na terapêutica, são exemplos paradigmáticos. Mas se é imprescindível esta diversidade de atuações, não é menos necessário que existam médicos capazes de ter uma visão de conjunto da Hepatologia e de liderar toda a panóplia de ações que caracterizam a prática hepatológica dos nossos dias. Por isso, a formação em Hepatologia deve fazer parte do curriculum das escolas médicas, bem como da pós-graduação, havendo ainda lugar para a formação específica nesta área. Este livro, com o título Hepatologia Clínica e o subtítulo Manual de Doenças do Fígado, é de um só autor, um hepatologista que se pode considerar um paradigma do que atrás ficou dito. É usual defender que hoje um livro de Medicina deve ser escrito por vários autores, porque a hiperespecialização exige que cada capítulo seja abordado por um superespecialista. A crítica aos livros de um só autor já foi feita, há muito, à obra de referência em Hepatologia, da autoria de Sheila Sherlock, que tanto beneficiou quem a leu e se tornou um livro de culto! Na verdade, um livro escrito por um só autor pode ser um repositório de sabedoria, da visão única de quem tem conhecimento e experiência clínica, que assim é colocada ao serviço de todos. Quem lê um livro não busca só conhecimento, procura o olhar pessoal de quem escreve. Quem lê um livro de Medicina não espera encontrar a última novidade publicada, quer ter dados concretos sobre a aplicação prática de ciência comprovada, pela ótica de alguém em quem confia. Hepatologia Clínica é uma obra que abarca toda a Hepatologia, a sua história, a semiologia, a clínica e a terapêutica, abordando não só as doenças mais frequentes, mas também as raras com que nos podemos confrontar, bem como a repercussão das doenças hepáticas no organismo e o envolvimento do fígado nas doenças

Hepatologia Clínica

sistémicas. É um exemplo do que pode e deve ser hoje um texto de um só autor sobre uma área específica da Medicina. Nele encontramos a ciência médica, a Hepatologia moderna, a experiência e a sabedoria, o essencial numa obra desta envergadura. Este livro é uma excelente base para a formação em Hepatologia, podendo servir de fonte de conhecimento para alunos, médicos internos e especialistas de vários saberes com interesse pelas doenças do fígado. É igualmente uma fonte a consultar na prática clínica, por qualquer médico que se confronte com doentes que apresentem alterações hepáticas. É também uma referência importante para todos os hepatologistas. Não pretende substituir as outras fontes, nem foi esse o objetivo do seu autor, que quis juntar num só livro praticamente tudo o que deve ser incluído na Hepatologia moderna, de modo a dar-nos um complemento útil na formação e na prática clínica, colocando ao nosso dispor a sua visão de conjunto, a sua reflexão assente na experiência e na sabedoria de uma vida essencialmente dedicada à Hepatologia. José Velosa é um médico e professor de Medicina que se destaca pela excelência pedagógica, pelo rigor, pela clareza e profundidade das suas intervenções, pela grande experiência clínica. Com a simplicidade que caracteriza as pessoas verdadeiramente importantes em qualquer área do saber, designou o seu livro por Manual, quando na realidade nos disponibilizou um verdadeiro tratado. Permitam-me uma nota pessoal. Conheci José Velosa nos primeiros Congressos de Gastrenterologia e Hepatologia em que participei. Sempre atento e interventivo, destacava-se pela forma cordial, serena, mas arguta, rigorosa e incisiva com que abordava vários temas, colocava questões e discutia os mais diversos assuntos. Acompanhei o seu percurso, a construção de uma carreira académica e hospitalar coerente e consistente, que o tornou uma referência da Gastrenterologia e da Hepatologia e o alcandorou aos lugares mais elevados de ambas as carreiras que abraçou. Para mim foi e é um mestre, além de me distinguir com a sua


Prefácio

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amizade, que motivou o convite para escrever algumas palavras sobre a sua obra, o que fiz com gosto, lamentando as limitações que impedem que o prefácio acompanhe a grandeza da obra. Fi-lo em nome da amizade, que retribuo, mas que não impediu uma análise objetiva, como o autor desejava. Conhecendo o autor e o seu percurso, este livro não constitui uma surpresa e estou seguro de que será muito útil, tornando-se uma refe-

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rência incontornável para todos os que pretendam conhecer mais e melhor a Hepatologia, sejam alunos, médicos ou outros profissionais de saúde. Armando Carvalho Professor Catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra Diretor do serviço de Medicina Interna do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra


NOTA PRÉVIA

Vai ficar muito imperfeito. Mas acho que é possível que tenha conseguido erguer as minhas estátuas contra o céu.

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Virginia Woolf, Diário No princípio era a semiologia. Quando estava nos alvores do meu magistério gastrenterológico, um grupo de docentes da minha faculdade, do qual eu fazia parte, foi desafiado por uma omnipotente fundação para a elaboração de um manual de semiologia clínica. Como o projeto não foi avante, o meu despretensioso rascunho de semiologia hepática ficou em pousio algures no recato de um disco rígido. Guardado, mas não esquecido! O impulso para esta tão momentosa quanto insana tarefa germinou e foi fermentando, ao longo do tempo, por dois factos provindos da minha experiência pedagógica: a reiterada incorreção revelada pelos alunos na colheita dos sinais das doenças do fígado; e a forma acrimoniosa, quando não desdenhosa, como a Hepatologia tem sido circunscrita à hepatite vírica. Não que tão dileto e ilustre membro da patologia hepática não seja merecedor do maior respeito e carinho da progénie. Longe disso! Mas, definitivamente, o vasto e fascinante universo da Hepatologia vai muito além da hepatite vírica! Um pequeno e singelo livro de semiologia hepatológica era tudo o que almejava. Um opúsculo, prático e didático, que resgatasse a dignidade da legis artis semiológica; na esteira da extraordinária Semiologia Neurológica de Miller Guerra, uma obra pequena no tamanho, mas grande no conteúdo, que marcou gerações de estudantes pela sua simplicidade e objetividade.

