Ética em Medicina

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14,5 x 21cm

16mm

MEDICINA

As últimas décadas têm sido marcadas por imensa comoção e perturbação, mas a Ética nos cuidados de saúde não vai mudar nem desaparecer – há valores, princípios e deveres que, em abstrato e na prática, não se alteram fruto de circunstâncias. Mas, nem por isso, alguns dos novos factos podem deixar de exigir novas reflexões, interpretações e até eventuais exceções, justificadas e debatidas neste ou naquele cuidado de saúde concreto e particular.

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Assim, Ética em Medicina é um livro essencialmente dedicado a profissionais de saúde e a cidadãos interessados por temas Bioéticos, de atualidade e interesse tão evidentes no dia a dia.

Foi o primeiro Presidente eleito do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e Vice-Presidente eleito no Departamento de Bioética do Conselho da Europa. Coordenou na União Europeia três sucessivos projetos de investigação sobre Saúde Sexual e Reprodutiva. É autor de diversos livros sobre questões atuais de Bioética.

ISBN 978-989-752-515-5

9 789897 525155

MIGUEL OLIVEIRA DA SILVA

MIGUEL OLIVEIRA DA SILVA Professor Catedrático de Ética Médica na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e Obstetra-Ginecologista no Hospital de Santa Maria.

www.lidel.pt

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É neste contexto que surge este livro, pois, não se pretendendo fazer mais um exaustivo e convencional livro de texto, quis-se trazer um despretensioso e diferente contributo de docentes e discentes para reflexão e debate de algumas das mais recentes e difíceis – e, também por isso, menos abordadas – questões de Ética nos cuidados de saúde.

ÉTICA EM MEDICINA

ÉTICAEM

14,5 x 21cm

ÉTICAEM

MEDICINA Coordenação

MIGUEL OLIVEIRA DA SILVA


Ética em Medicina

Coordenação:

Miguel Oliveira da Silva

Lidel – edições técnicas, lda. www.lidel.pt


EDIÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Lidel – Edições Técnicas, Lda. Rua D. Estefânia, 183, r/c Dto. – 1049-057 Lisboa Tel: +351 213 511 448 lidel@lidel.pt Projetos de edição: editec@lidel.pt www.lidel.pt LIVRARIA Av. Praia da Vitória, 14A – 1000-247 Lisboa Tel.: +351 213 511 488 livraria@lidel.pt Copyright © 2020, Lidel - Edições Técnicas, Lda. ISBN edição impressa: 978-989-752-515-5 1.ª edição impressa: outubro de 2020 Paginação: Ana Cristina Santos Impressão e acabamento: Tipografia Lousanense, Lda. – Lousã Dep. Legal n.º 475570/20 Capa: José Manuel Reis Todos os nossos livros passam por um rigoroso controlo de qualidade, no entanto aconselhamos a consulta periódica do nosso site (www.lidel.pt) para fazer o download de eventuais correções. Não nos responsabilizamos por desatualizações das hiperligações presentes nesta obra, que foram verificadas à data de publicação da mesma. Não nos responsabilizamos pelo conteúdo desta obra, que reflete opiniões, critérios, conclusões e/ou resultados dos próprios autores. Os nomes comerciais referenciados neste livro têm patente registada. Reservados todos os direitos. Esta publicação não pode ser reproduzida, nem transmitida, no todo ou em parte, por qualquer processo eletrónico, mecânico, fotocópia, digitalização, gravação, sistema de armazenamento e disponibilização de informação, sítio Web, blogue ou outros, sem prévia autorização escrita da Editora, exceto o permitido pelo CDADC, em termos de cópia privada pela AGECOP – Associação para a Gestão, através do pagamento das respetivas taxas.


ÍNDICE

Autores........................................................................................................... VII Siglas e abreviaturas...................................................................................... IX Nota prévia..................................................................................................... XI Miguel Oliveira da Silva

1.  Ética Médica: Atualidade e Necessidade............................................. 1 Miguel Oliveira da Silva

2.  Confidencialidade: um Valor em Risco?............................................. 11 Miguel Oliveira da Silva

3.  A Humanização do Ato Médico............................................................ 25 Luís Duarte Madeira, Diana Micu, Susana Raposo Alves

4.  Conflitos de Interesse............................................................................ 41 Inês Leal

5.  Tratar Familiares e Amigos.................................................................. 55 Catarina de La Cueva Couto, Filipa Ladislau, João Bernardo Costa, João Pedro Valente

6.  Adoção.................................................................................................... 65 Andreia Oliveira, Henrique Ginja, Marta Oliveira, Sara Sousa Fernandes

7.  Procriação Medicamente Assistida...................................................... 75 Miguel Oliveira da Silva

8.  Acesso a Tratamentos Experimentais.................................................. 115 Inês Tribolet de Abreu, Inês Sofia Antunes, Liliana Cortes Pacheco

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9.  Bioética e Emergências......................................................................... 127 Patrícia de Oliveira Saraiva, Ronaldo Costa, Tomás Reis da Costa, Sofia Andraz

10.  Inteligência Artificial............................................................................ 135 André Bento, Bernardo Nogueira, Bruno Silva

11.  Robótica na Saúde................................................................................. 147 João Miguel Nobre, Marco Correia, Rodrigo Nogueiro, Sofia Esteves


VI  Ética em Medicina

12.  Parcerias Público-Privadas na Saúde................................................. 161 Tiago M. Fernandes, Madalena Bilé, André Bargas, Beatriz Miguel

13.  Custos na Saúde: o Caso das Doenças Raras..................................... 171 Catarina Morais Antas, Catarina Madeira dos Santos, João Romana

