14,5 cm
13,2 mm
Casos Bicudos e Outros Dilemas Diagnósticos Porquê um título tão invulgar? Todos sabemos o quão estranho é o ornitorrinco, esse animal heterogéneo que, pondo ovos, é mamífero, e que, tendo bico de pato, tem uma cauda semelhante à de um castor.
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Assim, este livro pretende, de uma forma clara e objetiva, ser um manual de apoio ao médico interno de Psiquiatria e ao médico especialista, no que diz respeito a algumas das síndromes mais extravagantes.
Folie à deux Odisseia pelas parafrenias Perturbações psicóticas agudas e transitórias Prurido psicogénico perturbação funcional do prurido Psicoses cicloides Síndrome de Charles Bonnet Síndrome de Cotard Síndrome de Diógenes Síndrome de Ekbom - delírio de infestação Síndrome de Ganser Síndrome de Munchausen Síndromes de falsa identificação delirante Tricotilomania
ORNITORRINCOS PSIQUIÁTRICOS Casos Bicudos e Outros Dilemas Diagnósticos Coordenação
DAVID TEIXEIRA NUNO PESSOA GIL
Casos Bicudos e Outros Dilemas Diagnósticos
MY
COORDENADORES
David Teixeira Médico Interno de formação específica em Psiquiatria no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu. Médico Psiquiatra no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu (CHTV); Membro da Unidade Terapêutica de Dor Crónica do CHTV; Coordenador do Internato Médico e Formação Pós-Graduada do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do CHTV.
ISBN 978-989-752-583-4
9 789897 525834
DAVID TEIXEIRA NUNO PESSOA GIL
Nuno Pessoa Gil
www.lidel.pt
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Inspirado diretamente nas idiossincrasias do ornitorrinco – animal incomum, heterogéneo e que desafiou sozinho todo o sistema classificativo de Lineu –, este livro descreve algumas entidades nosológicas psiquiátricas que são atípicas, quer seja pela sua heterogeneidade, pela sua frequência incomum, ou por se perderem com o advento dos mais recentes manuais de diagnóstico (e que, no entanto, psiquiatras mais experientes continuam a reconhecer e a diagnosticar nas suas consultas).
ÍNDICE
ORNITORRINCOS PSIQUIÁTRICOS
ORNITORRINCOS PSIQUIÁTRICOS
14,5 cm
Prefácio: Carlos Braz Saraiva Posfácio: José Morgado Pereira
Índice Autores........................................................................................................... XI Prefácio.......................................................................................................... XIII Carlos Braz Saraiva
Siglas.............................................................................................................. XVII Introdução..................................................................................................... XIX
1
Folie à deux ........................................................................................... 3 João Brás, Ana Pinto Costa
Introdução............................................................................................. 3 História.................................................................................................. 4 Subtipos e características........................................................................ 6 Diagnóstico........................................................................................... 9 Tratamento............................................................................................ 11 Conclusão.............................................................................................. 12 Pontos-chave.......................................................................................... 12 Bibliografia............................................................................................ 13
2
Odisseia pelas parafrenias ..................................................................... 19 Carla Alves Pereira, Rui Moreira de Sousa, Joana Rita Martins, Nuno Alves da Cunha, Tânia Casanova
Introdução............................................................................................. 19 Parafrenias segundo Kraepelin............................................................... 20 Evolução histórica de conceitos.............................................................. 27 Conclusão.............................................................................................. 39 © Lidel – Edições Técnicas
Pontos-chave.......................................................................................... 40 Bibliografia............................................................................................ 42
3
Perturbações psicóticas agudas e transitórias ......................................... 47 Ana Lúcia Costa, Ana Isabel Oliveira
Introdução............................................................................................. 47 Contextualização histórica..................................................................... 48 V
Ornitorrincos Psiquiátricos
Epidemiologia........................................................................................ 50 Apresentação Clínica............................................................................. 51 Classificação.......................................................................................... 52 Diagnóstico........................................................................................... 54 Etiologia/Etiopatogenia......................................................................... 58 Tratamento............................................................................................ 59 Conclusão.............................................................................................. 61 Pontos-chave.......................................................................................... 62 Bibliografia............................................................................................ 63
4
Prurido psicogénico – perturbação funcional de prurido ...................... 67 Bruna Melo, Elsa Monteiro
Introdução............................................................................................. 67 Epidemiologia........................................................................................ 68 Apresentação clínica............................................................................... 69 Diagnóstico........................................................................................... 70 Etiologia................................................................................................ 72 Tratamento............................................................................................ 74 Conclusão.............................................................................................. 76 Pontos-chave.......................................................................................... 76 Bibliografia............................................................................................ 77
5
Psicoses cicloides ................................................................................... 81 David Teixeira, Sandra Borges
Introdução............................................................................................. 81 Evolução histórica do conceito de psicoses cicloides............................... 81 Diagnóstico........................................................................................... 84 Etiologia................................................................................................ 89 Epidemiologia........................................................................................ 92 Tratamento............................................................................................ 93 Prognóstico............................................................................................ 94 Outros conceitos internacionais de psicoses não-esquizofrénicas........... 95 As classificações atuais de psicoses atípicas............................................. 98 Conclusão.............................................................................................. 99 VI
Índice
Pontos-chave.......................................................................................... 100 Bibliografia............................................................................................ 101
6
Síndrome de Charles Bonnet ................................................................ 107 Alberto Marques, Sofia Ribeiro Pereira
Introdução............................................................................................. 107 Epidemiologia........................................................................................ 108 Apresentação clínica............................................................................... 109 Diagnóstico........................................................................................... 110 Etiologia................................................................................................ 111 Tratamento............................................................................................ 111 Conclusão.............................................................................................. 112 Pontos-chave.......................................................................................... 113 Bibliografia............................................................................................ 114
7
Síndrome de Cotard .............................................................................. 119 Rui Moreira de Sousa, Nuno Alves da Cunha