Rapidamente, esta legítima pretensão, já de si quixotesca e desmedida, deu azo a uma desbraga ambição: trazer ao conhecimento dos meus imaginários leitores laivos da “nova” Hepatologia que, entretanto, se tinha libertado das amarras da famigerada doença hepática alcoólica. A explosão de conhecimentos ocorrida nas doenças metabólicas (não esquecer que o fígado é o órgão do metabolismo!) e, como corolário, nas doenças até então associadas exclusivamente às crianças, autoriza-me a afirmar que a dicotomia entre Hepatologia do adulto e da criança está obsoleta. Se no passado as doenças hepáticas infantis eram abordadas autonomamente, tal facto justificava-se porque, amiudadamente, as crianças sucumbiam a tão funesta enfermidade ou, então, esta se extinguia com o tempo. Entretanto, o panorama mudou radicalmente, não só porque os cuidados médicos evoluíram ao ponto de permitirem a sobrevivência e o desenvolvimento de muitas crianças com doenças familiares, mas também porque, com o advento dos testes genéticos, passámos a perceber que, afinal, muitas destas doenças têm expressão nos adultos: os termos heterozigotia e fenótipo passaram a fazer parte do léxico hepatológico corrente. Foi sobretudo a ambição de trazer aos meus eventuais leitores esse mundo ignorado da patologia hepática que me motivou para esta aventura. Não posso dizer, como o navegador, que desconhecia o imenso oceano, que de pacífico pouco tinha; mas se, como ele, dominava a arte


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de marear (entenda-se escrita científica) e tinha a noção dos promontórios e enseadas (leia-se referências), fruto da experiência por mares “dantes navegados”, não estava, porém, a par dos baixios e dos contratempos, porque esses os meus portulanos científicos não assinalavam. Portanto, este livro surgiu, pode dizer-se, de um certo sentimento de indignação: o desconchavo a que a Hepatologia estava sujeita. De acordo com Stefan Zweig, “os livros podem ter a sua origem nos mais diversos sentimentos. Escrevem-se livros num ímpeto de entusiasmo ou tendo como móbil um sentimento de gratidão; de igual forma, também a desilusão, a raiva e o dissabor podem ser incendiados pela paixão espiritual. Por vezes, o motor é a curiosidade, a vontade psicológica de, na escrita, encontrar explicação para pessoas e eventos, mas também motivos de uma espécie mais preocupante, como a vaidade, a ganância, o prazer da contemplação do próprio eu que – demasiadas vezes – encorajam a produção”. Esta é, portanto, uma obra que não foi planeada e, pode dizer-se, nasceu de um malogro! A recuperação dos rascunhos foi o fermento de que a obra se fez. Cumpriu-se, assim, o prosaico “nada se perde, tudo se transforma”, como diria o químico de antanho. As premissas eram as seguintes: Porque não divulgar o trabalho já feito? Não seria útil para os estudantes? Seria supérfluo pôr ao dispor de estudantes, internos e médicos em geral a experiência de mais de 30 anos a aprender e a praticar Hepatologia? Com estas reflexões em mente, o imaginado pequeno manual dedicado a uma área restrita, vocacionado sobretudo para os alunos, ganhou alforria e tornou-se, após prolongadas intermitências, numa obra “completa”. Já outros experienciaram o fenómeno: a obra tomou conta do autor! Achei, certamente com alguma jactância, que o livro poderia também interessar a outros interlocutores: internos, gastrenterologistas e internistas. Se este livro tivesse sido escrito na sequência do projeto inicial, já lá vão quase 30 anos, seria naturalmente muito diferente. Um fresco da Hepatologia dessa época mostrar-nos-ia afa-

Hepatologia Clínica

digados hepatologistas a tratar as hepatites víricas B e C com o famigerado e mal-amado interferão, a discutir a novidade e a bondade dos corticoides para a doença hepática alcoólica, a executar enfadonhas paracenteses evacuadoras, um tratamento ancestral da ascite que tinha voltado à ribalta após um interlúdio diurético, fascinados com a CPRE, a técnica que desvendava (acreditava-se que definitivamente) os mistérios da icterícia, e deslumbrados com a PCR, que prometia uma nova era. Ah, e discutiam acaloradamente a inexequibilidade da transplantação hepática, sobretudo em Portugal. Esta obra é, até certo ponto, o reflexo da revolução que se seguiu à irrupção da PCR, essa extraordinária técnica que nos transportou para a era da medicina molecular. Tudo está a ser diferente desde então na Hepatologia, e não só! Muitas doenças, especialmente colestáticas, passaram a ter patronímico, o diagnóstico rigoroso tornou-se uma exigência e terapêuticas inovadoras derrubaram fronteiras inexpugnáveis. Neste despertar da Hepatologia não se pode olvidar o contributo extraordinário da transplantação hepática, que trouxe esperança e vida onde antes só se divisava um horizonte de morte e, não menos importante, alargou substancialmente o conhecimento da história natural das doenças do fígado. É difícil resistir à volúpia do caso clínico raro! O doente problema redime-nos da castrante monotonia, transporta-nos até aos recônditos da memória, desafia-nos e nobilita-nos: perante os nossos pares e no seio da comunidade. Usei e, quiçá, abusei dos casos raros; mas quem não ficará maravilhado com a leitura da hemocromatose neonatal ou da doença de Zellweger? Esta é a tal Hepatologia que nos interpela e nos estimula… Procurei construir um livro compreensivo, que servisse de consulta para o clínico prático, mas assaz sofisticado para também satisfazer o hepatologista mais exigente. Daí, por vezes, a insistência no detalhe e na abordagem de alguns temas menos comuns. Trata-se de legitimar a tese de que não há idades nem fronteiras para a generalidade das doenças hepáticas. A Medicina evolui a cada dia que passa, mais e mais recém-


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Nota Prévia

-nascidos sobreviverão ao infortúnio de uma doença genética rotulada de incurável e progressivamente atingirão a vida adulta. O mundo será cada vez mais uma aldeia e todos seremos vizinhos; e o que acontece no outro lado da terra estará apenas à distância de um voo de avião! A doença deixará de ter fronteiras. Nesta mescla de condições em que a doença floresce está, simultaneamente, a conquista e o perecimento do conhecimento e, paralelamente, a força e a fraqueza dos livros: repositórios do saber e da experiência, mas demasiadamente inertes para conservarem a atualidade. Na Hepatologia, uma das áreas em que mais se publica em Medicina, produzir um livro com capacidade para subsistir, minimamente que seja, à erosão provocada pelo tempo é uma tarefa revestida de dificuldade indisfarçável. O destaque que é dado, neste livro, às doenças hepáticas ditas da criança tem ainda outra justificação e essa é de natureza afetiva: a saudosa colaboração com o Prof. J. Salazar de Sousa e o Dr. Aires de Sousa em reuniões médicas periódicas de Hepatologia. Aprendi com eles que as hepatopatias infantis não são necessariamente uma fatalidade, podem prosseguir para a adolescência e a adultez, ou podem ser encontradas de forma mitigada. Esta cooperação arreigou em mim a convicção de que existe apenas uma Hepatologia. Mas falemos ainda um pouco mais da obra. O destaque dado a alguns capítulos, que alguns poderão achar excessivo, em dimensão e pormenor, correndo o risco de afetar o equilíbrio do conjunto, ficou a dever-se aos desenvolvimentos ocorridos nessas áreas. A estrutura de cada capítulo segue um estilo escolástico porque, se bem que tenha procurado não perder de vista o leitor erudito, tentei sempre não me afastar do meu alvo principal: os alunos. Esta preocupação pelo didatismo e pelo esclarecimento reflete-se nos inúmeros quadros, figuras e algoritmos, os quais procuram, através da gravura, complementar e explicitar de forma mais viva o conteúdo do texto. Em vez da bibliografia clássica, optei pela leitura recomendada, acreditando que esta