14.  Responsabilizar pelos Estilos de Vida?............................................... 179 Carolina Abreu Gomes, Daniel Alves, Filipa Meneses Freitas, Sofia Silva

15.  Limites à Intervenção do Estado na Gestão do índice de Massa 15.  Corporal...................................................................................................... 189 Beatriz Aranha Martins, Gisela Pires da Silva, Nádia Marcos

16.  Tratamento Compulsivo e Direitos das Pessoas com Incapacidades.. 199 Luís Duarte Madeira, Jorge Costa Santos

17.  Ética na Comunicação da Ciência....................................................... 219 Inês Leal

18.  Autonomia no Fim de Vida: Diretivas Antecipadas de Vontade, Cui18.  dados Paliativos, Suicídio Ajudado e Eutanásia................................ 227 Luís Duarte Madeira, Abel Abejas

Índice Remissivo............................................................................................ 241


AUTORES

COORDENADOR/AUTOR Miguel Oliveira da Silva Professor Catedrático de Ética Médica na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e Obstetra-Ginecologista no Hospital de Santa Maria. Foi o primeiro Presidente eleito do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e Vice-Presidente eleito no Departamento de Bioética do Conselho da Europa. Coordenou na União Europeia três sucessivos projetos de investigação sobre Saúde Sexual e Reprodutiva. É autor de diversos livros sobre questões atuais de Bioética.

AUTORES Abel Abejas Médico Especialista em Medicina Geral e Familiar, competência em Cuidados Intensivos; Diretor Clínico da Santa Casa da Misericórdia de Alcácer do Sal; Médico de Cuidados Paliativos e Coordenador da Equipa Intra-hospitalar de Suporte em Cuidados Paliativos (EIHSCP) do Hospital dos Lusíadas. Inês Leal Assistente Hospitalar de Oftalmologia no Centro Hospitalar de Lisboa Norte, Hospital de Santa Maria; Professora Assistente Convidada da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

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Jorge Costa Santos Especialista em Medicina Legal e Subespecialista em Psiquiatria Forense; Professor Catedrático Convidado no Instituto Universitário Egas Moniz; Membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida; Presidente da Comissão de Ética do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. Luís Duarte Madeira Psiquiatra no Centro Hospitalar de Lisboa Norte e Hospital CUF; Professor Assistente da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa; Vice­‑Presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental; Conselheiro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Susana Raposo Alves Psiquiatra no Centro Hospitalar de Lisboa Central; Mestrado Integrado em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e Doutoramento em Química Farmacêutica pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.


VIII  Ética em Medicina

Autores alunos finalistas do Mestrado Integrado em Medicina na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa:

André Bargas André Bento Andreia Oliveira Beatriz Aranha Martins Beatriz Miguel Bernardo Nogueira Bruno Silva Carolina Abreu Gomes Catarina de La Cueva Couto Catarina Madeira dos Santos Catarina Morais Antas Daniel Alves Diana Micu Filipa Ladislau Filipa Meneses Freitas Gisela Pires da Silva Henrique Ginja Inês Tribolet de Abreu Inês Sofia Antunes João Bernardo Costa João Miguel Nobre João Pedro Valente João Romana Liliana Cortes Pacheco Madalena Bilé Marco Correia Marta Oliveira Nádia Marcos Patrícia de Oliveira Saraiva Rodrigo Nogueiro Ronaldo Costa Sara Sousa Fernandes Sofia Andraz Sofia Esteves Sofia Silva Susana Raposo Alves Tiago M. Fernandes Tomás Reis da Costa


SIGLAS E ABREVIATURAS

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E

ACSA – Anaesthesia Clinical Services Accreditation ADN – Ácido desoxirribonucleico AMA – American Medical Association APHP – Associação Portuguesa de Hospitalização Privada AVC – Acidente vascular cerebral

E – Eutanásia EMA – Agência Europeia de Medicamentos ESHRE – European Society of Human Repoduction and Embriology

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CCNE – Conseil Consultatif National d´Éthique CDPD – Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência CES – Comissões Éticas para a Saúde CHKS – Caspe Healthcare Knowledge Systems CIOMS – The Council for International Organizations of Medical Sciences CNECV – Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida CNPMA – Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida COMPAS – Correctional Offender Management Profiling for Alternative Sanctions

D DAV – Diretiva antecipada de vontade DCV – Doença cardiovascular DPCO – Doença pulmonar crónica obstrutiva DPI – Diagnóstico pré­‑implantatório

F FDA – Food and Drug Administration FIV – Fertilização in vitro

G GIST – Tumor do estroma gastrointestinal GMC – General Medical Council

H HFEA – Human Fertilisation and Embryology Authority HLA – Human leukocyte antigens

I IA – Inteligência artificial IC – Internamento compulsivo ICSI – Injeção intracitoplasmática de espermatozoides IVG – Interrupção voluntária da gravidez


X  Ética em Medicina

L

S

LSM – Lei de Saúde Mental

SA – Suicídio assistido SPMR – Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução

M MCDT – Meios complementares de diagnóstico e terapêutica MIH – Medical Incapacity Hold ML – Machine learning

P PCS – Procurador de cuidados de saúde PMA – Procriação medicamente assistida PNV – Plano Nacional de Vacinação PPP – Parcerias público­‑privadas

R RNCCI – Rede Nacional de Cuidados Continuados RENTEV – Registo Eletrónico Nacional do Testamento Vital

T TAC­‑CE – Tomografia axial computorizada cranioencefálica TEDH – Tribunal Europeu dos Direitos Humanos