Introdução............................................................................................. 119 Epidemiologia........................................................................................ 121 Apresentação clínica e diagnóstico......................................................... 122 Etiopatogenia......................................................................................... 125 Tratamento............................................................................................ 127 Conclusão.............................................................................................. 128 Pontos-chave.......................................................................................... 129 Bibliografia............................................................................................ 130
© Lidel – Edições Técnicas
8
Síndrome de Diógenes .......................................................................... 137 Ana Lúcia Costa, Ana Isabel Oliveira
Introdução............................................................................................. 137 Epidemiologia........................................................................................ 139 Apresentação clínica............................................................................... 139 Diagnóstico........................................................................................... 140 Etiologia/Etiopatogenia......................................................................... 142 Tratamento............................................................................................ 143 Conclusão.............................................................................................. 144 VII
Ornitorrincos Psiquiátricos
Pontos-chave.......................................................................................... 145 Bibliografia............................................................................................ 146
9
Síndrome de Ekbom – delírio de infestação .......................................... 151 Bruna Melo, Elsa Monteiro
Introdução............................................................................................. 151 Epidemiologia........................................................................................ 151 Apresentação clínica............................................................................... 152 Diagnóstico........................................................................................... 154 Etiologia................................................................................................ 156 Tratamento............................................................................................ 156 Conclusão.............................................................................................. 157 Pontos-chave.......................................................................................... 157 Bibliografia............................................................................................ 158
10 Síndrome de Ganser .............................................................................. 163 Alberto Marques, Sofia Ribeiro Pereira
Introdução............................................................................................. 163 Epidemiologia........................................................................................ 164 Apresentação clínica............................................................................... 164 Diagnóstico........................................................................................... 165 Etiologia................................................................................................ 165 Tratamento............................................................................................ 166 Conclusão.............................................................................................. 167 Pontos-chave.......................................................................................... 167 Bibliografia............................................................................................ 168
11 Síndrome de Munchausen .................................................................... 173 Nuno Pessoa Gil, Rui Pedro Vaz
Introdução............................................................................................. 173 História.................................................................................................. 174 Conceito atual, definições e nosologia comparada................................. 176 Epidemiologia........................................................................................ 178 Etiologia................................................................................................ 178 Clínica................................................................................................... 180 VIII
Índice
Diagnóstico diferencial.......................................................................... 182 Abordagem e tratamento....................................................................... 185 Evolução e prognóstico.......................................................................... 187 Conclusão.............................................................................................. 187 Pontos-chave.......................................................................................... 188 Bibliografia............................................................................................ 190
12 Síndromes de falsa identificação delirante ............................................. 195 João Brás, Ana Pinto Costa
Introdução............................................................................................. 195 Epidemiologia........................................................................................ 196 Classificação e subtipos.......................................................................... 197 Patogénese.............................................................................................. 199 Diagnóstico diferencial.......................................................................... 203 Tratamento............................................................................................ 204 Violência e hostilidade........................................................................... 206 Conclusão.............................................................................................. 207 Pontos-chave.......................................................................................... 207 Bibliografia............................................................................................ 208
13 Tricotilomania ...................................................................................... 213
© Lidel – Edições Técnicas
Rui Moreira de Sousa, Nuno Alves da Cunha
Introdução............................................................................................. 213 Epidemiologia........................................................................................ 214 Apresentação clínica............................................................................... 215 Diagnóstico........................................................................................... 217 Etiologia................................................................................................ 218 Tratamento............................................................................................ 219 Conclusão.............................................................................................. 221 Pontos-chave.......................................................................................... 222 Bibliografia............................................................................................ 224 Posfácio.......................................................................................................... 227 José Morgado Pereira
Índice remissivo............................................................................................. 229 IX
Autores COORDENADORES/AUTORES David Teixeira Médico Interno de formação específica em Psiquiatria no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu.
Nuno Pessoa Gil Médico Psiquiatra no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu (CHTV); Membro da Unidade Terapêutica de Dor Crónica do CHTV; Coordenador do Internato Médico e Formação Pós-Graduada do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do CHTV.
AUTORES Alberto Marques Médico Interno de formação específica em Psiquiatria no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu.
Ana Isabel Oliveira Assistente de Psiquiatria com grau de Consultor no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu.
Ana Lúcia Costa Médica Interna de formação específica em Psiquiatria no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu.
Ana Pinto Costa © Lidel – Edições Técnicas
Assistente Graduada em Psiquiatria no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu.
Bruna Melo Médica Interna de formação específica em Psiquiatria no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu.
XI
Ornitorrincos Psiquiátricos
Carla Alves Pereira
Médica Interna de formação específica em Psiquiatria no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu.
Elsa Monteiro
Assistente Graduada em Psiquiatria no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu.
Joana Rita Martins
Médica Interna de formação específica em Psiquiatria no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu.
João Brás
Médico Interno de formação específica em Psiquiatria no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu.
Nuno Alves da Cunha
Assistente Graduado em Psiquiatria no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu.
Rui Moreira de Sousa
Médico Interno de formação específica em Psiquiatria no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu.
Rui Pedro Vaz
Médico Interno de formação específica em Psiquiatria no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu.
Sandra Borges
Assistente Graduada em Psiquiatria no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu.
