Ressonância Magnética Cardíaca - Uso corrente e aplicações

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Victor Machado Gil Cardiologista, Coordenador da Unidade Cardiovascular do Hospital Lusíadas, Lisboa

Este livro é um instrumento de trabalho e de revisão para os médicos internos das especialidades de Cardiologia e Imagiologia, e uma referência para os médicos especialistas, não esquecendo os técnicos que, no seu dia a dia, lidam com esta técnica.

ISBN 978-989-752-354-0

9 789897 523540

JOÃO ABECASIS I VICTOR MACHADO GIL

Os textos são ricamente ilustrados com iconografia que traduz as potencialidades desta técnica de imagem em franca expansão e desenvolvimento, com lugar reconhecido e estabelecido na Cardiologia.

www.lidel.pt

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João Abecasis Cardiologista, Hospital Lusíadas, Lisboa

A ressonância magnética é um método seguro e não invasivo que gera imagens de alta resolução espacial, decisivas em múltiplas patologias cardiovasculares, sendo, assim, um método de imagem complementar de diagnóstico insubstituível dentro da imagiologia cardíaca. Ressonância Magnética Cardíaca – Uso Corrente e Aplicações baseia-se na experiência diária dos coordenadores para ilustrar a integração deste método de imagiologia cardiovascular na atividade clínica contemporânea da Cardiologia. Ainda que com especial enfoque nos estudos que contemplam maioritariamente os motivos de referenciação atual para este exame – doença coronária, diagnóstico diferencial, avaliação de isquemia e viabilidade –, os autores não deixaram de incluir casos em que classicamente a ressonância magnética cardíaca complementa os outros métodos de imagem – estudos de caracterização tecidual e miocardiopatias.

RESSONÂNCIA MAGNÉTICA CARDÍACA

RESSONÂNCIA MAGNÉTICA CARDÍACA Uso corrente e aplicações

RESSONÂNCIA MAGNÉTICA

CARDÍACA Uso corrente e aplicações

Coordenação:

JOÃO ABECASIS VICTOR MACHADO GIL


Índice

Autores................................................................................................................................ VII Extratexto a Cores............................................................................................................... IX Agradecimentos.................................................................................................................. XVII Prefácio............................................................................................................................... XIX Siglas e Abreviaturas........................................................................................................... XXI Introdução........................................................................................................................... 1

 Lidel - edições técnicas

1. Ressonância Magnética Cardíaca – Princípios e Técnica............................................ 3 Introdução.................................................................................................................... 3 Relaxação T1, T2 e T2*............................................................................................... 4 Sequência de pulsos..................................................................................................... 5 Contrastes..................................................................................................................... 7 2. Ressonância Magnética Cardíaca e Doença Coronária............................................... 9 Introdução.................................................................................................................... 9 Avaliação funcional de doença coronária/deteção de isquemia miocárdica................ 12 Contexto agudo............................................................................................................ 14 Diagnóstico diferencial......................................................................................... 14 Extensão de enfarte e prognóstico........................................................................ 17 Miocárdio em risco, massa de enfarte e salvage.................................................. 17 Cardiomiopatia isquémica........................................................................................... 24 Avaliação de viabilidade....................................................................................... 30 Transmuralidade.............................................................................................. 30 Espessura parietal telediastólica..................................................................... 31 Reserva contráctil............................................................................................ 31 3. Ressonância Magnética Cardíaca e Miocardiopatias................................................... 33 Miocardiopatias: definição e classificação................................................................... 33 Miocardiopatia hipertrófica.......................................................................................... 36 V


Ressonância Magnética Cardíaca

Ressonância magnética cardíaca e miocardiopatia hipertrófica............................ 37 Miocardiopatia dilatada............................................................................................... 45 Ressonância magnética cardíaca e miocardiopatia dilatada ................................ 46 Etiologias específicas............................................................................................ 47 Miocardite....................................................................................................... 48 Sarcoidose....................................................................................................... 54 Miocardiopatia de Chagas............................................................................... 58 Miocardiopatia restritiva.............................................................................................. 60 Ressonância magnética cardíaca e miocardiopatia restritiva................................ 61 Etiologias específicas............................................................................................ 63 Amiloidose...................................................................................................... 63 Hemocromatose.................................................................................................... 65 Doença de Anderson-Fabry............................................................................. 67 Etiologia endomiocárdica: síndrome hipereosinofílica.................................. 69 Miocardiopatia arritmogénica...................................................................................... 71 Ressonância magnética cardíaca e miocardiopatia arritmogénica........................ 71 Miocardiopatias não classificadas................................................................................ 76 Miocardiopatia não compactada do ventrículo esquerdo..................................... 76 Conclusão..................................................................................................................... 79 4. Massas e Tumores – Os Nossos Casos........................................................................ 83 Bibliografia......................................................................................................................... 97 Índice Remissivo................................................................................................................. 103