V VARTA – Victoria Assisted Reproductive Treatment Authority VIH – Vírus da imunodeficiência humana


NOTA PRÉVIA

Ética em Medicina é um livro essencialmente dedicado a profissionais de saúde e a cidadãos interessados por temas bioéticos, de atualidade e interesse tão evidentes no dia a dia. Não se pretendeu fazer mais um exaustivo e convencional livro de texto – que os há já e vários, alguns muito bons, em várias línguas e edições. Quisemos apenas fazer um despretensioso e diferente contributo de docentes e discentes para reflexão e debate de algumas das mais recentes e difíceis – e, também por isso, menos abordadas – questões de ética nos cuidados de saúde. Parte deste livro resulta de excelentes trabalhos originais apresentados por alguns alunos no quinto ano da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa no difícil ano letivo de 2019­‑2020 – alguns deles conservam aqui o seu caráter eminentemente exemplificativo, prático, propedêutico, interpelativo. E, se nem todos esses trabalhos puderam tecnicamente aqui ser vertidos, nem por isso quero deixar de agradecer, sem exceção, às minhas alunas e aos meus alunos a imensa gentileza e pronta disponibilidade com que comigo embarcaram nesta aventura editorial.

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Durante a fase inicial da pandemia de COVID­‑19, a ética dos cuidados de saúde foi, em diversas das suas áreas – como nunca –, alvo de imenso debate, falatório, escrutínio pelos cidadãos em geral, num imenso interesse e genuína participação cidadã na coisa pública. Passada a maré alta, separados o trigo do joio, distinguidas nestas áreas a profundidade e o conhecimento científico da superficialidade, vulgaridade e atrevimento de tantos protagonistas de oportunidade, algo subsistirá, certamente, de todo este interesse e genuína curiosidade cívica pela Ética Médica – porque nada será verdadeiramente como dantes após esta imensa aula prática de Bioética nas nossas vidas. Muito daquilo que tem sido, nas últimas décadas, a ética nos cuidados de saúde não vai mudar nem desaparecer pela imensa comoção e perturbação de tempos tão extraordinários que se viveram – há valores, princípios e deveres


XII  Ética em Medicina

que, em abstrato e na prática, não se alteram fruto de circunstâncias. Mas, nem por isso, alguns dos novos factos podem deixar de exigir novas reflexões, interpretações e até eventuais exceções, justificadas e debatidas neste ou naquele cuidado de saúde concreto e particular, em função das prioridades nos recursos existentes, os quais não podem, também, deixar de ser alvo de profundo e urgente investimento, logístico e em profissionais diferenciados e eticamente preocupados e competentes. É de tudo isto que trata este livro, cujo debate e crítica são bem­‑vindos. Miguel Oliveira da Silva (Coordenador)


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CONFIDENCIALIDADE: UM VALOR EM RISCO? Miguel Oliveira da Silva

INTRODUÇÃO A confidencialidade é um valor essencial na relação médico­‑doente, não podendo ser encarada como um mero ideal, utópico, tradicional e hipocrático. A confidencialidade está em risco. Não pode ser um “conceito decrépito”,[1] que já quase não existe na prática clínica, na forma como é entendido e prati‑ cado por profissionais de saúde e doentes. E, no entanto, a confidencialidade parece estar sistematicamente comprometida na rotina médica, com muitos mé‑ dicos e estudantes de Medicina a revelarem, frequentemente, que partilham, sem consentimento do doente, casos clínicos com familiares e terceiros.[2] Mas, mesmo assim, os doentes continuam a confiar nos profissionais de saúde. Imaginemos o que seriam os cuidados de saúde num mundo em que ninguém confiasse no seu médico, na sua enfermeira, o que quer dizer que é notável o quanto confiamos nos profissionais de saúde. Os profissionais de saúde têm – talvez como em nenhuma outra profissão – o imenso privilégio e a responsabilidade de, em poucos minutos, serem alvo de dados e factos cuja partilha mostra a maior confiança e confidência por parte de quem os consulta e deles necessita, tantas vezes em áreas tão íntimas como a sexualidade, a reprodução, a contraceção, a paternidade, a saúde mental, os hábitos de vida, comportamentos malsãos e outros assim à proporção.

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A confidencialidade em Bioética – da investigação biomédica à prestação de quaisquer cuidados de saúde por quaisquer profissionais de saúde – é um valor e um bem único e insubstituível. A confiança é recíproca, mesmo que a relação clínica seja assimétrica, por‑ que o médico tem uma competência própria. E há confiança no contexto de uma relação de “aliança terapêutica”,[3] mesmo de amizade, no sentido mais lato de philia, a desinteressada amizade socrática[4] e aristotélica. Confidencialidade supõe, como o nome indica, haver alguém (o doente, o paciente) que confia no profissional de saúde. E o doente tem que ter a certeza