Sofia Ribeiro Pereira
Assistente Graduada em Psiquiatria com grau de Consultor no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu.
Tânia Casanova
Assistente Graduada em Psiquiatria no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu.
XII
© Lidel – Edições Técnicas
Prefácio Era uma noite chuvosa e fria de inverno. Meados da década de 1980. O pedido era muito enfático. Havia que se fazer alguma coisa. A irmã insistira que a situação se prolongara excessivamente e que aquela grande empresa da região se estava a ressentir da ausência do todo-poderoso Senhor Diretor. Hesitações e desnortes. Sussurros e perplexidades. Metido a caminho, pela escuridão da rua mal iluminada, lá dei com a mansão. Daquelas de escadaria de pedra e vasos imponentes de plantas de ornamento. Uma campainha de som inconfundível. Muito peculiar. Deitado, há semanas, melancólico, estático, recusando-se a comer uma refeição que tal se pudesse assim chamar, pálido, ar cadavérico, soturno, o homem, septuagenário, ficou estupefacto quando me viu, naquele quarto enorme, de teto alto, de mobília escura clássica, pesada, à antiga. Balbuciou, à meia-luz: “O que está aqui a fazer? Estou morto.”. Jovem psiquiatra, aí estava eu confrontado com um desafio inesperado e espinhoso, uma grave síndrome de Cotard. Como vem na literatura. Foram-me logo requeridos simultaneamente sigilo e tratamento. Rápido, rápido! Talvez a esperança de um súbito milagre. A ilusão da omnipotência, se é que ainda havia dúvidas, bateu-me de novo. Afinal, existiam brechas na muralha de prosápia, desta inoculação de acreditar ser capaz de resolver tudo sozinho, nessa utopia de querer endireitar o mundo. Uma lição. Há que procurar ajuda. Ir além dos sintomas. Não se pode ser psiquiatra sem mundividência. Felizmente que à nossa volta ainda há psiquiatras que são muito mais do que neurocientistas confinados a modelos neurobiológicos. A abrangência do conhecimento na área da Psiquiatria deve pressupor a penetração das fronteiras das Humanidades, onde residem, por exemplo, a Antropologia e a Sociologia. Tal competência ou dom, essa sabedoria, vai enriquecer o “compreender e explicar” de fenómenos que importam ao escopo da Psiquiatria. Recorde-se, a propósito, que na clássica conceção do psiquiatra filósofo Barahona Fernandes, o modelo integrador de abordagem do doente mental deverá obedecer à apreciação global dos aspectos biológicos, psicológicos, sociais e culturais. E não poderia estar mais de acordo após 40 anos de experiência psiquiátrica. Talvez um dos maiores fascínios da Psiquiatria seja a atracção pela excentricidade e pelo estranho. O anormal, independentemente de todas as inquietações filosóficas e ensaios de definição de limites, aguça o encantamento pelo XIII
Ornitorrincos Psiquiátricos
bizarro. O didatismo simplificador e organizador, partindo da análise para a síntese, da nosologia para a nosografia, catalogou as doenças psiquiátricas nas duas grandes classificações internacionais, da Organização Mundial de Saúde e da Associação Americana de Psiquiatria. Agora, já não bastam a dezena de doenças mentais do início do século xix, são necessárias mais de três centenas de codificações no século xxi. Umas mais frequentes, comuns na prática clínica do dia a dia do psiquiatra, outras raras, e ainda umas outras, residuais, esquisitas, que se julgam tão arcaicas ou longínquas que provavelmente jamais serão observadas. Quando a Organização Mundial de Saúde propõe o código F44.3 para a “Perturbação de Transe e Possessão” (CID-10, 1992) não só sinaliza tal e qual ipsis verbis uma denominação categorial como também admite uma atribuição causal para certas apresentações de quadros dissociativos mais frequentes em determinadas culturas. Portanto, tais especificidades não poderão ser ignoradas. Similarmente, numa visão mais transcultural, porque englobadas em enquadramento classificativo próprio, são apontadas, a esse nível, múltiplas psicopatologias usualmente das esferas ansiosas, dissociativas e conversivas, com características aparatosas, disfuncionais ou assustadoras, desde a Ásia à África, do Ártico à América: Amok, Koro, Latah, Pibloktoq, Wendigo… Neste escrito, em boa hora dado à estampa – excluídos os tais quadros transculturais, por opção – os autores ousaram entrar, como intrépidos navegadores, pelo mar “ignoto” encapelado, ou seja, por outros domínios intrigantes e espúrios da Psiquiatria. E só por isso merecem vivos encómios. As síndromes raras são temáticas raramente abordadas nos manuais de Psiquiatria. Contudo, este entusiasmo dos autores pela feitura da obra trouxe à tona a riqueza da Psiquiatria nas vertentes da fenomenologia e da patoplastia, exibindo o perfume do regresso aos clássicos. Em certa medida é também um tributo a alienistas do século xix e a psiquiatras do século xx que, convivendo todos os dias com os seus doentes em regime hospitalar, puderam descrever em pormenor certas manifestações das psicopatologias de acordo com a sua evolução naturalística. Não pretendendo um exercício de exaustão dos quadros atinentes às síndromes raras em Psiquiatria, foram assinaladas neste livro, numa escrita escorreita, agradável, de pendor científico, algumas das síndromes mais extravagantes: Munchausen, Folie à Deux, Bonnet, Ekbom, Cotard, Diógenes, Ganser, Capgras, Fregoli, Tricotilomania… Em campos diversos, do factício ao deliroide, das alterações da sensoperceção às ideias delirantes, das bizarrias XIV
Prefácio
comportamentais às loucuras privadas… Elas aqui estão. Muitos de nós, principalmente os clínicos no terreno com longos anos de intensa atividade, já nos debatemos com tais situações, ainda que efetivamente raras. Pertencem ao grupo dos doentes inesquecíveis. Aqueles que também pelo seu sofrimento muito nos ensinaram. Prezado Leitor: a obra Ornitorrincos Psiquiátricos, de David Teixeira e Nuno Pessoa Gil (Coordenadores), honra todos os seus autores e a editora Lidel. Trata-se de um livro deveras estimulante, fora do comum no panorama editorial, que suscita a aquisição de novas e profícuas competências, tendo em vista a realização de um exame mental particularmente judicioso e, por consequência, ainda fornece conhecimentos acrescidos de psicopatologia de modo a uma melhor avaliação e finura dos diagnósticos diferenciais. Para o leitor comum será a satisfação pelo encontro com um universo menos conhecido da Psiquiatria e a saciação de uma compreensível curiosidade. Carlos Braz Saraiva
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Médico Psiquiatra. Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (1998-2017). Chefe de Serviço de Psiquiatria dos Hospitais da Universidade de Coimbra (1995-2017).