VI


Autores

coordenadores/autores

João Abecasis Assistente Hospitalar de Cardiologia; Licenciado em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, tendo efetuado a sua formação no internato complementar da especialidade no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental. Adquiriu progressiva diferenciação em imagiologia cardíaca – ecocardiografia, tomografia computorizada e ressonância magnética cardíaca, exercendo a sua atividade no Hospital de Santa Cruz e Hospital dos Lusíadas, Lisboa. É atualmente vogal do Grupo de Estudos de Doença Valvular da Sociedade Portuguesa de Cardiologia para o biénio 2017-2019. Ingressou o programa de Doutoramento em Medicina da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa em 2017.

Victor Machado Gil

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Chefe de Serviço de Cardiologia pelo Hospital de Santa Cruz, e Doutor em Medicina pela Universidade do Porto, tem uma longa carreira na área da Cardiologia Clínica com cargos que incluíram a Direção do Serviço de Cardiologia do Hospital Fernando Fonseca. Desempenhou diversas funções na Sociedade Portuguesa de Cardiologia, entre elas, Coordenador do Grupo de Estudos de Cardiologia Nuclear, Secretário-Geral e vice-Presidente, sendo atualmente o Presidente-Eleito para o biénio 2019-2021. No campo da imagiologia cardíaca, desenvolveu atividade pioneira na área da Cardiologia Nuclear a que está ligado desde 1986, integrando o grupo do Hospital de Santa Cruz, então liderado pela Prof.ª Ana Aleixo. Veio mais tarde a coordenar o Departamento de Cardiologia Nuclear do Hospital de Santa Cruz e do Instituto do Coração, onde desenvolveu intensa atividade clínica, pedagógica e investigacional. Desempenha no presente as funções de Coordenador da Unidade Cardiovascular e de Diretor do Centro de Educação, Ensino e Investigação (CEEI) do Hospital Lusíadas Lisboa, sendo Professor Auxiliar Convidado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

autores

Marta Rocha

Médica Interna de formação específica de Medicina Interna (1.º ano).

Miguel Miranda Médico Interno do Ano Comum.

VII


Extratexto a Cores

A

 Lidel - edições técnicas

B

C

Figura 2.4 Avaliação de perfusão miocárdica. Para quantificação de perfusão, são delimitados os contornos endo e epicárdicos para cada secção de análise (A). Obtêm-se curvas de intensidade de sinal (B), sendo os declives das mesmas proporcionais à perfusão regional (C), por comparação com a curva de referência (seta), correspondente à intensidade do sinal na cavidade ventricular (curva de maior magnitude).

IX


 Lidel - edições técnicas

Prefácio

A ressonância magnética (RM) representa um dos mais significativos avanços tecnológicos do século XX no que se refere ao diagnóstico por imagem. Trata-se de um método não invasivo, seguro, isento de radiação ionizante, que gera imagens de alta resolução espacial com excelente definição tecidular. Mantendo-se a ecocardiografia como o método de imagem de primeira linha na maioria da patologia cardíaca, o contributo da ressonância magnética cardíaca (RMC) é maioritariamente adjuntivo, mas frequentemente isolado e decisivo em múltiplas patologias cardíacas. De facto, nas últimas décadas, a RMC transformou-se no método de imagem complementar de diagnóstico, capaz de fornecer detalhe anatómico e funcional de todas as estruturas cardíacas e vasos, mas especificamente de ambos os ventrículos, com avaliação da perfusão miocárdica, viabilidade e sobretudo a caracterização tecidular – seu exclusivo dentro de toda a imagiologia cardíaca! Assim, a RMC tem sido comumente utilizada na prática clínica para avaliação de cardiopatias congénitas, isquemia miocárdica, doenças do miocárdio estruturais e infiltrativas, tumores e doenças pericárdicas. A utilização da RMC na pesquisa de isquemia miocárdica tem aumentado progressivamente nos últimos anos, reunindo avaliação da anatomia, contractilidade, isquemia e viabilidade num mesmo exame. As principais características da RMC como método de deteção de isquemia são a alta sensibilidade da perfusão miocárdica e especificidade da avaliação da função regional sob stress farmacológico. A técnica do realce tardio permite a visualização de regiões hiperintensas causadas pela acumulação de contraste no meio extracelular, resultante da rutura das membranas dos miócitos necróticos, assumindo-se assim como marcador de necrose/fibrose miocárdica. Foi também demonstrada a importância do realce tardio como marcador prognóstico na cardiopatia isquémica: a ausência de defeitos na perfusão ou realce tardio associaram-se a uma taxa livre de eventos de 98,1% em três anos. Ainda a análise do realce tardio, no que respeita à sua localização e distribuição, permite o eficaz diagnóstico diferencial para o comum das miocardiopatias. Finalmente, mas não menos importante, a RMC utiliza tecnologia complexa, por vezes de difícil entendimento, que inclui campos magnéticos e de radiofrequência, exigindo conhecimento com algum detalhe de modo a permitir a escolha correta do protocolo de avaliação específico para uma dada patologia, tornando-a assim consideravelmente diferente de outras técnicas de imagem. XIX