12  Ética em Medicina

de que tudo o que é voluntária e livremente revelado, confiado e apurado, é alvo de sigilo e segredo médico (no sentido lato). A confidencialidade é a base elementar e estrutural da relação médico­‑ ­‑doente. É um valor e um princípio hipocrático basilar e, como tal, referido no Juramento de Hipócrates. Sem a certeza da confidencialidade, o doente pode não querer ou não se sentir seguro e à vontade para revelar aspetos essenciais da sua história. Pode não haver verdade clínica. A anamnese, a história clínica, o exame objetivo (o doente pode ocultar sintomas) e a semiologia, como parte integrante e decisiva de um diagnóstico, podem não ser feitos de forma correta e, consequentemente, o diagnóstico e a terapêutica podem não ser acertados. Enquanto a Ética Médica se baseou, até meados do século XX, quase exclu‑ sivamente num diálogo entre duas pessoas, numa relação individual médico­ ‑doente, o que se dizia ao médico era sagrado, quase como o que se dizia ao padre em segredo de confissão. As pessoas referiam ter o “seu” médico – o mesmo médico, às vezes, durante décadas –, no qual acreditavam cegamente, até ao extremo, numa relação de cumplicidade e até de confiança técnica por vezes excessiva, quase fanática.I Pode, excecionalmente, ter que se quebrar a confidencialidade em função de um bem maior, até porque o respeito pela autonomia – valor essencial, valor consequente e valor maior – também não é absoluto, nem um escudo totalmente protetor da privacidade, quando daí possam resultar sérios danos, sobretudo para terceiros. Até autores tão principialistas e formais como Beauchamps e Childress reconhecem que “quebras paternalísticas de confidencialidade são também às vezes eticamente justificáveis” (p. 307).[5] Entretanto, a Medicina foi­‑se diferenciando, adquiriu cada vez mais especia‑ lidades, subespecialidades e trabalho em equipa, e passaram a ser formalizados os direitos alargados e formais dos doentes, como o respeito pela sua autono‑ I   Muitos doentes quase temiam ouvir uma segunda opinião técnica de um outro clínico, por vezes com receio de que o “seu” médico, se de tal soubesse, ficasse ofendido e reagisse negativamente. Ora, a verdade é que o recurso a uma segunda opinião médica, por iniciativa do doente e até do primeiro médico, é uma excelente prática clínica (de resto, sancionada no artigo 111.º do código deontológico da Ordem dos Médicos. “Pedido de segunda opinião: 1 — O médico deve encorajar o doente a pedir uma segunda opinião caso o entenda útil ou se aperceba de que é essa a vontade do doente. 2 — Neste caso, o médico deve fornecer todos os elementos relevantes que possam ser utilizados por outros médicos.”[6]


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A HUMANIZAÇÃO DO ATO MÉDICO Luís Duarte Madeira, Diana Micu, Susana Raposo Alves

INTRODUÇÃO Discutir o humanismo na área da Saúde torna­‑se relevante na medida em que a sua presença ou ausência modifica inúmeras valências da clínica. Esta revisão permite entender a abrangência do “humanismo”, assim como as vanta‑ gens que a Medicina humanista traz, quer para o doente, quer para o prestador de cuidados. Permite, por outro lado, entender como se chegou a uma prática da Medicina pouco humanizada, pela transformação do modelo de cuidados de saúde, pelo stress no trabalho (facilitador da síndrome de burnout) e pela progressivamente maior presença da tecnologia. São, finalmente, revistos mo‑ delos alternativos de formação de profissionais de saúde, que não favoreçam meramente conhecimentos teóricos, mas também valências empáticas e morais – recorrendo, por exemplo, a projetos de orientação e acompanhamento e a gru‑ pos de partilha e discussão de experiências –, e que, em simultâneo, preservem o equilíbrio na vida do profissional de saúde.

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METODOLOGIA Foi realizada, em outubro de 2019, uma procura de artigos na base de da‑ dos PubMed, com a intenção de identificar artigos referentes ao humanismo na Medicina. Foi feita uma pesquisa por todos os artigos escritos nos últimos 10 anos que incluíssem os seguintes critérios: MeSH “Humanism” AND “Medici‑ ne” OR “Humanism” AND “Delivery of Health Care”. Posteriormente, foram avaliados os títulos, os resumos e as palavras­‑chave, com o objetivo de refinar a pesquisa, e procedeu­‑se à obtenção do texto integral dos restantes artigos. Os critérios de exclusão foram: artigos escritos noutras línguas que não a inglesa e a portuguesa; artigos que não se referissem de forma direta ao humanismo na Medicina; artigos apenas com resumo. Dos 2439 artigos identificados na PubMed, 61 foram incluídos nesta síntese. O fluxo de artigos está representado na Figura 3.1.


26  Ética em Medicina

PubMed Artigos anteriores a outubro de 2009 = 1852 Artigos relacionados com outras espécies que não a humana = 25 562 títulos e resumos avaliados

255 artigos avaliados na íntegra

61 artigos incluídos

Texto noutra língua que não inglês nem português = 73 Conteúdo não relacionado com o tema proposto = 121

Figura 3.1.  Fluxode deartigos artigoscom comrespetivos respetivosmotivos motivosde deexclusão. exclusão. 3.1. Fluxo

CONTEXTUALIZANDO O HUMANISMO NA MEDICINA O humanismo na Medicina tem sido cada vez mais difundido e debatido, o que espelha uma preocupação relativamente ao contexto atual. Compreender esta questão passa, primeiro, por esclarecer a abrangência do conceito “huma‑ nismo” e de como este é essencial no cuidado médico. O humanismo é mais frequentemente definido de uma forma gestáltica (“forma de ser”) do que como um conjunto de características independentes. [1] Não obstante, a literatura define um determinado conjunto de característi‑ cas que descrevem o perfil ideal de um indivíduo “humanista”. Por exemplo, o humanismo traduz a manifestação de um conjunto de competências afe‑ tivas: altruísmo, integridade, respeito pelos pares, empatia e compaixão.[1­‑4] Estas competências tornam­‑se fulcrais na eficácia da comunicação na relação médico­‑doente – no encontro em que o indivíduo aparece com as suas necessi‑ dades e vivências.[5] O realismo também parece ser outro elemento invariável do humanismo. A expressão deste na prática médica inclui não só a consciên‑ cia dos perigos inerentes aos pensamentos irrealistas (por exemplo, de que a ciência detém as respostas para todos os problemas), como também a consci‑ ência de que o ser humano é tangível (por exemplo, de que irá morrer – sendo o reconhecimento e a aceitação dessa realidade um passo fulcral na prática de uma Medicina humanizada).[6,7] A principal preocupação da Medicina é, e deve ser, a pessoa com os seus respetivos valores, como um todo, e não meramente a sua anatomia ou fisio‑ logia.[7,8] A consciência holística de um ser humano que adoece é reiterada