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Introdução Hoc opus, hic labor est.1
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Virgílio, Eneida, VI, 129
Este é um livro de médicos internos de formação específica em psiquiatria, pensado para outros médicos internos de formação específica em psiquiatria. Pretende ser um livro escrito numa linguagem acessível, com informação concisa, clara e indispensável sobre cada uma das entidades nosológicas retratadas. Pretende, acima de tudo, ser um manual de apoio ao médico interno de psiquiatria para que possa rapidamente consultar e esclarecer as suas dúvidas no que toca a todas aquelas entidades mais incomuns, esquisitas ou difíceis de catalogar, que estranhamente os nossos manuais de diagnóstico atuais parecem olvidar e com as quais continuamos a cruzar-nos diariamente na prática clínica. Queremos com isto excluir que outros profissionais da área da saúde (mental) possam ler este livro? Claro que não. Qualquer um é livre de ler e consultar este livro, mas deverá ter sempre presente a premissa que foi maioritariamente escrito por médicos internos, e que nunca teve a pretensão de ser um tratado psiquiátrico. Em Portugal – e possivelmente nos restantes países – a publicação de livros técnicos costuma estar, tradicionalmente, circunscrita aos hospitais universitários com ligações a escolas médicas, localizados aos centros urbanos de maior dimensão. No caso da psiquiatria poderão acrescentar-se, talvez, os grandes hospitais psiquiátricos. O presente livro pretende, entre outras coisas, demonstrar que, pelo menos em Portugal, o ensino e o exercício de uma psiquiatria clínica, na exatidão etimológica da inclinação sobre a cabeceira do doente mas, simultaneamente, científica e rigorosa, pode ser executado – e é diariamente executado! – em centros hospitalares de menor dimensão dispersos por um território que, sendo limitado na extensão, teima em escotomizar a interioridade. Assim, é sem desprimor de publicações já existentes, mas também sem usura delapidante do seu mérito próprio que o presente livro se apresenta aos diferentes leitores. 1
Aqui a obra, aqui o trabalho. XIX
Ornitorrincos Psiquiátricos
Mas porquê um título tão invulgar? Todos sabemos o quão estranho é o ornitorrinco, esse bicho heterogéneo que pondo ovos é mamífero, e que tendo bico de pato tem uma cauda semelhante à de um castor. No entanto, são poucos aqueles que sabem a história por detrás da sua descoberta e das suas primeiras descrições. Durante o século xviii, colonizadores europeus na Austrália cruzaram-se com este peculiar animal e levaram ornitorrincos embalsamados para a Europa, para espanto e incredulidade dos biólogos da altura. Muitos acreditaram que aquele animal era um embuste, uma partida de algum taxidermista asiático. Onde poderia “encaixar” aquele animal dentro do sistema taxonómico de Lineu? Desmentido o suposto embuste, em 1799, o britânico George Shaw cunhou aquele animal como Platypus anatinus, mas poucos anos mais tarde o seu nome foi alterado para Ornithorhynchus anatinus, do grego: ornitho (ave) + rhynchus (bico), e do latim: anati (pato) + inus (semelhante a), ou seja: com bico de ave, semelhante a pato. Mais recentemente, a sequenciação do seu genoma colocou a descoberto diferentes genes compartilhados não só entre répteis e aves, mas também com muitas outras espécies de mamíferos, tornando aquele que é o mais estranho dos bichos num importante elo intermediário que consolida a teoria da evolução das espécies de Darwin. Este livro, inspirando-se diretamente nas idiossincrasias do ornitorrinco – animal incomum, heterogéneo e que desafiou sozinho todo o sistema classificativo de Lineu – pretende descrever algumas entidades nosológicas psiquiátricas que são atípicas quer seja pela sua heterogeneidade, quer pela sua frequência incomum, quer por se tratarem de entidades nosológicas perdidas com o advento dos mais recentes manuais de diagnóstico (e que, no entanto, psiquiatras mais experientes continuam a reconhecer e a diagnosticar nas suas consultas). Por isso, como o verso de Virgílio nos remete: aqui está a obra; este foi o trabalho. As canseiras, fadigas e dificuldades. O leitor e a História nos julgarão. Os coordenadores David Teixeira e Nuno Pessoa Gil
XX
Capítulo
Folie à deux
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Capítulo 1
Folie à deux João Brás, Ana Pinto Costa
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▪▪INTRODUÇÃO