Ressonância Magnética Cardíaca

A perceção do clínico cardiologista e de outras especialidades médicas de que esta técnica é praticamente isenta de variabilidade inter e intraobservador é um dos aspetos importantes a desmistificar. É particularmente relevante, como para qualquer método de imagem, a estandardização de protocolos de aquisição e de análise, de modo a manter apropriada acuidade diagnóstica e reprodutibilidade. Os autores coordenadores desta edição são reconhecidos cardiologistas clínicos e da área de imagem cardíaca, tendo tido o mérito de tornar o difícil acessível e facilmente compreensível com base numa extensa e pessoal iconografia paradigmática de cardiopatia isquémica aguda e crónica bem como de miocardiopatias várias. O facto de o texto de suporte à iconografia ter sido produzido com a colaboração de dois estudantes de medicina é uma inovação que deve ser apreciada e apoiada, podendo ser a semente para que os nossos jovens médicos levem esta e outras sofisticadas técnicas de imagem para um âmbito mais generalista, mas ainda assim parte importante da tão pretendida educação médica continuada. Foi para mim uma honra o convite para escrever este prefácio, não apenas pela minha pertença à família dos cardiologistas clínicos e de imagem cardíaca, mas sobretudo pela minha admiração pessoal e profissional para com o Dr. João Abecasis e o Prof. Victor Machado Gil. Regina Ribeiras Médica Cardiologista Hospital de Santa Cruz, Sociedade Portuguesa de Cardiologia, Hospital Lusíadas Lisboa

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2 Ressonância Magnética Cardíaca e Doença Coronária

Introdução A RMC é uma modalidade da RM muito versátil e com múltiplas aplicações decorrentes da possibilidade de, num único exame, obter dados respeitantes à morfologia cardíaca, função ventricular, shunts intercavitários, fluxos dos grandes vasos, perfusão miocárdica e caracterização tecidular. No contexto da doença coronária, a RMC é uma técnica de grande utilidade porque é rentável e muito segura. As suas aplicações incluem: • Avaliação funcional da doença coronária/deteção de isquemia; • Em contexto agudo: diagnóstico diferencial, informação relativa a extensão de enfarte, complicações mecânicas, informação prognóstica (extensão de enfarte, no-reflow, salvage); • Na cardiomiopatia isquémica: diagnóstico diferencial, avaliação de volumes, função ventricular, quantificação de regurgitação valvular mitral, avaliação de viabilidade.

 Lidel - edições técnicas

Não obstante o marcado crescimento da referenciação para exames de RMC no contexto de doença coronária, existem contraindicações para a realização do exame (Quadro 2.1). Particularmente importante no contexto de doença coronária (e cardíaca) em doentes referenciados para RMC é a presença de sistemas de pacing, cardioversores desfibrilhadores implantáveis (CDI) e sistemas de ressincronização. São três as possíveis consequências de exposição dos dispositivos ditos convencionais (não RM condicionais) em sistemas de RMC: • Efeito mecânico direto/deslocamento sobre o sistema do campo magnético estático (risco maioritariamente teórico mas possível); • Efeito térmico sobre os elétrodos dos pulsos de radiofrequência, com possível aquecimento do tecido endocárdico circundante (elétrodos funcionando como antenas com condução de energia aos tecidos sob a forma de calor), tendo como consequência, por exemplo, o aumento dos limiares de pacing; • Interferência eletromagnética com consequências mais ou menos imprevisíveis sobre a atividade do dispositivo (por exemplo, pacing assíncrono, desativação de algoritmos de tratamento de arritmias ventriculares ou de maior gravidade – inibição da atividade de pacing).