XVII

alternativa é mais apropriada para uma obra desta natureza. Mas desenganem-se os que pensam que esta solução desresponsabiliza o autor. Pelo contrário! A quase ausência de referências no texto (que incluí sempre que achei que era absolutamente indispensável) remete para o autor o crédito das afirmações produzidas. O leitor atento notará, seguramente, falhas e omissões, mas essas mais não são do que o ónus de uma obra de um só autor. Com a fatalidade emprestada por A. Oliveira Marques da sua A Sociedade Medieval Portuguesa (a ciência de hoje será medieval amanhã…), diria, aforisticamente, que “tratou-se, enfim, daquilo de que se podia tratar”. Nesta hercúlea e, repito, arrojada tarefa recebi a prestimosa ajuda de vários colegas. O Dr. Afonso Gonçalves, eminente radiologista, pôs à minha disposição o seu acervo de iconografia imagiológica, o que muito ajudou a tornar menos áridos alguns capítulos; o Dr. Artur Costa e Silva, a Dra. Adília Costa e a Dra. Rita Luís, distinto e distintas patologistas, facultaram-me imagens do seu espólio histológico, as quais permitiram certificar e colorir muito do que foi escrito; o Prof. Rui Marinho, ilustre hepatologista e indefetível amigo, teve a amabilidade de me ceder o seu arquivo fotográfico, de onde retirei algumas imagens semiológicas. Sem estes contributos a obra ficaria incompleta e mal cerzida, pois aqui, mais do que noutro local, uma imagem vale por mil palavras... O mérito que eventualmente esta obra possa ter pertence também a muitos outros intervenientes, os quais de uma forma ou de outra colaboraram no seu apresto. Desde logo, os meus muito estimados colegas do serviço de Gastrenterologia do Hospital de Santa Maria, pois uma boa parte do material usado no livro provém da sua anónima colaboração; a editora Lidel, pelo empenho posto na edição desta obra, disponibilizando uma excelente equipa para a sua produção; em particular o seu profissionalismo e competência, com destaque para a revisora, Paula Melo dos Santos, a quem, mercê do seu saber e paciência, muito fica a dever o apuro técnico do livro. É jus-


Hepatologia Clínica

XVIII

to reconhecer que sem o patrocínio da Gilead Sciences e o entusiasmo da Dra. Clara Saragoça dificilmente este projeto teria sido concretizável. A todos o meu penhorado agradecimento. Ficaria de mal com a minha consciência se omitisse o entusiástico e prestimoso apoio que o Prof. Fausto Pinto, diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, concedeu à realização desta obra. Por último, mas nem por isso menos presente no meu pensamento, a minha imensa gratidão ao Prof. M. Carneiro de Moura, pioneiro da Hepatologia portuguesa, meu mentor e

inspirador deste livro. Estou-lhe agradecido por duas razões: a primeira porque incutiu em mim o gosto e a atração pela Hepatologia; a segunda porque, involuntariamente, projetou esta obra quando, em 1985, me ofereceu um livro intitulado Clinical Hepatology, com uma auspiciosa e apologética dedicatória. Afinal, a obra foi planeada, só que eu ignorava… Lisboa, outubro de 2019

O que há é a opinião correta, um meio termo entre o saber e a ignorância. Platão, O Banquete

José Velosa


EXTRATEXTO A CORES

A

B

1 2 3

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Figura 2.3 – Histologia normal do fígado. A – Pequena ampliação mostrando o lóbulo com a veia centrolobular (seta fina) e o espaço porta (setas grossas); B – Grande ampliação mostrando trabéculas de hepatócitos irradiando da veia centrolobular (seta fina). Os números indicam as três zonas de Rappaport. No entalhe, pormenor do espaço porta (seta grossa) mostrando a veia porta (seta fina) e o ducto biliar (seta grossa). Cortesia da Dra. Rita Luís.

Figura 3.1 – Discrasia sanguínea num doente com cirrose hepática descompensada, observando -se sufusões hemorrágicas e hematomas no tronco. Figura 3.3 – Aranhas vasculares no tronco de um doente com cirrose hepática alcoólica. Em baixo, uma aranha vascular com a procidência arterial no centro.


Hepatologia Clínica

XLVIII

B

A

C C

Figura 29.59 – Metástases hepáticas de carcinoma do cólon. A – Ecografia mostrando lesões sólidas hipoecoicas com um ponto central hipercoico (“olho de boi”); B – Tomografia axial computorizada (TAC) revelando lesões hipodensas com um anel periférico (seta). Cortesia do Dr. Afonso Gonçalves. C – Tomografia de emissão de positrões (PET) mostrando várias lesões hepáticas hipermetabólicas (seta dupla) e ascite (seta). Cortesia da Dra. Cristina Loewenthal.

A

B

Figura 29.61 – Tumor carcinoide. A – Metástases hepáticas (setas) detetadas pela tomografia axial computorizada (TAC); B – Tumor carcinoide do cólon, com aspeto de pólipo séssil, que originou as metástases.

A

B

Figura 29.62 – Metástases hepáticas de tumor carcinoide. A – Coloração de hematoxilina-eosina (HE) mostrando cordões de células pequenas, eosinófilas, não se observando células hepáticas; B – Imuno-histoquímica com marcação da cromogranina A. Cortesia do Dr. Artur Costa e Silva.


Capítulo

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1 BREVE HISTÓRIA DA HEPATOLOGIA

A história do fígado, enquanto órgão do corpo humano e dos animais, perde-se na memória dos tempos. Quer no papel de um enigmático órgão sagrado, residência da alma, quer nas mais prosaicas funções de oráculo, o fígado foi, ao longo dos séculos, um órgão misterioso. A misticidade associada ao fígado tem o seu ponto alto na Antiguidade, quando sacerdotes, ou peritos, inspecionavam o fígado de determinados animais e, baseados no seu aspeto, conjeturavam presságios. As profecias solicitadas eram invariavelmente de natureza bélica, tendo em vista prever a sorte da batalha. Desconhecemos que aspeto a superfície do fígado teria de ter para vaticinar a vitória ou a derrota, tal como desconhecemos também o que poderia profetizar um fígado cirrótico. É fácil imaginar, contudo, que nesses tempos remotos e ignaros – embora o Rei Assurbanipal, referido na Figura 1.1, fosse um monarca esclarecido e, o que se poderia considerar para a época, um intelectual – a superfície rugosa de um fígado cirrótico seria um mistério intangível, só explicável pelas forças maléficas de Satanás. A primeira descrição de icterícia tem mais de três mil anos e foi encontrada na Suméria, onde então se pensava que o agente etiológico era um demónio chamado Ahhazu. O ataque era compreensível e lógico, já que o fígado era considerado a sede da alma! As epidemias de icterícia dizimavam as legiões romanas, destroçavam os exércitos e, para desespero dos seus comandantes, elas sim, decidiam a sorte da guerra. Essas temíveis erupções, imprevisíveis e incontroláveis, seriam certamente encaradas pelos povos como fúrias ou castigos divinos. E, no entanto, pode dizer-se com propriedade que encarnam a alma mater da

A

B

Figura 1.1 – Lista dos membros do tribunal de sábios do Rei Assurbanipal (669 a.C. a 631 a.C.) da Assíria. A – O documento, em tábua de barro cozido e redigido em escrita cuneiforme, descreve a composição do tribunal, que inclui cinco peritos em presságios do fígado; B – Nota explicativa (tradução) da escrita cuneiforme. Imagens recolhidas fotograficamente no British Museum, Londres.