O termo francês folie à deux, inicialmente descrito por Charles Lasègue e Jules Falret em 1877, descreve uma entidade clínica rara caracterizada pela transferência de sintomas psiquiátricos (normalmente delírios, mas não só) de um indivíduo previamente doente para outro indivíduo, que os aceita como verdadeiros. Existe habitualmente uma forte ligação emocional entre os envolvidos, que vivem em grande proximidade, contudo isolados socialmente ou fisicamente da restante sociedade. Séculos após a sua primeira descrição, a folie à deux ainda permanece como um enorme desafio clínico para a psiquiatria. Vários termos foram utilizados para nomear esta patologia, tais como: insanidade dupla, insanidade induzida, insanidade infeciosa, loucura a dois, esquizofrenia induzida, psicose de associação, perturbação delirante induzida e perturbação psicótica partilhada. De igual forma, termos como indutor, primário ou dominante são utilizados para descrever o paciente afetado em primeiro lugar. Já o paciente ao qual é transferido o sintoma é denominado como induzido, secundário ou recetor. No seu trabalho intitulado de La folie à deux ou folie communiquée, Lasègue e Falret descrevem as principais condições para o desenvolvimento desta patologia: ▪▪ Um dos indivíduos é o elemento ativo, mais inteligente que o outro. Este elemento acredita no delírio e impõe-no gradualmente na segunda pessoa, que constitui o elemento passivo; ▪▪ É necessário que os elementos envolvidos tenham uma vida em comum, no mesmo meio, livres de qualquer influência exterior e partilhando o mesmo modo de existência, os mesmos sentimentos, interesses, medos e expectativas; ▪▪ O delírio deve parecer verdadeiro, sendo estruturado com base em factos sucedidos no passado ou em medos e esperanças sobre o futuro. 3
Ornitorrincos Psiquiátricos
Em 1947, também Oatman nomeou os achados que considerava necessários ao diagnóstico de folie à deux: ▪▪ Grau de semelhança considerável entre os quadros clínicos; ▪▪ Isolamento social; ▪▪ Desenvolvimento inicial do quadro no indivíduo dominante; ▪▪ Características de personalidade no indivíduo recetor que permitam o desenvolvimento do quadro psicótico. Igualmente, Dewhurst e Todd (1956) elaboraram os seguintes critérios de diagnóstico: ▪▪ Evidência que os doentes estiveram intimamente associados; ▪▪ Grau elevado de semelhança no que respeita ao conteúdo delirante das diferentes psicoses; ▪▪ Evidência inequívoca de que os doentes aceitam, partilham e suportam o delírio um do outro. Os critérios de Dewhurst e Todd (1956) foram amplamente aceites, formando a base para as definições posteriores de folie à deux, incluindo as presentes no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, 5.ª edição (DSM-5) e na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, 10.ª edição (CID-10), explícitas de forma mais detalhada na secção diagnóstico do presente capítulo.
▪▪HISTÓRIA
O termo folie à deux foi utilizado pela primeira vez por Charles Lasègue e Jules Falret, em 1877, no seu trabalho intitulado La folie à deux ou folie communiquée. Este inclui descrições detalhadas de casos clínicos e ainda as condições necessárias para a transferência de sintomas psiquiátricos, conforme expostas na secção anterior. Estes autores defendiam também que o paciente secundário era um reflexo do primário, este sim o verdadeiro paciente, e se ambos fossem separados, o quadro clínico do secundário desaparecia espontaneamente. Porém, anos antes, outros psiquiatras franceses como Baillarger descreveram fenómenos equivalentes. Nomeadamente, em 1854, Baillarger apelidou-o de folie communiquée e Legrand du Saulle, em 1871, denominou-o de idée de persécution communiquée ou délire à deux et à trois personnes. Séculos 4
Folie à deux
▪▪ Várias teorias etiológicas foram surgindo ao longo dos anos. A folie à
deux é vista como um processo multifatorial em que estão envolvidos componentes genéticos e ambientais; ▪▪ Um dos fatores de risco mais frequentemente identificado como contribuidor para esta patologia é o isolamento social destes doentes; ▪▪ Na maioria dos casos, a folie à deux envolve dois indivíduos e pessoas da mesma família; ▪▪ Estão descritos quatro subtipos de folie à deux de acordo com o modo de transmissão e psicopatologia existente: folie imposée, folie simultanée, folie communiquée e folie induite; ▪▪ O diagnóstico psiquiátrico mais frequente no paciente primário é a perturbação delirante, seguida da esquizofrenia e perturbações afetivas graves com sintomas psicóticos; ▪▪ A presença de comorbilidades psiquiátricas no paciente secundário também é altamente descrita na literatura, sendo a esquizofrenia a mais comum; ▪▪ O diagnóstico de folie à deux é clínico, através da identificação de crenças delirantes idênticas nos indivíduos afetados; ▪▪ A separação dos pacientes combinada com o uso de psicofármacos como medida terapêutica alcançou resultados clínicos favoráveis, tanto nos indutores como nos recetores. Os antipsicóticos e antidepressivos são classes amplamente utilizadas no tratamento desta entidade clínica.