Conflitos de interesse  45

Conflitos de papéis Este subtipo de conflitos de interesse é exemplificado de forma prática no contexto da Medicina Intensiva. Os intensivistas são, muitas vezes, os gatekeepers da unidade de cuidados intensivos: por um lado, têm o interesse de tratar doentes que possam beneficiar de cuidados diferenciados; por outro lado, têm de preservar camas e outros recursos para a eventualidade de surgirem outros indivíduos que tenham uma indicação ainda mais clara e urgente de transferência para os cuidados intensivos.[10] Ou seja, perante um pedido de admissão de um doente, têm de fazer uma avaliação criteriosa das características do mesmo e decidir se têm critérios de admissibilidade na unidade, havendo, por vezes, uma tensão entre estes dois papéis: tratar doentes gastando recursos versus preservar recursos para hipotéticos doentes futuros. Este conflito torna­ ‑se constante e ainda mais delicado face a situações extremas de catástrofe, como a pandemia de COVID­‑19, em que os casos vindouros com necessidade de cuidados intensivos e recurso a ventilação são hipotéticos, mas quase certos, e os recursos existentes são real e permanentemente limitados. Noutro contexto, muitos médicos em hospitais universitários são igualmente docentes: ensinam os alunos de Medicina em Faculdade de Medicina ou ensinam os internos da especialidade no plano prático de ensino pós­‑graduado. Neste sentido, haverá momentos em que estes dois papéis, ambos trazendo responsabilidades e interesses específicos, podem colidir. Por exemplo, pode haver uma tensão entre realizar tarefas médicas ou cirúrgicas pelo especialista, com uma maior ou menor segurança pelos seus anos de experiência e saber acumulados, e ensinar aos alunos e internos como realizar um gesto naquele doente em particular, assim assegurando a continuidade de cuidados numa determinada área para muitos outros doentes.[10]

Conflitos de interesse conscientes e inconscientes

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Alguns autores distinguem ainda os conflitos de interesse de acordo com o grau de consciência que o indivíduo tem sobre eles. Um conflito de interesse consciente ocorre quando o agente está totalmente a par do potencial que um terceiro possa ter sobre o seu julgamento ou as suas ações e, por isso, ou deixa ativamente que tal ocorra, ou tenta encontrar meios para o evitar. O conflito de interesse inconsciente ocorre quando um agente não tem noção de que existe um antagonismo que poderá influenciar as suas decisões, ou quando o reconhece mas considera que é capaz de ser imparcial e objetivo.


46  Ética em Medicina

CONFLITOS DE INTERESSE EM CIÊNCIA E DECLARAÇÃO DE CONFLITOS DE INTERESSE “Our readers are not children. They’re physicians, scientists, health policy experts, and medical reporters. They can figure this thing out so long as we give them the information.” Lundberg, George

Como observou João Lobo Antunes, em ciência, a palavra “integridade” pode ser apreciada a vários níveis – em primeiro lugar, no plano individual, desde o desenho de um estudo, à redação de uma proposta de investigação e sua execução e à comunicação de resultados; em segundo lugar, num plano mais coletivo, desde a avaliação de uma publicação por pares (peer review), até à proteção de um participante na investigação, sobretudo na área dos conflitos de interesse.[1] As publicações em ciência têm sido alvo de atribuição de importância crescente na comunidade biomédica e científica. A ciência só existe depois de ser publicada.[12] As publicações são a prova factual de atividade por parte de um grupo de investigação e constituem a forma de disseminar as descobertas realizadas na comunidade científica. São igualmente um instrumento de avaliação de desempenho e, em algumas universidades, são a maneira de permitir a progressão na carreira académica. Os conflitos de interesse em ciência podem agrupar­‑se em dois grandes grupos:   As relações dos investigadores com a academia e com a indústria ou agência de financiamento;   Os interesses relacionados com a publicação, havendo, naturalmente, algumas situações que cruzam estes dois domínios. Quanto ao primeiro grupo, é evidente que um investigador que tenha ligações à indústria farmacêutica pode fazer valer um interesse secundário de beneficiar esta agência ao invés de privilegiar o interesse primário idóneo e íntegro de conduzir uma investigação que traga proveito à ciência. Desta maneira, encontramos posições extremistas na literatura. No desejo de construir barreiras cada vez mais difíceis de transpor entre a indústria e a ciência, há autores que advogam a total ausência de laços entre médicos investigadores e a indústria. Contudo, outros referem que a colaboração entre médicos e a indústria é vital para o desenvolvimento seguro de novos fármacos. A consultoria médica é essencial para a indústria no desenho dos estudos, na aprovação dos


Conflitos de interesse  47

mesmos e na conceção de estratégias de recrutamento corretas e profícuas de doentes em ensaios clínicos, recusando, por exemplo, duplos padrões de exigência e objetivo descaminho ético em ensaios realizados em países em vias de desenvolvimento.[2,13] O detalhe em que estes conflitos de interesse devem ser declarados também é motivo de debate. Por exemplo, numa publicação em que seja dito que “o investigador X recebeu financiamento da indústria Z”, tal significa que recebeu uma soma avultada a título pessoal por consultoria ou que o seu departamento de investigação recebeu uma bolsa para investigação?[3] Além disso, estes dois cenários distintos trazem conflitos de interesse com dimensões de tal maneira incomparáveis que se torna recomendável esclarecer em maior pormenor os termos deste financiamento?