Hepatologia, o fio condutor da sua emancipação como especialidade médica. A par dessa função espiritual atribuída ao fígado, uma incipiente hepatologia científica ia emergindo na Grécia Antiga, pela mão de Hipócrates. Este primeiro hepatologista reconheceu, nos séculos IV a.C. e V a.C., a icterícia infecciosa, a relação da ascite com o fígado, o quisto hidático e os abcessos. Um longo e sinuoso caminho foi percorrido até se desvendarem as fantasiosas e intrigantes funções do fígado e os mistérios da sua patologia. Nesse lento e sofrido conhecimento, muito dele de aquisição recente, misturam-se o acaso, a intuição clínica, o génio científico e a determinação quase suicidária. A hepatite vírica, sobretudo as hepatites B, C e E, consubstancia todos estes atributos. Mas esta é uma narrativa contemporânea, que está ainda em construção e se desenrola a


Capítulo

3 SINTOMAS E SINAIS DAS DOENÇAS HEPÁTICAS

Ł SINTOMAS

A história clínica é a base do diagnóstico na Medicina em geral e na Hepatologia em especial. As doenças do fígado abarcam praticamente todos os aparelhos e sistemas e englobam todos os grupos nosológicos. Entre as doenças hepáticas mais comuns estão doenças infecciosas, metabólicas, iatrogénicas, genéticas e neoplásicas, que exigem uma anamnese minuciosa, incluindo sintomas e respetiva cronologia, aspetos epidemiológicos, familiares, hereditários, consumos de medicamentos e de suplementos alimentares e de produtos recreativos (Quadro 3.1).

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ASTENIA, ADINAMIA E FADIGA A astenia, ou fadiga, crónica é um dos sintomas mais comuns nas doenças do fígado, agudas ou crónicas, e que não melhora com o repouso. É um sintoma complexo, sujeito a várias interpretações e que engloba diversas designações: cansaço, fraqueza, exaustão, desconforto, mal-estar, etc. Embora se desconheça a exata prevalência da fadiga na doença hepática crónica, sabe-se, contudo, que é mais frequente nas doenças colestáticas (65%-80%). É um dos sintomas predominantes da colangite biliar primária, ao ponto de aproximadamente metade dos doentes a considerarem como o sintoma mais incómodo. Pode também estar presente noutras doenças autoimunes do fígado, como a hepatite autoimune, na qual a severidade da astenia se relaciona com o nível das transaminases. É um sintoma clássico das hepatites víricas, não só da fase aguda da doença – em alguns casos perdurando muito para além da recuperação bioquímica (hepatite A, mononucleose infec-

Quadro 3.1 – Questões específicas a perguntar aos doentes com doença hepática. Ł Relacionadas com a hepatite vírica: t História de transfusões sanguíneas t Toxicodependência t Práticas sexuais t História de doenças sexualmente transmissíveis t Existência de hepatite viral no agregado familiar t Trabalho em instituições de saúde: – Laboratórios – Unidades de diálise – Unidades de cuidados intensivos t História de picada acidental t Tatuagem t Viagens ou estadias em áreas endémicas Ł Relacionadas com a hepatite tóxica: t Consumo de álcool t Consumo de medicamentos t Consumo de produtos de ervanária t Exposição a hepatotoxinas Ł Relacionadas com causas metabólicas: t Consanguinidade familiar (doença de Wilson) t História familiar de doença hepática t Icterícia neonatal (deficiência de D1-antitripsina) Ł Relacionadas com doenças colestáticas: t Doença autoimune familiar t Contracetivos t Prurido durante a gravidez t Doença inflamatória intestinal

ciosa, etc.) –, mas também da fase crónica. Está bem demonstrada, através de escalas e questionários (SF-36), a sua natureza constitucional na hepatite C crónica. Curiosamente, muitos doentes só adquirem consciência da fadiga após a cura da infeção.


Hepatites víricas hepatotrópicas

Retratamento O retratamento dos doentes que não responderam ao peginterferão-ribavirina ou ao sofosbuvir-ribavirina já foi abordado neste capítulo com a designação genérica de doentes experimentados. O retratamento dos doentes que não respondem a um regime que contenha um inibidor NS5A pode ser orientado por um teste de resistência. A recidiva, rara com os atuais regimes, ocorre devido à seleção de variantes resistentes aos antivíricos, nomeadamente aos inibidores da NS5A, e não tanto pelo desenvolvimento de mutações (Figura 10.37). Na prática, o retratamento pode ser realizado empiricamente e com elevada probabilidade de sucesso com a combinação sofosbuvir-velpatasvir-voxilaprevir (Vosevi®). Como foi demonstrado nos estudos Polaris, que incluíram doentes com exposição prévia a inibidores da protéase e/ou inibidores NS5A, a taxa global de SVR foi de 96% a 98% com 12 semanas de tratamento. A SVR não sofreu influência do genótipo, nem da presença ou não de variantes, ou sequer do perfil das variantes. Outros regimes além do Vosevi®, nomeadamente a associação de sofosbuvir ao grazoprevir-elbasvir, mostraram ser eficazes para os doentes com genótipo 3. Por outro lado, a associação do sofosbuvir ao glecaprevir-pibrentasvir é, teoricamente (o pibrentasvir possui uma elevada barreira à resistência), uma combinação para doentes difíceis de tratar, mas carece de comprovação.