▪▪BIBLIOGRAFIA
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Ornitorrincos Psiquiátricos
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Ornitorrincos Psiquiátricos
controladas. Apresentam consistência sensorial (objetividade, detalhe e clareza). Podem ocorrer em todas as modalidades sensoriais; ▪▪ Delírios – crenças erradas, mas convictas, não enquadráveis culturalmente, que resistem à argumentação lógica, à confrontação com a realidade e não são resultado direto das vivências do indivíduo. O conteúdo pode ou não ser bizarro; ▪▪ Discurso desorganizado – reflete a disrupção da organização do pensamento dos doentes. Frequentemente é observado discurso tangencial, fusão, suspensão ou omissão, descarrilamento ou incoerência; ▪▪ Comportamento desorganizado ou catatónico – o comportamento grosseiramente desorganizado é reconhecido na incapacidade de completar as atividades de vida diárias, nomeadamente, vestuário, higiene e limpeza. Perplexidade, défice de atenção, desorientação e alterações do estado de consciência em intensidade suficiente para justificar outros diagnósticos, nomeadamente delirium, podem ocorrer. Sintomas afetivos como depressão, euforia, ansiedade ou irritabilidade podem estar presentes, dificultando o diagnóstico diferencial com perturbações do humor. Contudo, geralmente, não reúnem critérios suficientes para este diagnóstico. A PPAT pode ser devida, ou não, a um importante fator desencadeante ambiental, como por exemplo, no período pós-parto, numa importante mudança socio-ocupacional, frequentemente o desemprego, após a morte de um familiar significativo, separação conjugal, terrorismo, guerra ou em combate. Geralmente os acontecimentos geradores de stress precedem em uma a duas semanas o aparecimento desta perturbação. Se os sintomas persistirem por mais de três meses o diagnóstico deve ser reconsiderado. Perturbação delirante persistente ou outra perturbação psicótica não orgânica são diagnósticos a serem ponderados. As PPAT estão também associadas a um aumento da mortalidade, quer por causas naturais, quer por suicídio.
▪▪CLASSIFICAÇÃO
No DSM-5, as PPAT são classificadas em duas categorias diagnósticas: a PPB se a duração dos sintomas for inferior a um mês e a PE se os sintomas 52
Perturbações psicóticas agudas e transitórias
tiverem duração de um a seis meses. Contudo, o diagnóstico diferencial entre PPB e PE é difícil quando os sintomas psicóticos entram em remissão antes de completar um mês, em resposta a um tratamento farmacológico bem-sucedido. No DSM-5, a PPB caracteriza-se pela presença de um ou mais sintomas psicóticos, que incluem as alucinações, os delírios e o discurso e comportamento desorganizado, já descritos anteriormente. A PPB não é mais bem explicada por uma perturbação depressiva major ou bipolar com características psicóticas ou por outra perturbação psicótica, como a esquizofrenia ou a catatonia, e não é atribuível aos efeitos fisiológicos de uma substância (por exemplo, uma droga de abuso ou um medicamento) ou a outra condição médica. Na PPB, o início súbito é definido pelo começo de um estado psicótico claro em duas semanas, habitualmente sem pródromos, tal como ocorre com as PPAT. Para complementar a classificação apresentada, o DSM-5 considera especificadores que assinalam a gravidade e a presença de fator de stress agudo. Se o início ocorre durante a gravidez ou nos quatro meses após o parto diz-se com início no pós-parto. A PE inclui os mesmos critérios de diagnóstico da PPB, nomeadamente a presença de pelo menos dois dos sintomas psicóticos e também a presença de sintomas negativos. Contudo, a duração dos sintomas varia de um a seis meses. Nesta perturbação, os especificadores que complementam a classificação são a gravidade, a presença de catatonia e o prognóstico. Na tabela 3.1. apresentam-se os tempos de início e duração dos sintomas psicóticos, das categorias referidas.
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Tabela 3.1 – Início e duração dos sintomas psicóticos segundo as classificações internacionais (adaptado de Ribeiro, Oliveira, Santos, Silva & Madeira, 2016) Sintomas
PPAT (CID-10)
PPB (DSM-5)
PE (DSM-5)
Início
< 2 semanas
< 2 semanas
< 2 semanas
Duração
1 a 3 meses
< 1 mês
≥ 1 mês e ≤ a 6 meses
As PPAT na CID-10 podem ser subdivididas em perturbação psicótica aguda polimórfica sem sintomas esquizofrénicos, perturbação psicótica aguda polimórfica com sintomas esquizofrénicos, perturbação psicótica aguda do tipo esquizofrénico (esquizofrenia-like) e outras perturbações psicóticas agudas predominantemente delirantes. 53
Ornitorrincos Psiquiátricos
Quadro 4.3 – DSM-5 – Perturbação de sintomas somáticos (300.82) (adaptado de APA, 2013, p. 311) A. Um ou mais sintomas somáticos geradores de mal-estar ou que resultam em disrupção significativa da vida quotidiana. B. Pensamentos, sentimentos ou comportamentos excessivos relacionados com sintomas somáticos ou associados a preocupações de saúde manifestados por pelo menos 1 dos seguintes 1. Pensamentos desproporcionados e persistentes acerca da gravidade dos próprios sintomas 2. Níveis de ansiedade persistentemente elevados relacionados com a própria saúde ou com os sintomas 3. Consumo de tempo ou energia excessivos dedicados a estes sintomas ou preocupações com a saúde C. Apesar de qualquer um dos sintomas somáticos poder não estar continuamente presente, o estar sintomático é persistente (tipicamente mais de 6 meses).
O diagnóstico do prurido psicogénico é de extrema dificuldade e está envolto em vários fatores confundidores. De facto, um prurido orgânico autêntico pode ser encontrado concomitantemente a um prurido psicogénico ou encontrar-se agravado por fatores psicológicos que não são descortinados numa primeira observação médica. Frequentemente, este diagnóstico é colocado quando a causa é idiopática, o que poderá ter implicações médicas graves, como o atraso do diagnóstico orgânico que lhe subjaz. Todas as causas de prurido são potenciais diagnósticos diferenciais da entidade prurido psicogénico, especialmente as causas não dermatológicas, nas quais é mais frequente, também, o prurido sine materia. Assim, a avaliação dermatológica é mandatória e essencial para descartar etiologia orgânica, cutânea ou extracutânea.