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Ressonância Magnética Cardíaca

A

B

C

D

E

Figura 2.5 Avaliação funcional da contractilidade segmentar e da presença de realce tardio num doente com enfarte de localização inferior (A-D) e em dois doentes com miocardiopatia de stress (E, F). Em A-B visualiza-se nítida alteração segmentar respeitando um território de distribuição arterial coronária (dependente da coronária direita) (∇) com realce tardio envolvendo o subendocárdio, neste caso com quase 100% de transmuralidade (C, D*). (E) corresponde a um caso “clássico” de miocardiopatia de stress, com envolvimento de segmentos não correspondentes a apenas um território coronário, com balonização apical em sístole (setas) (e ausência de realce tardio).

16


Ressonância Magnética Cardíaca

A

B

C

D

Figura 2.8 Fenómeno de obstrução microvascular – no-reflow em enfarte no território de distribuição da descendente anterior e circunflexa (anterior e lateral). (A, B) Sequências obtidas aos três minutos após injeção de contraste, com pequenas áreas hipointensas subendocárdicas, também visíveis no seio da cicatriz identificada na sequência de realce tardio (ausência de penetração de Gd) (C, D). Ver também presença de no-reflow extenso na Figura 2.6.

Ainda no contexto agudo, o RMC pode revelar-se uma técnica de grande importância, complementar à ecocardiografia, na confirmação/exclusão de complicações após enfarte. Ao contrário da ecocardiografia, técnica versátil e de cabeceira, fundamental na suspeita de complicações mecânicas emergentes, a RMC pode no entanto ser particularmente útil na suspeita/ /confirmação da presença de trombos intraventriculares (Figura 2.9), avaliação de suspeita de rutura miocárdica contida e diagnóstico diferencial de efusões pericárdicas (Figura 2.10), e caracterização de aneurismas e avaliação de remodelagem ventricular (Figura 2.11). No caso de comunicação interventricular após enfarte, a RMC pode avaliar a fração de shunt esquerdo-direito, substituindo o estudo hemodinâmico invasivo.

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Ressonância Magnética Cardíaca

Avaliação de viabilidade A RMC é considerada uma das modalidades de imagem preferenciais no estudo da viabilidade miocárdica, não por avaliar mecanismos relativos à fisiopatologia subjacente, enquanto conceito metabólico, mas por fornecer elementos de caracterização morfológica e funcional, permitindo a sua identificação. Destes elementos fazem parte a determinação da transmuralidade da cicatriz (depreendida por metodologias de caracterização tecidular), a espessura da parede miocárdica no final da diástole, e a avaliação da reserva contráctil pela aplicação de um teste de sobrecarga com inotrópico (avaliação funcional) (Figura 2.16).

A

B

C

Figura 2.16 Sinais de não viabilidade. (A) Exemplo de realce tardio não transmural na parede ínfero-lateral do VE (50-75% de transmuralidade). Neste contexto é útil a utilização de inotrópico (dobutamina em baixa dose) para predizer a presença de reserva inotrópica/contráctil. (B, C) Imagens em telediástole e telessístole sob inotrópico (dobutamina na dose de 20 μg/Kg/min) com evidência de não engrossamento e excursão sistólica da parede ínfero-lateral.

Transmuralidade

A transmuralidade de lesões cicatriciais é determinada pela extensão do realce tardio do contraste ao longo da espessura da parede. A recuperação da contractilidade das regiões disfuncionais, após revascularização, é inversamente proporcional à extensão transmural. Choi et al. (2001) demonstraram que a maior recuperação da contractilidade, com repercussões na fração de ejeção, dá-se nas zonas miocárdicas disfuncionais que não apresentam realce tardio e em segmentos onde o realce tardio não se estende a mais de 25% da espessura da parede. Kim et al., por sua vez, estabeleceram um cutoff de 50% de transmuralidade como o limite em que a revascularização resulta na recuperação da função com uma probabilidade razoável. Este estudo apurou que 53% dos segmentos disfuncionais com uma transmuralidade inferior a 50% recuperam a função. Por outro lado, numa extensão de cicatriz intermédia, cuja transmuralidade se encontra entre os 25 e 75%, a probabilidade de recuperação funcional é incerta (ver Figura 2.7). A realização de um teste de sobrecarga com inotrópico (dobutamina) permite o diagnóstico de segmentos com reserva contráctil, recrutáveis e, portanto, viáveis. 30