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Quanto ao segundo grupo, existem inúmeros momentos na publicação em que os conflitos de interesse podem ser evidentes. Considerando, por exemplo, a etapa de peer review, existem múltiplos conflitos de interesse possíveis, pois o avaliador pode: ser um rival científico, por estar a investigar na mesma área do artigo que foi submetido; ter relações familiares ou pessoais com quem submeteu artigo; ter a tentação de utilizar informação científica não publicada para seu próprio proveito; ou mesmo querer atrasar a publicação de determinado projeto até à conclusão do seu próprio. Tanto para conflitos de interesse relacionados com a indústria, como para os decorrentes da publicação científica, uma das formas mais extensamente exploradas na literatura para tentar mitigar um conflito de interesse é, exatamente, declará­‑lo ao público.[14] Os leitores têm o direito de ser informados sobre os conflitos de interesse de autores de determinada publicação.[15,16] Todas as situações descritas levam a que haja uma necessidade de declaração de conflitos de interesse por parte, não só do investigador que submete um artigo, mas também dos revisores de determinada revista. Essa declaração de conflitos de interesse deve estar facilmente acessível e, idealmente, ser suficientemente detalhada e atualizada. Discute­‑se muito na literatura médica a periodicidade com que a declaração deve ser atualizada, uma vez que existem conflitos de interesse sistemáticos e outros ocasionais.[6] Outro detalhe que tem sido largamente debatido prende­‑se com o universo de pessoas que devem realizar a sua declaração de conflitos de interesse. Parece que não só os autores deverão fazê­‑lo, como também deverá ser estendido esse convite (ou essa obrigação) aos editores e aos diretores de revistas científicas,


Procriação medicamente assistida  111

  Possibilidade de, em metamorfose fisiológica que ultrapassa as leis da natureza e desafia o relógio biológico e social (no corpo e no espírito), ocorrer gravidez na pós‑menopausaLXXVI,LXXVII em Portugal, a quem, por exemplo, tenha previamente congelado os respetivos ovócitos (ou aceite os de uma dadora) e tenha o útero em condições que possibilitem uma gravidez;   “Turismo reprodutivo”, com mulheres e pares não residentes a desloca‑ rem‑se ao nosso país, aproveitando a disparidade nas legislações bioéticas europeias e, assim, escapando às restrições legais existentes em diferentes ordenamentos jurídicos;   Benefício dos centros privados subsidiados pelo SNS – “O Ministério da Saúde pode acordar com os centros privados autorizados o financiamento de utilização de técnicas de PMA» (artigo 16.o, Decreto Regulamentar citado);   Linhas de financiamento específicas para o Banco Público de Gâmetas (Despacho n.o 679/2017). Não vou tão longe como o iconoclasta Jacques Testart,[42] pioneiro da FIV em França, em 1979. Este biólogo defende que os profissionais de saúde não têm como seu dever ou obrigação praticar inseminação artificial nos casos em que não haja esterilidade médica – nas suas palavras, estas mulheres podem perfeitamente autoinseminar‑se com esperma de quem muito bem entendam ou consigam, colocando esperma na respetiva vagina aquando da ovulação, com auxílio de uma seringa.   A gravidez em idade reprodutiva avançada (maior de 40 anos) é situação de alto risco materno‑fetal que se associa a significativas complicações: hipertensão, diabetes, parto pré­‑termo, aumento de cesarianas e suas complicações, maior incidência de abortamentos espontâneos, anomalias fetais. É boa Medicina e boa Ética reprodutiva desencorajar for‑ temente a transferência de embriões para o útero de mulheres com mais de 45 anos e com situações de base que aumentam os riscos obstétricos; e, por maioria de razão, desencorajar, em geral, após a menopausa, pelo alto risco da gravidez e pela longevidade da mulher. (Ethics Committee of the American Society for Reproductive Medicine (2016). Oocyte or embryo donation to women of advanced reproductive age: an Ethics Committee opinion. Fertility Sterility, 106, 3­‑7) LXXVII   A avaliação de riscos neste grupo etário, independentemente das questões éticas, é sublinhada, defendendo‑se normas de orientação rigorosas e precisas. (MacArthur, T. et al. (2016). Menopausal women requesting egg/embryo donation: examining health screening guidelines for assisted reproductive technology. Menopause, 23(7), 799‑802)