▪▪ETIOLOGIA
Embora não existam recetores especializados para o prurido, várias vias têm vindo a ser identificadas para a sinalização do prurido, desde a pele, onde se encontram prurirrecetores, até ao cérebro. Têm sido estudados, também, vários mediadores envolvidos nesta transmissão, conhecendo-se como mais importantes as vias histaminérgicas e não histaminérgicas (PAR-2-dependente). A nível central, a perceção do prurido não se restringe à área sensorial, exigindo uma ativação coordenada das áreas sensorial, motora e afetiva. 72
Psicoses cicloides
subtipos e que, mesmo que numa fase aguda seja difícil reconhecer qual o subtipo presente, o curso clínico da doença ditará a qual dos três subtipos pertence. Para ele, a duração média de um episódio rondava os três meses, podendo prolongar-se numa minoria de casos. Tabela 5.2 – Características das PC, segundo Leonhard (adaptado de Jabs et al., 2004) Psicose de ansiedade-êxtase Polo ansioso Ansiedade severa
Polo extático Humor elacionado
Ideias de autorreferencialidade, chamaDesconfiança e autorreferencialidade; ideamento e salvação, congruentes com o hução persecutória ou de ameaças mor Ilusões ou alucinações congruentes com o Ilusões ou alucinações (p. ex., mensagens humor (p. ex., fonemas ameaçadores) divinas, inspirações) Ambos os polos: ideias de sacrifício combinando humor ansioso e elacionado Psicose confusional Polo excitado
Polo inibido
Inibição do pensamento e perplexidade, Incoerência do discurso (incoerência temácom empobrecimento linguístico que tica) com pressão aumentada do discurso pode chegar ao mutismo Falsos reconhecimentos fugazes
Ideias de significado e referência
No polo excitado, podem ocorrer ideias autorreferenciais fugazes, alucinações e ilusões Psicose de motilidade Polo hipercinético
Polo hipocinético
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Quantidade excessiva de movimentos expressivos e reativos, sem distorções quali- Redução de movimentos reativos e exprestativas dos mesmos (independentemente sivos (independentemente do pensamende uma perturbação do pensamento e da to e da emoção) emoção) Distratibilidade severa à estimulação exter- Diminuição da espontaneidade do discurna so Atividade motora contínua, sem um obje- Redução dos movimentos voluntários e, tivo em casos severos, estupor acinético No polo hipercinético, podem surgir ideação autorreferencial e alucinações esporádicas
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Capítulo 9
Síndrome de Ekbom – delírio de infestação Bruna Melo, Elsa Monteiro
▪▪INTRODUÇÃO
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O delírio de infestação, vulgarmente conhecido como síndrome de Ekbom, é uma doença psiquiátrica caracterizada pela ideação delirante, não bizarra, de se estar infestado por parasitas, pequenos insetos ou outros organismos vivos, apesar de não existir evidência médica ou microbiológica de doença. Os doentes apresentam, habitualmente, queixas de prurido, que relacionam com a presença de pequenos organismos vivos na sua pele. No sentido de removerem estes organismos, os doentes comummente induzem lesões cutâneas por escoriação, ou fazem uso abusivo de desinfetantes, pesticidas ou outros produtos tóxicos. Esta patologia foi primariamente descrita por Thibierge, em 1894, no seu trabalho Les acaraphobes. Já em 1938, Karl Axel Ekbom cunhou o termo alemão Dermatozoenwahn descrevendo, com detalhe, a sua psicopatologia e principais manifestações clínicas. Percebendo-se a dificuldade na utilidade deste termo à escala global, o epónimo síndrome de Ekbom começou a ter alguma aceitação. Com o tempo, também este termo se revelou ambíguo e com algumas limitações, por ser igualmente o epónimo utilizado para designar a síndrome de pernas inquietas, descrito por Ekbom, na década de 40 do século xx. Muitas outras nomenclaturas foram sendo adotadas, como dermatofobia e parasitofobia, também estas progressivamente rejeitadas, considerando-se que induziam erros psicopatológicos na sua denominação. Já em 1946, Wilson e Miller introduziram o conhecido termo delírio de parasitose. Apesar disso, é hoje em dia consensual a preferência pelo termo delírio de infestação, pois sublinha a sua linha psicopatológica – delirante – e cobre uma mais ampla variedade de organismos aos quais o doente pode atribuir a sua sintomatologia.
▪▪EPIDEMIOLOGIA
A prevalência deste quadro é de dificílima estimativa, uma vez que não existem dados confiáveis sobre a doença, que atende por várias designações e é vista e orientada por diferentes especialidades. Um estudo epidemiológico alemão, 151
Ornitorrincos Psiquiátricos
conduzido por Trabert (1993) obteve a prevalência de 5,58 por milhão de habitante em hospitais públicos, mas uma prevalência muito superior, atingindo os 83,23 por milhão de habitantes, quando se considera a prática privada. São doentes com média de idades entre os 50-60 anos, apesar de estar descrita uma distribuição bimodal com um primeiro pico entre os 20-30 anos, que parece dizer respeito ao delírio de infestação secundário a uso de drogas. Os doentes diagnosticados com delírio de infestação apresentam uma proporção feminino:masculino de cerca de 3:1. Esta diferença aumenta proporcionalmente com o avanço da idade. Entre os 20-30 anos, os géneros feminino e masculino são afetados na mesma proporção. Este diagnóstico parece ser mais prevalente em indivíduos com traços de personalidade prévios obsessivos ou paranoides. Em cerca de 8-12% destes doentes, o delírio é partilhado por outra pessoa próxima, fenómeno conhecido como folie à deux (vide Capítulo 1 “Folie à Deux”).