Ressonância Magnética Cardíaca

American Heart Association (AHA) propôs uma nova classificação mais abrangente, tendo em conta os mecanismos de disfunção cardíaca mecânicos e elétricos, a forte componente genética associada e não se baseando exclusivamente no fenótipo. A AHA propõe ainda uma divisão em MC primárias (genéticas, mistas e adquiridas), com envolvimento exclusivo ou predominante do músculo cardíaco, e MC secundárias, caracterizadas por envolvimento miocárdico como manifestação de uma doença sistémica e multiorgânica. A European Society of Cardiology (ESC) defende que, na prática clínica, o diagnóstico e tratamento das MC raramente tem início com a identificação de mutações genéticas subjacentes e que, mesmo em famílias com mutações conhecidas, é fundamental a caracterização fenotípica, morfológica e funcional. Além disso, argumenta que muitas patologias consideradas como MC primárias podem estar associadas a importantes manifestações extracardíacas e, inversamente, várias doenças sistémicas podem envolver predominante ou exclusivamente o miocárdio. Desta forma, a ESC sugere uma classificação agrupada em fenótipos morfológicos e funcionais específicos, cada um subclassificado em formas familiares e não familiares (Figura 3.1). MIOCARDIOPATIAS

MCH

MCD

Familiar/Genética

Mutação genética não identificada

Mutação genética

MCR

MCARVD

MCNC

Não-familiar/Não-genética

Idiopática

Adquirida

Figura 3.1 Classificação das MC proposta pela ESC, de acordo com o fenótipo morfológico e funcional (adaptado de Elliot et al., 2008). MCH – miocardiopatia hipertrófica; MCD – miocardiopatia dilatada; MCR – miocardiopatia restritiva; MCARVD – miocardiopatia arritmogénica do ventrículo direito; MCNC – miocardiopatia não compactada.

A caracterização morfológica e funcional determina a terapêutica e o prognóstico, embora a identificação etiológica permita a redefinição prognóstica e a escolha de terapêutica alternativa, eventualmente específica. No entanto, cada um dos exames diagnósticos etiológicos e de avaliação morfofuncional disponíveis apresenta limitações, o que favorece o seu uso combinado de modo a obter informações complementares. A ecocardiografia, apesar da sua disponibilidade e versatilidade na avaliação morfológica e funcional, tem muito reduzida capacidade de caracterização tecidular e portanto de identificação etiológica. A angiografia coronária/angio-TAC 34


Ressonância Magnética Cardíaca e Miocardiopatias

 Lidel - edições técnicas

A RMC é também um exame útil na avaliação funcional neste contexto. As sequências cine bSSFP permitem identificar a presença de vazio de sinal no caso de obstrução intraventricular e regurgitação mitral, devido à turbulência e aceleração do fluxo sanguíneo (Figura 3.6). Por técnica de contraste de fase em corte ortogonal à direção do fluxo turbulento, é possível a quantificação da velocidade de pico de ejeção, proporcional ao gradiente intraventricular ou da câmara de saída do VE. Ainda que também por contraste de fase seja possível o estudo das velocidades transmitrais em diástole, relacionadas com o padrão de enchimento ventricular, marcador funcional precoce de disfunção diastólica neste contexto, o estudo da função diastólica é efetuado por rotina por ecocardiografia.

A

B

C

D

Figura 3.6 MCH obstrutiva. (A) Sequência bSSFP quatro cavidades com evidente assimetria da espessura parietal, de predomínio septal e anormal posicionamento do músculo papilar (∆). (B-D) Sequência bSSFP três cavidades ao longo do ciclo cardíaco, sendo possível a visualização de vazio de sinal mesossistólico na câmara de saída do VE (seta em C), movimento anterior sistólico dos folhetos valvulares mitrais (seta em D) e jato de regurgitação valvular mitral (∆ em D). A excentricidade do jato, dirigido à parede posterior e lateral da cavidade auricular permite afirmar que o mecanismo subjacente à disfunção valvular se relaciona com a obstrução e deslocamento dos folhetos valvulares mitrais.