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ELIMINAÇÃO DA HEPATITE C Atendendo à extraordinária eficácia da terapêutica antivírica – com taxas de cura de aproximadamente 97%, qualquer que seja a população tratada –, e porque não se perspetiva para breve uma vacina, muitos investigadores acreditam que é possível eliminar a hepatite C recorrendo exclusivamente ao tratamento dos portadores do vírus. Mais que não seja, admite-se que é possível transformar a hepatite C numa doença rara, executando medidas de prevenção

129

e terapêutica antivírica em massa. Esta estratégia pressupõe identificar os indivíduos infectados e implementar o tratamento; tão-somente porque, na realidade, a população em risco é conhecida e estão disponíveis os instrumentos para aplicar uma terapêutica massificada: testes de diagnóstico rápidos e acessíveis, antivíricos pangenotípicos, com posologia de um comprimido diário durante cerca de três meses, bem tolerados e com eficácia próxima dos 100%. A discussão, na comunidade científica, centra-se, presentemente, na estratégia a seguir: rastreio universal e terapêutica antivírica centralizada nas estruturas hospitalares; ou atuação local, desburocratizada, nas comunidades de doentes, num processo conhecido como microeliminação. Os defensores desta estratégia, que colhe o apoio informal da OMS, argumentam que é a forma mais eficiente de chegar aos grupos de risco, isto é, aos reservatórios do vírus, que de outra forma ficariam fora de controlo (Figura 10.41). As populações vulneráveis (utilizadores de drogas ilícitas, reclusos, sem-abrigo, etc.), apesar de terem as prevalências mais elevadas de infecção, não só desvalorizam os riscos da doença, como recusam a referenciação e o seguimento em instituições de saúde (cuidados primários e hospitais). São, contudo, acessíveis e frequentam as organizações de apoio social onde a intervenção deve, portanto, ocorrer, usando estratégias de tratamento compatíveis: comprovação de replicação vírica com um teste rápido (pesquisa do antigénio do core do VHC, por exemplo), tratamento com um pangenotípico, toma assistida e monitorização simples com apenas verificação da resposta virológica mantida às 24 semanas pós-tratamento. Numa estratégia nacional de eliminação, além da intervenção nas comunidades nos moldes atrás descritos, o rastreio e o tratamento passariam a ser também efetuados nos centros de saúde, com acesso desburocratizado aos medicamentos (Figura 10.42).


Hepatologia Clínica

130

AAD 120 000

N.º de doentes com hepatite C

100 000 Doentes virémicos

80 000

60 000

40 000 Grupos de risco 20 000

0 2015

2017

2019

2021

2023

Figura 10.41 – Estratégia centralizada de erradicação da hepatite C em Portugal num horizonte de cerca de 10 anos. Com esta estratégia, os grupos de risco – reservatórios do vírus – escapariam à intervenção e continuariam a disseminar a infecção. AAD – antivíricos de ação direta.

Ac. VHC + Replicativo? Teste rápido

Positivo

Tratamento prévio?

Pangenotípico 12 sem.

Negativo

Especialista

Cirrose? Controlar cura

Figura 10.42 – Estratégia de eliminação da hepatite C, baseada na microeliminação, com um regime de tratamento simplificado.

Ł HEPATITE E

O VÍRUS

O vírus da hepatite E (VHE), um pequeno vírus RNA de cadeia única, com a extensão de 7,2 kb, sem invólucro (nas fezes, porque no

sangue circula envolvido em lípidos), pertence à família dos Hepeviridae e ao género Orthohepevirus. Este género divide-se em quatro espécies, de A a D. A espécie A infecta humanos, suínos e outros animais. O VHE tem um serótipo e oito genótipos: os genótipos 1 a 4 e o 7 têm tropismo para os humanos. O genoma tem três regiões de leitura (ORF1, ORF2, ORF3) que codificam as proteínas não estruturais, a nucleocápside, e uma região de leitura (ORF4) dentro da ORF1, no genótipo 1, cuja proteína só é codificada sob condições de stress no retículo endoplasmático (Figura 10.43). A ORF1, que representa dois terços do comprimento do genoma, codifica a designada replicase do VHE, formada por sete domínios, incluindo a helicase; a ORF2 codifica a proteína da cápside e, devido às suas propriedades antigénicas e imunogénicas, é o substrato para a vacina e para os testes de diagnóstico; a ORF3 codifica uma pequena proteína necessária para a formação do vírus e a secreção da partícula vírica das células infectadas. Esta proteína, produto da ORF3, ganhou recentemente importância e significado clínico por se ter verificado que reveste a nucleocápside das


Hepatites víricas hepatotrópicas

131

5133 28

ORF1

ORF4*

5477 ORF3

Cap MeT

Y

Pro

V

X

Hel

ORF2

RdRp

A(n) 3’NCR

5’NCR 5109 5147 Proteínas não estruturais

7129 Cápside

kb 0

1

2

3

4

5

6

7 7,2

* Genótipo 1

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Figura 10.43 – Organização esquemática do genoma do vírus da hepatite E com as três regiões de leitura (ORF). NCR – noncoding region; MeT – methytransferase; Y – Y domain; Pro – papain-like cysteine protease; X – macro domain; V – hipervariable region; Hel – helicase; RdRp – RNA-dependent RNA polymerase.

chamadas quasi-enveloped virion, comuns em todos os genótipos do VHE, que circulam no sangue e furtando-se ao reconhecimento pelos anticorpos neutralizantes (base da atual vacina), que têm como alvo primário a ORF2. Admite-se que venha a ser uma proteína alvo para uma futura vacina. Assim, à semelhança do vírus da hepatite A, o VHE existe na forma de partículas sem invólucro (naked virion), presente sobretudo nas fezes, quasi-enveloped virion (sangue) e vírus com invólucro9. O VHE tem, pelo menos, sete genótipos, mas apenas quatro têm importância epidemiológica e clínica: os genótipos 1 e 2 têm os humanos como único reservatório e os genótipos 3 e 4, além dos humanos, também infectam outros animais (Figura 10.44). Evolucionariamente, o reservatório é o porco, embora, mais recentemente, muitos outros animais (javali, veado, coelho, camelo, truta, etc.) sejam portadores destes genótipos. Uma linha evolucionária ainda mais remota corresponde ao VHE aviário (genótipo 5) e a uma estirpe cujo reservatório é o rato (hepevírus do rato). Não obstante o anti-

corpo para o VHE ser detetado em diversos animais, desconhece-se se estes vírus são passíveis de transmissão aos humanos. À semelhança do VHA, com o qual partilha algumas características epidemiológicas e clínicas, nomeadamente transmissão fecal-oral e um quadro de hepatite aguda autolimitada (Quadro 10.19), o VHE tem, contudo, algumas particularidades próprias: é menos infeccioso, o período de incubação é ligeiramente mais longo, tem uma mortalidade mais elevada do que a hepatite A e, ao contrário desta, não é dependente da idade. Por outro lado, tem uma particular e incompreendida tendência para causar falência hepática aguda em mulheres grávidas.

EPIDEMIOLOGIA Estima-se que o VHE já tenha infectado um terço da população mundial. Segundo dados da OMS, o burden da hepatite E está calculado em 20 milhões de indivíduos infectados todos os anos, 70 000 mortes (3,3% da mortalidade causada pela hepatite vírica) e 3000 partos prematuros.