▪▪APRESENTAÇÃO CLÍNICA
Apesar de poder cursar com uma miríade de sintomas, a apresentação do delírio de infestação é muitas vezes estereotípica. O quadro evolui insidiosamente, durante meses ou até mesmo anos, podendo o doente ter sido já avaliado por muitos clínicos de diferentes especialidades antes do seu correto diagnóstico. O doente apresenta uma convicção persistente e inabalável de estar infestado por parasitas, insetos ou outros organismos, crença esta que não cede à argumentação lógica, apresentando carácter delirante. Estas ideias delirantes somáticas referem-se mais frequentemente à pele, embora possam também ser referidas ao cabelo e aos orifícios naturais (áreas genital, oral, gastrointestinal e ocular). Muitos doentes apresentam descrições detalhadas do “ciclo de vida” do organismo infetante, da forma como se move e multiplica no seu corpo, e referem ter confirmação visual da sua existência, conhecer a sua forma e cor. Não raras vezes (em cerca de 26% dos casos), e como prova da sua condição, o doente apresenta ao médico pequenos sacos, fita-cola ou caixas contendo exemplares deste patógeno, que são nada mais que fiapos de roupas, partículas de pele, pó ou detritos. Classicamente, estes espécimes eram transportados em caixas de fósforos, batizando este fenómeno de sinal da caixa de fósforos (matchbox sign), patognomónico, mas não obrigatório para este 152
Ornitorrincos Psiquiátricos
Por definição, em relação à perturbação factícia não podem existir incentivos externos identificados. Na verdade, se existirem, o diagnóstico deve mudar para simulação (ver “Vinheta Clínica #2”). É de admitir que, em muitas situações, pode não ser fácil ou imediata a identificação de incentivos externos pelo que pode tornar-se difícil de assumir o diagnóstico de simulação, pois – na ausência de um motivo externo claro e objetivo – pairará sempre a dúvida de se tratar de uma perturbação factícia. Relativamente às perturbações conversivas (ou dissociativas), o problema pode ser ainda mais difícil dado o plano inconsciente e involuntário da produção dos sintomas, por definição inacessível ao conhecimento do próprio e, como tal, à possibilidade de autorrelato. Muitos autores admitem a ausência de fronteiras estanques entre estas diferentes perturbações, existindo antes territórios de sobreposição entre elas. Na Figura 11.1 apresentamos um exemplo de algoritmo para o diagnóstico diferencial. Queixas médico-psicológicas sem adequada sustentação fisiopatológica
Produção inconsciente e não intencional (involuntária)
Perturbações conversivas
Perturbações dissociativas
Produção consciente e intencional (voluntária)
Perturbação factícia
Simulação
Figura 11.1 – Algoritmo de diagnósticos diferenciais (adaptado de Wang et al., 2005)
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14,5 cm
13,2 mm
Casos Bicudos e Outros Dilemas Diagnósticos Porquê um título tão invulgar? Todos sabemos o quão estranho é o ornitorrinco, esse animal heterogéneo que, pondo ovos, é mamífero, e que, tendo bico de pato, tem uma cauda semelhante à de um castor.
M
Y
CM
CY
CMY
K
Assim, este livro pretende, de uma forma clara e objetiva, ser um manual de apoio ao médico interno de Psiquiatria e ao médico especialista, no que diz respeito a algumas das síndromes mais extravagantes.
Folie à deux Odisseia pelas parafrenias Perturbações psicóticas agudas e transitórias Prurido psicogénico perturbação funcional do prurido Psicoses cicloides Síndrome de Charles Bonnet Síndrome de Cotard Síndrome de Diógenes Síndrome de Ekbom - delírio de infestação Síndrome de Ganser Síndrome de Munchausen Síndromes de falsa identificação delirante Tricotilomania
ORNITORRINCOS PSIQUIÁTRICOS Casos Bicudos e Outros Dilemas Diagnósticos Coordenação
DAVID TEIXEIRA NUNO PESSOA GIL
Casos Bicudos e Outros Dilemas Diagnósticos
MY
COORDENADORES
David Teixeira Médico Interno de formação específica em Psiquiatria no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu. Médico Psiquiatra no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu (CHTV); Membro da Unidade Terapêutica de Dor Crónica do CHTV; Coordenador do Internato Médico e Formação Pós-Graduada do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do CHTV.
ISBN 978-989-752-583-4
9 789897 525834
DAVID TEIXEIRA NUNO PESSOA GIL
Nuno Pessoa Gil
www.lidel.pt
C
Inspirado diretamente nas idiossincrasias do ornitorrinco – animal incomum, heterogéneo e que desafiou sozinho todo o sistema classificativo de Lineu –, este livro descreve algumas entidades nosológicas psiquiátricas que são atípicas, quer seja pela sua heterogeneidade, pela sua frequência incomum, ou por se perderem com o advento dos mais recentes manuais de diagnóstico (e que, no entanto, psiquiatras mais experientes continuam a reconhecer e a diagnosticar nas suas consultas).
ÍNDICE
ORNITORRINCOS PSIQUIÁTRICOS
ORNITORRINCOS PSIQUIÁTRICOS
14,5 cm
Prefácio: Carlos Braz Saraiva Posfácio: José Morgado Pereira