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112  Ética em Medicina

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS   1.  Golombok, S. (2017). Parenting in new family forms. Current Opinion in Psychology, 15, 76‑80.   2.  Wilson, E. (1978). On Human Nature. Harvard University Press: Cambridge, Mass.   3.  Blendon, R. J. et al. (2016). The Public and the Gene‑Editing Revolution. NEJM, 374(15), 1406‑1411.   4.  Ceshire, S. (2017). Fertility Treatment Add‑Ons: Do They Add Up? Royal College of Obstetrics and Gynaecology, Londres, 29/03/2017.   5.  Laufer, D. & Mauron, V. (2016). Voyage en Zygotie – Histoires d’Embryons. Nantes: Éditions Nouvelles Cécile Defaut.   6.  Trindade Santos, J. (1992). Antes de Sócrates – trajectos. Lisboa: Gradiva, p. 85.   7.  CCNE (2017, junho 15). Avis du CCNE sur les demandes sociétales de recours à l’assistance médicale à la procréation (AMP). Avis, 126, 25.   8.  Persaud, S. et al. (2017). Adolescents conceived through donor insemination in mo‑ ther‑headed families: a qualitative study of motivations and experiences of contacting and meeting same‑donor offspring. Children & Society, 31, 13‑22.   9.  Habermas, J. (2012). Um Ensaio sobre a Constituição Europeia. Lisboa: Edições 70. 10.  Holwell, E. et al. (2014). Egg donation brokers: an analysis of agency versus in vitro clinic websites. Jounal of Reproductive Medicine, 59(0), 534‑541. 11.  Moreira, A. (1999). Teoria das Relações Internacionais. Coimbra: Almedina, p. 384. 12.  Isaksson, S. et al. (2016). It takes two to tango: information‑sharing with offspring among heterosexual parents following identity release sperm donation. Human Repro‑ duction, 31(I), 125‑132. 13.  Brunetti‑Pons, C. (2017). Rapport Final. Le “Droit à l’Enfant” et la Filiation en France et dans le Monde. Université de Reims, Reims. 14.  Pennings, G. (2017). Disclosure of donor Conception, age of donors and the well‑being of donors offsprings. Human Reproduction, 32(5), 969‑973. Doi: https://doi.org/10.1093/ humrep/dex056 15.  Golombok, S. (2017). Disclosure and donor‑conceived children. Human Reproduction, 32(7), 1532­‑1536. https://doi.org/10.1093/humrep/dex104 16.  Ficthe. Das System der Sittenlehre nach den Principien der Wissenschaflslehre. 1978, III, §23, II. In Barata‑Moura, J. (2007). Da Mentira: Um Ensaio – Transbordante de Errores. Lisboa: Caminho, p. 125. 17.  Galton, F. (1883). Inquiries into Human Faculty and Development. Londres: Macmillan, pp. 24‑25 18.  Zadeh, S. et al. (2017). Children’s thoughts and feelings about their donor and securi‑ ty attachment to their solo mothers in middle childhood. Human Reproduction, 32(4), 868‑875. 19.  Pereira, A. (2016). Dadoras de óvulos – motivações para a doação e decisão sobre a revelação da sua identidade. 6.o Congresso Português de Medicina da Reprodução. Ílhavo, 14/04/2016


Ética na comunicação da ciência  223

OS MEDIA E A COMUNICAÇÃO EM SAÚDE Recentemente, temos assistido a um interesse indubitavelmente crescente dos media pela ciência – disso foi exemplo excecional e eloquente a intervenção leiga e mediática na pandemia de COVID­‑19. Tal poderá dever­‑se ao facto de os desenvolvimentos científicos nos conduzirem a questões profundas sobre a natureza humana: início e fim de vida, a importância da ecologia e relevância da identidade genética. Tudo isto contribui para colocar os temas da ciência nas agendas política e mediática.[9] Em geral, os meios utilizados para difundir informação científica ao grande público são jornais, revistas, Internet, rádio, televisão e filmes. O objetivo pri‑ mário de comunicação de ciência pelos media é fornecer informação científica aos cidadãos na esfera pública, de forma a que estes consigam desenvolver um “temperamento” (interesses, participação) científico que lhes permita compre‑ ender, discutir, argumentar e analisar informação científica, mesmo que a um nível menos profissional. Há benefícios evidentes em envolver os media na disseminação da informa‑ ção científica: a possibilidade de chegar a audiências em massa, mesmo que em sítios remotos do planeta; enfatizar as potencialidades de novas tecnologias em saúde, atraindo, com isso, investimento; e conseguir emitir uma mensagem de forma muito rápida em relação à cronologia do acontecimento em si.

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Contudo, existem preocupações que bioeticistas têm levantado sobre esta temática:   Certos títulos de reportagens ou entrevistas, por vezes, exagerados ou des‑ contextualizados, podem veicular uma informação não verdadeira, exage‑ rar um facto e até contribuir para sentimentos de medo, choque, pânico e ansiedade inapropriados por parte da população em geral;   Um dos maiores desafios da comunicação de ciência pelos media é a criação de laços de confiança entre os cientistas e a população. Numa época em que é fácil disseminar as chamadas fake news, é fundamental dar aos cientistas plataformas de comunicação para massas, em que haja a segurança de que os dados são transmitidos com veracidade para o público em geral. Idealmente, deveria haver jornalistas especializados em comunicação de ciência, em geral, e por áreas específicas – algo que se afigura cada vez mais difícil, em vista das limitações de recursos económicos na comunicação social,


18

AUTONOMIA NO FIM DE VIDA: DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE, CUIDADOS PALIATIVOS, SUICÍDIO AJUDADO E EUTANÁSIA Luís Duarte Madeira, Abel Abejas

INTRODUÇÃO O fim de vida é um momento de extraordinária vulnerabilidade e também, dela derivada, de responsabilidade no cuidado que surge de forma categórica e universal. Para cuidar bem, precisamos de saber como fazê­‑lo – seja tratan‑ do, paliando ou respeitando valores individuais, que podem ir até à extensão de um pedido de morte. O cuidado aqui tem interseções éticas com doutrinas consequentalistas, mas também, e principalmente, aspetos deontológicos como os firmados no “princípio de responsabilidade de Hans Jonas” (surge do im‑ perativo categórico de I. Kant, enunciado segundo duas formulações: uma lei universal – atua de forma a que a tua ação possa ser universal – e um fim em si mesmo – atua na tua pessoa e nos outros como num fim último e nunca apenas como um meio).