9 Nan Y, Wu C, Zhao Q, et al. Vaccine development against zoonotic hepatitis E virus: open questions and remaining challenges. Front Microbiol 2018;9.266. doi.org/10.3389/fmicb.2018.00266


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por grave sobrecarga de ferro hepático, os doentes com estas raras doenças autossómicas recessivas desenvolvem anemia e outras manifestações clínicas que, quando presentes, as diferenciam facilmente dos dois subtipos de HH associados às mutações da ferroportina, à HH clássica e às restantes HH não clássicas. No que diz respeito à aceruloplasminemia, são patentes manifestações neurológicas (sinais extrapiramidais, ataxia, demência), diabetes e degenerescência retiniana. Na hipo/atransferrinemia, a anemia é severa, ao ponto de ameaçar a sobrevivência; a transferrina circulante, quando existe, é muito baixa e, nesses casos, apresenta-se completamente saturada. As anemias hemolíticas crónicas com eritropoiese ineficaz são mais facilmente excluídas, porque a saturação da transferrina está elevada e existem alterações hematológicas sugestivas. A terapêutica da hemocromatose associada à ferroportina (4B) é idêntica à das restantes hemocromatoses. Contudo, subsiste alguma dúvida sobre a utilidade das flebotomias nesta entidade, isto é, se estes doentes necessitam de remoção de ferro tão agressiva como nas outras formas de HH; mais que não seja pelo risco de agravar a anemia. Assim, as flebotomias terão de ser realizadas com cuidados acrescidos, monitorizando cuidadosamente os parâmetros hematológicos. No que diz respeito à doença da ferroportina (4A), há mesmo algumas dúvidas sobre se estes doentes, com perda de função, necessitam de terapêutica espoliativa do ferro e se esta não será prejudicial.

Hemocromatose tipo 5 Este tipo de hemocromatose foi reportado, até agora, apenas numa família japonesa. A mutação ocorre no gene FTH1, localizado no cromossoma 11q12, que codifica o elemento responsivo ao ferro do mRNA da ferritina. Os elementos da família portadores da mutação não apresentavam sintomas nem sinais de doença hepática, apesar de a RM revelar teores de ferro aumentados no fígado, no coração e na medula óssea. Foram encontrados altos níveis de ferro sérico e a concentração de ferro no fígado estava elevada.

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HEMOCROMATOSE NEONATAL A hemocromatose neonatal (HN) é uma grave doença de sobrecarga de ferro no fígado e outras áreas do organismo que ocorre no recém-nascido e se manifesta invariavelmente por falência hepática aguda. A prevalência está estimada em 0,03-0,38, havendo um risco muito alto (~80%) de recorrência em gestações posteriores. Não é, contudo, uma doença hereditária, ainda que possa ser classificada como uma doença genética e familiar. Esta singularidade está relacionada com a etiopatogenia da HN, que é, pode dizer-se, surpreendente. A etiologia e os eventuais fatores implicados na sua génese permaneceram incompreendidos até há poucos anos, o que não quer dizer que a controvérsia tenha abandonado definitivamente a HN. A HN foi descrita inicialmente como doença de provável origem hereditária; mas não só o gene nunca foi descoberto, apesar de intensas pesquisas, como o padrão de transmissão não se coadunava com os critérios de uma doença hereditária. Para adensar ainda mais o mistério, acontecia, além do mais, que uma mulher que tinha várias gestações sem problemas e com crianças saudáveis, após um caso de HN, tinha 90% de probabilidades de dar à luz outra criança afetada. Acrescia o facto de a hemocromatose neonatal recorrer na mesma mulher com uma criança de pai diferente. Todas estas peculiaridades ocorriam num contexto recetivo à hipótese de que a HN era uma anomalia mitocondrial ou proveniente da transmissão transplacentária de um agente vírico. Mais uma vez, como tantas vezes tem acontecido em Medicina, foi a argúcia clínica, ao notar que a administração ocasional de imunoglobulina G a uma grávida evitava a ocorrência posterior de HN, que alertou para a causa. Descobrir que a lesão hepática era mediada pelo complemento e causada pela passagem de um anticorpo IgG, materno, contra os hepatócitos fetais, isto é, que se tratava de uma doença hepática gestacional aloimune (DHGA), foi apenas um passo. Um pequeno passo para a ciência, mas um passo de gigante para a criança recém-nascida, que, de


Hepatologia Clínica

368

O teste enzimático não é muito sensível, nem específico. Os falsos negativos ocorrem porque a atividade enzimática pode estar apenas reduzida, mas nunca completamente ausente; enquanto os falsos positivos acontecem porque a reduzida atividade da fosforilase pode ser devida a mutações nos genes PHKA2, PHKB e PHKG2, que codificam a fosforilase-b-cinase (glicogenose tipo IX). Os indivíduos afetados devem evitar períodos prolongados de jejum, recomendando-se refeições frequentes, com uma dieta rica em hidratos de carbono e suplementada com proteína. Os doentes devem evitar consumir excessiva quantidade de hidratos de carbono simples e substitui-los por amido. O tratamento pode não ser necessário quando os sintomas são ligeiros, mas evitar o jejum prolongado é aconselhável.

GLICOGENOSE TIPO IX A glicogenose tipo IX resulta da deficiência da fosforilase-b-cinase, compreendendo cerca de 25% de todas as glicogenoses. Apresenta alguma sobreposição com a glicogenose VI, dado que a fosforilase-b-cinase é necessária para a ativação da fosforilase glicogénica, responsável pelo tipo VI. A glicogenose tipo IX constitui um grupo muito heterogéneo de doenças, com envolvimento hepático e/ou muscular (Quadro 19.2). A heterogeneidade clínica está provavelmente relacionada com a complexidade da estrutura da fosforilase cinase e com as múltiplas mutações. A fosforilase cinase é composta por quatro subunidades (D, E, J, G), cada uma com diferentes genes em diferentes cromossomas e com diferentes expressões em vários tecidos.

As glicogenoses IXa e IXd resultam de mutações em genes localizados no cromossoma X. Enquanto o subtipo IXd está associado apenas a doença neuromuscular, os restantes subtipos envolvem o fígado, tendo o subtipo IXa apenas expressão hepática. Embora a hipoglicemia, sobretudo com o jejum, e a hepatomegalia estejam presentes em todos os subtipos com envolvimento hepático, somente os subtipos IXa e IXc apresentam doença hepática progressiva, incluindo desenvolvimento de adenomas e carcinoma hepatocelular. Esta perspetiva altera completamente a forma como era encarada a glicogenose tipo IX até recentemente: uma doença com curso benigno, assintomática, ou então com evolução favorável, na qual os sintomas e as alterações bioquímicas tendiam para o desaparecimento com o avançar da idade. O conhecimento atual sobre a glicogenose tipo IX, embora mantenha esse cunho de benignidade em relação a alguns subtipos, evoluiu no sentido de considerar que outros há que desenvolvem formas graves e fatais da doença. O diagnóstico de doença de armazenamento de glicogénio tipo IX pode ser sugerido quando à hepatomegalia se associa hipoglicemia em jejum, hiperlipidemia (IXa) e, eventualmente, miopatia. Mas a confirmação da doença requer a biopsia do fígado ou de outro órgão afetado. Dada a heterogeneidade genética, o teste enzimático, não invasivo, como a análise da fosforilase cinase em células sanguíneas, embora útil para reconhecer a presença de glicogenose tipo IX, não é suficiente para identificar o gene em causa. O sexo pode orientar a investigação, na medida em que a presença de mutações no gene PHKA2 causa glicogenose tipo IX em 80% de indivíduos do sexo masculino.