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Ressonância Magnética Cardíaca e Miocardiopatias

Miocardiopatia dilatada

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A MCD caracteriza-se por dilatação ventricular com consequente disfunção sistólica e compromisso da fração de ejeção. A dilatação e disfunção do VD podem estar presentes, não sendo obrigatórias para o diagnóstico. De acordo com a ESC, as alterações ventriculares características da MCD ocorrem na ausência de doença coronária suficiente para justificar a disfunção sistólica global (Figura 3.9). A MCD pode ter uma etiologia tóxica/metabólica, por exemplo secundária ao consumo excessivo de álcool ou deficiência de vitamina B1, ou representar a manifestação final de outras etiologias como sejam a sarcoidose, a doença de Chagas ou a miocardite crónica. No entanto, na maioria dos doentes (50%) não existe uma causa detetável, sendo designada MCD idiopática. Neste contexto, a MCD está geralmente associada a mutações genéticas, sendo a principal forma de transmissão a autossómica dominante, seguida da hereditariedade ligada ao cromossoma X. São exemplos de causas genéticas de MCD as mutações nas proteínas da banda Z, na laminina A/C e nas proteínas do citoesqueleto, tais como a distrofina e a desmina.

A

B

C

D

Figura 3.9 Sequência bSSFP quatro câmaras (A e B) e três câmaras (C e D) de doente com miocardiopatia dilatada e bloqueio completo do ramo esquerdo do feixe de His. Estimativa do volume telediastólico indexado do VE: 135 mL/m2 e fração de ejeção: 29%. Dessincronia (∇), evidente em sístole.

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Ressonância Magnética Cardíaca e Miocardiopatias

miocardite, é possível identificar alterações tecidulares passíveis de serem avaliadas por diferentes sequências de RMC, nomeadamente o edema intracelular e intersticial e a necrose celular com subsequente fibrose. O edema, um dos aspetos distintos da inflamação, pode ser identificado através de sequências com TR e TE longos, sendo que o aumento do conteúdo de moléculas de água conduz a um hipersinal em sequências ponderadas em T2. O recurso a sequências de short-tau inversion recovery (STIR), com supressão do sinal cavitário e da gordura, permite um maior contraste com o miocárdio normal e melhor identificação do edema. Na miocardite, a distribuição do edema é melhor avaliada em cortes de curto eixo do ventrículo esquerdo, podendo ser global ou regional (Figura 3.12). Tabela 3.2 – Causas de miocardite. Miocardite infeciosa Vírus

• Vírus RNA: Coxsackievirus A e B; ECHOvirus; poliovírus; Influenzavirus A e B; vírus sincicial respiratório; VHC; VIH; vírus da papeira, sarampo, rubéola, dengue, febre-amarela e raiva • Vírus DNA: Adenoviridae; Parvovírus B19; CMV; HHV-6; EBV; VZV; HSV

Bactérias

Staphylococcus; Streptococcus; Pneumococcus; Meningococcus; Gonococcus; Salmonella; Corynebacterium diphtheriae; Haemophilus influenzae; Mycobacterium (tuberculose); Mycoplasma pneumoniae; Brucella

Fungos

Aspergillus; Actinomyces; Blastomyces; Candida; Coccidioides; Cryptococcus; Histoplasma; mucormicose; Nocardia; Sporothrix

Protozoários

Trypanosoma cruzi; Toxoplasma gondii; Entamoeba; Leishmania

Parasitas

Trichinella spiralis; Echinococcus granulosus; Taenia solium

Rickettsia

Coxiella burnetii (Febre Q); Rickettsia rickettsii (febre maculosa das Montanhas Rochosas); Orientia tsutsugamushi Miocardite imunomediada Toxoide do tétano; vacinas; doença do soro

Alergénios

Fármacos: penicilina; colchicina; furosemida; isoniazida; lidocaína; tetraciclina; sulfonamidas; fenitoína; metildopa; diuréticos tiazídicos; amitriptilina

Aloantigénios

Rejeição de transplante de coração (enxerto) Miocardite linfocítica e de células gigantes não infeciosas

Autoantigénios

Doenças autoimunes: LES; artrite reumatoide; síndrome de Churg Strauss; doença de Kawasaki; DII; esclerodermia; polimiosite; miastenia grave; DM insulinodependente; tireotoxicose; sarcoidose; febre reumática; granulomatose com poliangeíte

 Lidel - edições técnicas

Miocardite tóxica Fármacos

Anfetaminas; antraciclinas; cocaína; ciclofosfamida; etanol; lítio; catecolaminas; trastuzumab; clozapina