CUIDADOS PALIATIVOS Tratar envolve ser capaz de oferecer estratégias de prevenção primária e secundária, bem como tratamentos eficazes e efetivos que resolvam sofrimento físico e psíquico e restituam a saúde. Porém, existe também a necessidade de paliar em todas as situações em que, por motivos de doença ou fragilidade, não exista possibilidade de cura ou retorno ao estado inicial, quando por lesão ou doença exista um prognóstico vital limitado ou fechado.

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Assim, os cuidados paliativos são cuidados de saúde especializados para pessoas com doenças graves e/ou avançadas e progressivas, qualquer que seja a sua idade, diagnóstico ou estádio da doença. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS):   Promovem o alívio da dor e de outros sintomas disruptivos;   Afirmam a vida e encaram a morte como um processo natural, que nem antecipam, nem atrasam;   Integram no cuidar os aspetos psicológicos e espirituais do doente;   Ajudam o doente a viver tão ativamente quanto possível até à morte;


Autonomia no fim de vida  239

Formulado no sentido de por mais restritiva que seja a lei e por mais rigorosa que seja a sua aplicação, os erros e os abusos são inevitáveis

O erro é inerente à prática da Medicina e, como tal, não deve ser impeditivo da práti­ ca, quer pelo risco de errar, quer pela difícil operacionali­ zação.

A inevitabilidade do erro não inviabiliza eti­ camente a prática da Medicina, pelo que, se o suicídio assistido ou a morte provocada a pedido se constituírem como práxis no futuro, podem ter erros associados e nem por isso tal será justificação para rejeitar liminarmente todos os pedidos de morte.

O risco de erro na avaliação e na aplicação do pedido de morte será sempre exces­ sivo, pois, pelas alegações dispostas nos restantes ar­ gumentos, só um cenário de risco zero justificaria a sua aprovação.

Procedimentos administrativos que visam o controlo dos procedimentos serão sempre falíveis – não basta adicionar mais uma ou duas avaliações para reduzir o erro associado ao diagnóstico.

Nas práticas no fim de vida humana, os cuidados paliativos são conceptualmente díspares ou, pelo contrário, interconectam­ ‑se e interagem com a morte a pedido.

Argumento sobre “a relação com os cuidados paliativos”

Argumento de “risco de abuso e maus usos”

(continuação)

A. Os cuidados paliativos são ameaçados conceptualmente por a introdução destas novas práticas nos cuidados no fim de vida “permitir ao doente controlar o seu futuro, vencer o medo da dependência e o desespero existencial”.

B. Na Bélgica, muitos profissionais dos cuida­ dos paliativos aceitam funções de suporte dos médicos assistentes ou até mesmo serem cha­ mados para eles mesmos executarem atos de eutanásia.

O pedido de morte é uma prá­ tica subsidiária e só pode de­ correr uma vez esgotada toda e qualquer alternativa, desta forma, exigindo uma melho­ ria dos cuidados paliativos.

Aceitar práticas de fim de vida que a terminem precocemente obvia o enorme investimento humano e financeiro que exigem os cuidados paliativos e, desta forma, põe­‑nos em causa.

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CONCLUSÃO As decisões éticas em fim de vida exigem planificação antecipada de cuida‑ dos, para que seja possível proteger e respeitar a autonomia numa fase em que é necessária a escolha ou a recusa de intervenções beneficentes. Conhecer as vontades/diretivas antecipadas, na forma de testamento vital, deverá resultar de um processo de ponderação, assim como é necessário garantir que o procurador de cuidados de saúde conhece verdadeiramente a história de valores do doente. De outro modo, tornam­‑se documentos vazios e contrários ao exercício da auto‑ nomia e apenas espelho de uma prática de medicina defensiva. Neste capítulo, pretendemos também clarificar aspetos fundamentais sobre a eutanásia e o suicídio assistido, apresentando, na complexidade, os vários argumentos de acordo com o documento de trabalho de 2017 do CNECV. [12]


14,5 x 21cm

16mm

MEDICINA

As últimas décadas têm sido marcadas por imensa comoção e perturbação, mas a Ética nos cuidados de saúde não vai mudar nem desaparecer – há valores, princípios e deveres que, em abstrato e na prática, não se alteram fruto de circunstâncias. Mas, nem por isso, alguns dos novos factos podem deixar de exigir novas reflexões, interpretações e até eventuais exceções, justificadas e debatidas neste ou naquele cuidado de saúde concreto e particular.

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Assim, Ética em Medicina é um livro essencialmente dedicado a profissionais de saúde e a cidadãos interessados por temas Bioéticos, de atualidade e interesse tão evidentes no dia a dia.

Foi o primeiro Presidente eleito do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e Vice-Presidente eleito no Departamento de Bioética do Conselho da Europa. Coordenou na União Europeia três sucessivos projetos de investigação sobre Saúde Sexual e Reprodutiva. É autor de diversos livros sobre questões atuais de Bioética.

ISBN 978-989-752-515-5

9 789897 525155

MIGUEL OLIVEIRA DA SILVA

MIGUEL OLIVEIRA DA SILVA Professor Catedrático de Ética Médica na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e Obstetra-Ginecologista no Hospital de Santa Maria.

www.lidel.pt

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É neste contexto que surge este livro, pois, não se pretendendo fazer mais um exaustivo e convencional livro de texto, quis-se trazer um despretensioso e diferente contributo de docentes e discentes para reflexão e debate de algumas das mais recentes e difíceis – e, também por isso, menos abordadas – questões de Ética nos cuidados de saúde.

ÉTICA EM MEDICINA

ÉTICAEM

14,5 x 21cm

ÉTICAEM

MEDICINA Coordenação

MIGUEL OLIVEIRA DA SILVA


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