Quadro 19.2 – Glicogenose tipo IX. ÓRGÃO ALVO

DEFICIÊNCIA ENZIMÁTICA

GENE/CROMOSSOMA

MODO DE HEREDITARIEDADE

Fosforilase cinase (subunidade D)

PHKA2/Xp22.13

X-recessiva

IXb

Fosforilase cinase (subunidade E)

PHKB/16q12.1

Autossómica recessiva

Fígado

IXc

Fosforilase cinase (subunidade J)

PHKG2/16p11.2

Autossómica recessiva

Fígado

IXd

Fosforilase cinase (subunidade D-músculo)

PHKA1/Xq13

X-recessiva

Neuromuscular

SUBTIPO IXa

PRINCIPAL

Fígado


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apresentam doença antes da adolescência ou da vida adulta. Exibem, então, esplenomegalia ou hepatoesplenomegalia, falência respiratória, como resultado da doença pulmonar restritiva, alterações hematológicas (trombocitopenia em 39% e leucopenia em 3% dos casos) e perfil lipídico pró-aterogénico: LDL elevado, HDL baixo e triglicéridos elevados. As transaminases e a bilirrubina estão elevadas. Dores articulares ou ósseas nos membros inferiores são relativamente frequentes. Alguns doentes apresentam formas de doença mais suaves, sem envolvimento neurológico, compatíveis com longas sobrevivências. O diagnóstico pode revelar-se apenas pelo traço patológico característico: histiócitos de cor azul-marinho. Os aspetos patológicos são semelhantes nos dois tipos. As células com sobrecarga lipídica estão aumentadas de volume, o citoplasma é espumoso (foamy) e o núcleo encontra-se desviado para a periferia. No fígado, as células de Kupffer preenchidas com o mesmo material ocupam o espaço sinusoidal. Algumas células podem conter pigmento de lipofuscina. O material acumulado é birrefringente com a luz polarizada e cora intensamente com o Sudan B. O diagnóstico da doença de NP tipo A ou B é conseguido pela determinação da atividade da enzima em glóbulos brancos ou em cultura de fibroblastos cutâneos. A confirmação é obtida pela análise das mutações. O diagnóstico pré-natal pode ser efetuado por análise enzimática ou molecular dos amniócitos ou vilosidades coriónicas. Não existe nenhum tratamento específico, embora se encontre, na fase de ensaio clínico, uma esfingomielinase ácida humana recombinada. O transplante medular não corrige as anomalias neurológicas, pelo que está reservado apenas para o tipo B, em cujos doentes reduz o tamanho do fígado e do baço.

Doença de Niemann-Pick C A doença de NP tipo C, uma entidade autossómica recessiva que afeta todos os grupos étnicos, não é primariamente uma esfingomie-

Hepatologia Clínica

linose, embora o teor de esfingomielinase esteja secundariamente reduzido. No essencial, é uma lipidose resultante de um erro inato no tráfico citoplasmático do colesterol, com consequente acumulação de colesterol não esterificado nos lisossomas. Distinguem-se dois subgrupos: Niemann-Pick C1 (NP-C1) e Niemann-Pick C2 (NP-C2), de acordo com o gene envolvido – NPC1 e NPC2, respetivamente. A larga maioria dos casos descritos (95%) pertence ao subgrupo NP-C1 e somente cerca de 5% ao subgrupo NP-C2. A prevalência está muito longe de estar definida, porque as formas tardias, sem envolvimento neurológico, os fenótipos atípicos e as dificuldades no diagnóstico laboratorial tornam as estimativas muito imprecisas. No entanto, a prevalência de 0,66 a 0,83 por cada 100 000 habitantes, baseada nos dados de laboratório de três países europeus (Vanier MT, 2010), é, talvez, a prevalência mais próxima da realidade. No norte de Portugal, no período de 1985 a 2003 (Pinto, Caseiro, Lemos, et al., 2004), foram detetados nove casos, o que, provavelmente, não traduzirá a incidência real, que deverá ser mais elevada. Aquela informação foi obtida através de teste laboratorial em contexto de rastreio perinatal. Embora a função das proteínas codificadas pelos genes NPC1 e NPC2 não seja completamente conhecida, na realidade, a inativação das proteínas produzidas por estes genes altera o processamento e a utilização do colesterol, quebrando o normal transporte do colesterol endocitado, na forma de lipoproteínas de baixa densidade, dos endossomas para os lisossomas, onde será hidrolisado e o colesterol livre libertado. Em ambos os subtipos – NP-C1 ou NP-C2 –, o colesterol permanece endocitado e acumula-se nos lisossomas. No fígado e no baço, os lípidos acumulados incluem colesterol e esfingomielina não esterificados, fosfato de monoacilglicerol, glicolípidos, esfingosina e esfinganina livres. No neurónio, cuja patogénese parece ser mais complexa, os componentes acumulados são, sobretudo, glicoesfingolípidos, nomeadamente gangliósidos GME e GM3.


Infecções do fígado

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Figura 24.24 – Leishmânias nas células de Kupffer do fígado (setas) num doente de 31 anos, infectado com o vírus da imunodeficiência humana (VIH). Cortesia do Dr. Artur Costa e Silva. Ver figura a cores em extratexto.

A leishmaníase é uma doença fatal, se não for tratada. O tratamento pode ser com stibogluconato de sódio (20 mg/kg, IV/IM, uma vez por dia), durante 28 dias, ou com anfotericina B lipossómica (3 mg/kg, IV) nos dias 1-5, 14 e 21.

CRIPTOSPORIDÍASE Esta infecção ocorre em doentes imunodeprimidos que se apresentam com diarreia. Patologicamente, são de notar estenoses das vias biliares, reproduzindo os aspetos da colangite biliar primária, da colangite esclerosante iatrogénica e, ao nível da vesícula biliar, da colecistite acalculosa. O diagnóstico passa por demonstrar o parasita nas fezes ou na biopsia intestinal. O tratamento é com nitazoxanida: 500 mg (PO) de 12 em 12 horas durante três dias.

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OUTRAS INFECÇÕES PARASITÁRIAS Além dos já mencionados, outros parasitas podem invadir o fígado e originar reações inflamatórias, muitas vezes na forma de lesões granulomatosas. Estão entre eles o Enterobius vermicularis, a Capillaria hepatica, o Strongyloides stercolaris, etc.