Metais pesados

Bronze; ferro; chumbo

Hormonas

Feocromocitoma; vitaminas: beribéri (défice de vitamina B1 – tiamina)

Agentes físicos

Radiação; choque elétrico

Outros

Picada de escorpião, cobra, aranha, vespas ou abelhas; monóxido de carbono; arsénio; fósforo

VHC – vírus da hepatite C; VIH – vírus da imunodeficiência humana; CMV – citomegalovírus; HHV-6 – herpesvírus humano tipo 6; EBV – vírus Epstein-Barr; VZV – vírus varicela-zoster; HSV – vírus Herpes simplex; LES – lúpus eritematoso sistémico; DII – doença inflamatória intestinal; DM – diabetes mellitus Adaptado de Caforio et al., 2013).

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4 Massas e Tumores – Os Nossos Casos

 Lidel - edições técnicas

Os primeiros estudos de RMC dedicavam-se a casos de miocardiopatias ditas “raras” no início do desenvolvimento da técnica, assim como ao estudo de tumores cardíacos, também eles, sobretudo os primários, de ocorrência rara. Para este último facto contribuiu essencialmente a disponibilidade de uma técnica com capacidade multiplanar e, portanto, fornecendo detalhe topográfico, mas sobretudo a possibilidade de num único estudo se obter informação relativa à caracterização tecidular: gordura, presença de componente líquido, perfusão e fibrose. Na realidade, a RMC continua atualmente a desempenhar um papel central na avaliação e diagnóstico diferencial de massas cardíacas, embora atualmente representando um reduzido número de estudos, comparativamente com a aplicação desta modalidade de imagem num grande número de contextos clínicos. De qualquer modo, um estudo de massas por RMC representa uma oportunidade de aplicação de um conjunto múltiplo de sequências visando a caracterização morfológica e tecidular das massas. Independentemente da suspeita clínica em causa (tumores primários/envolvimento cardíaco secundário), os protocolos de RMC dedicados aos estudos de massas devem contemplar no mínimo as seguintes sequências: • Sequências cine, bSSFP, permitindo a identificação de mobilidade das massas, relação com estruturas valvulares, envolvimento pericárdico, repercussão sobre o enchimento cavitário e função ventricular; • Sequências com ponderação em T1, com e sem supressão adiposa, ponderação em T2, com avaliação do sinal por comparação com o normal sinal miocárdico; • Sequências de avaliação de perfusão; • Sequências com ponderação em T1 após contraste para exclusão de ganho de contraste para massas com perfusão não evidente/marcada, mas com vascularização; • Sequências com pesquisa de realce tardio para avaliação de fibrose; • Ocasionalmente podem usar-se outras sequências específicas, como por exemplo grid tagging, para avaliação de alteração de deformação cardíaca por massas intramiocárdicas sem características tecidulares específicas ou muito próximas do miocárdio normal.

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Massas e Tumores – Os Nossos Casos

Tabela 4.1 – Principais características por RMC dos tumores primários cardíacos mais frequentes. T1

T2

Perfusão

T1 pós­ ‑contraste

Realce tardio

Mixoma

+/-

+

+/-

+/-

+/-

Caracteristicamente intracavitário (AE) e com inserção no SIA; heterogéneo em T1 e T2; variabilidade de comportamento tecidular; móvel; mais frequente em mulheres e com sintomas constitucionais possíveis

Fibroelastoma

+/-

+

+/-

+/-

+

Lesões habitualmente valvulares (válvula aórtica); com dimensões e mobilidade limitando o estudo por RMC

-

As sequências com supressão adiposa permitem o diagnóstico da presença de gordura, também possível em tumores heterogéneos com este material como sejam os teratomas. A hipertrofia lipomatosa septal poupa a membrana da fossa ovalis, sendo mais frequente em mulheres idosas, com história prévia de obesidade, diabetes e toma de corticoides. Tipicamente indolente exceto se provocando obstrução à drenagem das veias cavas ou arritmias auriculares

Lipoma/ /hipertrofia

+

-

-

-

lipomatosa

Fibroma

++

-

+/(heterogéneo no interior)

+

+++

Massa intramiocárdica, tipicamente única e de grandes dimensões, limites bem definidos, com ganho de contraste periférico nas sequências de perfusão e extenso realce tardio. Possível calcificação associada, não identificável por RMC

Rabdomioma

=

=

+/-

+/-

+/-

Tumores múltiplos, lobulados, intramiocárdicos, típicos de idade pediátrica, com sinal praticamente idêntico, indistinto do miocárdio normal (T1 e T2)