Ł HEPATITE GRANULOMATOSA

A formação de granulomas no fígado é um fenómeno patológico frequente, que resulta de

uma reação inflamatória crónica, visando a degradação de um agente nocivo, ou de uma disfunção imune. No primeiro caso, não é raro o granuloma conter o agente agressor intacto, ou restos do mesmo; no segundo caso, domina a reação inflamatória rica em linfócitos e alguns plasmócitos, o típico granuloma epitelioide sem necrose. A prevalência de granulomas numa biopsia hepática varia entre 2% e 10%. Em dois terços dos casos são relativos a uma doença sistémica, em 28% estão relacionados com uma doença primária do fígado e em 6% não têm uma causa conhecida; conquanto alguns investigadores reconheçam que não é possível descortinar uma etiologia em cerca de um terço dos casos. As duas principais causas de granulomas hepáticos em todo o mundo são a tuberculose e a schistosomíase; em conjunto, poderão ser responsáveis por cerca de 30% a 40% dos casos. Contudo, nos países ocidentais, onde a tuberculose e as parasitoses têm menor impacto, a sarcoidose e a lesão hepática induzida por fármacos (DILI) reclamam uma fatia importante da etiologia, estimada em cerca de 30% da totalidade dos casos. Os granulomas podem ser divididos em várias categorias, de acordo com o padrão morfológico (Quadro 24.8). A morfologia do granuloma, em particular a composição e a estrutura da zona central, é útil para estabelecer o diagnóstico, sendo que


Capítulo

27 GRAVIDEZ E DOENÇA HEPÁTICA

Alterações das análises hepáticas podem ocorrer durante a gravidez, como consequência das modificações fisiológicas e hormonais associadas à gestação. O nível sérico da albumina diminui e a fosfatase alcalina aumenta em virtude da produção placentária e da atividade osteoblástica do feto; as concentrações das transaminases, pelo contrário, permanecem normais. Telangiectasias e aranhas vasculares podem ser encontradas no exame físico, mas estes estigmas não indicam doença hepática crónica, representando apenas uma manifestação de hiperestrogenismo. Quando necessário, a ecografia e a ressonância magnética sem contraste são métodos de diagnóstico que podem ser efetuados com segurança. Um reduzido número de mulheres grávidas (3%) desenvolve doença hepática em consequência da gravidez, podendo ser suficientemente grave para pôr em risco a vida da mãe e do feto. Estas doenças, exclusivas da gravidez, podem confundir-se com doenças hepáticas agudas não relacionadas, mas que coincidem com a gravidez; noutros casos, a gravidez ocor-

re numa mulher com doença hepática crónica, podendo alterar o curso da doença hepática preexistente. Por todas estas razões, o diagnóstico das hepatopatias na grávida é, geralmente, complexo, exigindo o conhecimento aprofundado dos respetivos quadros clínicos (Quadro 27.1). A probabilidade de uma grávida apresentar análises hepáticas alteradas é de 3% a 5%. As transformações fisiológicas próprias da gravidez podem originar variação nalguns testes hepáticos, nomeadamente da fosfatase alcalina, que aumenta cerca de duas a quatro vezes, e da D-fetoproteína. Pelo contrário, o nível sérico da albumina diminui, devido ao aumento do volume sanguíneo. A doença hepática específica da gravidez, cuja etiologia se desconhece, mas que, em muitos casos, está relacionada com fatores hormonais, genéticos e de incompatibilidade materno-fetal, tem apresentação clínica e laboratorial diversificada, conforme se pode observar no Quadro 27.2. Têm como traços dominantes: ocorrerem quase sempre no terceiro trimestre da gravidez, o que constitui um indicador de alerta para

Quadro 27.1 – Classificação das doenças do fígado na gravidez. DOENÇAS HEPÁTICAS NÃO RELACIONADAS COM A GRAVIDEZ DOENÇAS HEPÁTICAS RELACIONADAS

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COM A GRAVIDEZ

Ł Ł Ł Ł Ł Ł

Hiperémese gravídica Pré-eclâmpsia e eclâmpsia Colestase gravídica Síndrome HELLP Fígado gordo da gravidez Hematoma, infarto hepático e rotura do fígado

DOENÇAS HEPÁTICAS PREEXISTENTES Ł Ł Ł Ł Ł Ł Ł

Cirrose Hepatite B Hepatite C Doença hepática alcoólica Hepatite autoimune Doença de Wilson Esteato-hepatite

HELLP – haemolysis elevated liver enzimes and low platelets.

DOENÇAS HEPÁTICAS AGUDAS Ł Ł Ł Ł

Hepatite vírica Litíase biliar Hepatite tóxica Síndrome de Budd-Chiari


17 x 24 cm

A Hepatologia é a especialidade médica formalmente ligada à Gastrenterologia que se dedica ao estudo das doenças do fígado e das vias biliares. O fígado é transversal a praticamente todos os fenómenos metabólicos do nosso organismo, pelo que é afetado pela generalidade das doenças sistémicas. Por outro lado, as doenças intrínsecas do fígado, em especial a cirrose, condicionam de uma maneira ou de outra a atividade de todos os restantes órgãos. Neste cruzamento patológico encontra-se a justificação para este livro: agregar, numa perspetiva global, o conhecimento das doenças hepáticas, em que o fígado ocupa o centro da discussão clínica, esbatendo as fronteiras tradicionais de idade, condição e tipo de profissão. Aqui o leitor encontra temas pouco comuns em trabalhos do género, como sejam as doenças que afetam predominantemente as crianças, em particular os erros inatos do metabolismo, e as doenças infecciosas que envolvem o fígado. C

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Esta obra destina-se não só a estudantes da pré-graduação e internos da especialidade, como também a especialistas de Gastrenterologia e de Hepatologia, internistas e, evidentemente, pediatras e cirurgiões. Também poderá ser útil para médicos de outras especialidades que se interessem por rever ou aprofundar conhecimentos nesta área.

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“Conhecendo o autor e o seu percurso, este livro não constitui uma surpresa e estou seguro de que será muito útil, tornando-se uma referência incontornável para todos os que pretendam conhecer mais e melhor a Hepatologia, sejam alunos, médicos ou outros profissionais de saúde.” In Prefácio, de Armando Carvalho

ISBN 978-989-752-473-8

9 789897 524738

JOSÉ VELOSA

JOSÉ VELOSA Professor catedrático jubilado de Medicina e Gastrenterologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa; Presidente da Associação para Investigação e Desenvolvimento da Faculdade de Medicina; Foi diretor do Departamento de Gastrenterologia e Hepatologia do Centro Hospitalar Lisboa Norte; Foi presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia; Foi editor do Jornal Português de Gastrenterologia; Foi coordenador da Comissão Técnica da Subespecialidade de Hepatologia da Ordem dos Médicos.

www.lidel.pt

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HEPATOLOGIA CLÍNICA

HEPATOLOGIA ´ CLINICA

3,58 cm

17 x 24 cm

HEPATOLOGIA ´ CLINICA JOSÉ VELOSA


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