-/=

+++

-

-

-

Habituais nos seios cardiofrénicos, podendo ter realce tardio periférico – cápsula

+

Tumores mais frequentes nas cavidades direitas, infiltrativos, com derrame pericárdico associado, com áreas hiperintensas em T1, heterogéneos, com ganho heterogéneo de sinal nas sequências de perfusão e com heterogeneidade também nas áreas de realce tardio

Quisto pericárdico

 Lidel - edições técnicas

Angiossarcoma

+

+/-

+

+

AE – aurícula esquerda; SIA – septo interauricular; RMC – ressonância magnética cardíaca; + aumento da intensidade do sinal; - hipointensidade; +/- sinal variável; = isointenso (avaliação em relação ao sinal do miocárdio)

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Massas e Tumores – Os Nossos Casos

T1 pós-contraste

T1 pós-contraste

A

B

T1 pós-contraste

Realce tardio

C

D

Realce tardio

Realce tardio

E

F Realce tardio

 Lidel - edições técnicas

G

Figura 4.1 – 4 (continuação) (A, B e C). correspondem a sequências ponderadas em T1, após contraste, com heterogeneidade de sinal na massa e algumas áreas hiperintensas. D, E, F e G correspondem a aquisições para estudo de realce tardio, com mínimos focos intramassa. A integração dos dados clínicos e de caracterização por imagem favoreceram a presença de volumoso mixoma da aurícula esquerda, confirmado no estudo anátomo-patológico.

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Ressonância Magnética Cardíaca

bSSFP

A

Tagging-diástole

B

C

T1

D

T2

E

Perfusão

F

T1 pós-contraste

G

Tagging-sístole

Realce tardio

H

Figura 4.3 Estudo para caracterização de massa intramiocárdica em criança de oito anos de idade, com diagnóstico neonatal de rabdomioma por ecocardiografia, com progressiva redução das dimensões. Nas sequências cine a presença de massa (seta) é suspeita pela alteração da normal morfologia septal, motivo pelo qual se utilizaram sequências tagging para tentativa de identificação de reduzida deformação do local correspondente à massa (neste caso, imagens não distintivas). Salienta-se o sinal praticamente idêntico da massa com o restante miocárdio nas sequências ponderadas em T1 e T2, ausência de aumento de ganho de sinal na perfusão e mínimo foco de realce tardio associado (seta em H).

92


M

Y

CM

MY

CY

CMY

K

Victor Machado Gil Cardiologista, Coordenador da Unidade Cardiovascular do Hospital Lusíadas, Lisboa

Este livro é um instrumento de trabalho e de revisão para os médicos internos das especialidades de Cardiologia e Imagiologia, e uma referência para os médicos especialistas, não esquecendo os técnicos que, no seu dia a dia, lidam com esta técnica.

ISBN 978-989-752-354-0

9 789897 523540

JOÃO ABECASIS I VICTOR MACHADO GIL

Os textos são ricamente ilustrados com iconografia que traduz as potencialidades desta técnica de imagem em franca expansão e desenvolvimento, com lugar reconhecido e estabelecido na Cardiologia.

www.lidel.pt

C

João Abecasis Cardiologista, Hospital Lusíadas, Lisboa

A ressonância magnética é um método seguro e não invasivo que gera imagens de alta resolução espacial, decisivas em múltiplas patologias cardiovasculares, sendo, assim, um método de imagem complementar de diagnóstico insubstituível dentro da imagiologia cardíaca. Ressonância Magnética Cardíaca – Uso Corrente e Aplicações baseia-se na experiência diária dos coordenadores para ilustrar a integração deste método de imagiologia cardiovascular na atividade clínica contemporânea da Cardiologia. Ainda que com especial enfoque nos estudos que contemplam maioritariamente os motivos de referenciação atual para este exame – doença coronária, diagnóstico diferencial, avaliação de isquemia e viabilidade –, os autores não deixaram de incluir casos em que classicamente a ressonância magnética cardíaca complementa os outros métodos de imagem – estudos de caracterização tecidual e miocardiopatias.

RESSONÂNCIA MAGNÉTICA CARDÍACA

RESSONÂNCIA MAGNÉTICA CARDÍACA Uso corrente e aplicações

RESSONÂNCIA MAGNÉTICA

CARDÍACA Uso corrente e aplicações

Coordenação:

JOÃO ABECASIS VICTOR MACHADO GIL


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