14,5 cm x 21 cm
CORPO E IDENTIDADE
10,3 mm
Perspetiva Psicodinâmica da Unidade Somatopsíquica
Escorado numa vasta revisão bibliográfica que revisita os clássicos e se completa com os contributos de autores contemporâneos, Orlando von Doellinger expõe, neste livro, um pensamento crítico e a sua forma de estar nas áreas em que trabalha (a psiquiatria, a psicoterapia psicodinâmica e a psicanálise).
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Dirigido a um público abrangente, interessado nos temas em questão, este livro é de leitura imprescindível para todos aqueles que trabalham na área da saúde, particularmente na área da saúde mental: médicos e estudantes de medicina; psiquiatras, pedopsiquiatras e psicólogos; enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais e outros técnicos que habitualmente integram equipas multidisciplinares de intervenção em saúde mental.
Orlando von Doellinger
ISBN 978-989-752-293-2
9 789897 522932
Orlando von Doellinger
Médico Psiquiatra, Diretor do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa. Doutorado em Psicologia e Professor no Departamento de Neurociências Clínicas e Saúde Mental da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Membro Titular da Sociedade Portuguesa de Psicanálise e da International Psychoanalytical Association.
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Perspetiva Psicodinâmica da Unidade Somatopsíquica
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Integrando conceitos de diferentes áreas do conhecimento, aprofunda a temática da unidade somatopsíquica. Para tal, aborda as questões da construção da identidade – construção que passa, necessariamente, pelo corpo próprio –, as questões da sexualidade e, consequentemente, do corpo sexuado e as questões de identidade de género, que, no fundo, implicam as questões anteriores e as colocam em tensão com a cultura em que vivemos. A presente obra é, por isso, um contributo para o alargamento do âmbito e do alcance do pensamento psicanalítico e psicodinâmico, tendo por base inabaláveis princípios de aceitação da liberdade individual e de não normatividade.
CORPO E IDENTIDADE
Combatendo a dicotomia corpo/mente e os binarismos de género, esta obra convida-nos a viajar através dos conceitos de corpo, de identidade, de sexualidade e de género, numa perspetiva psicodinâmica.
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Orlando von Doellinger
CORPO E IDENTIDADE Perspetiva Psicodinâmica da Unidade Somatopsíquica
Índice Autor.............................................................................................................. IX Prefácio.......................................................................................................... XI Introdução..................................................................................................... XVII
1
Identidade e desenvolvimento psicossexual ........................................... 3 Freud: o desenvolvimento psicossexual.................................................. 3 Margaret Mahler: o processo de separação‑individuação....................... 7
2
Identificação e identidade ..................................................................... 17 Freud: identificações, Eu, Supereu e Ideal do Eu.................................... 17 Melanie Klein: os conceitos de posição e de identificação projetiva........ 22 Grinberg: a sistematização dos processos de identificação...................... 31 Coimbra de Matos: processos de identificação....................................... 32 A noção de self........................................................................................ 34 Winnicott: self verdadeiro e falso self...................................................... 37
3
Adolescência, transformações corporais e identidade sexuada ............... 43 Freud e o monismo fálico....................................................................... 44 Erikson: o ciclo vital.............................................................................. 47 As transformações corporais e psicológicas da puberdade e adolescência... 52 A identidade sexuada............................................................................. 56
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Corpo e identidade ............................................................................... 61 Merleau‑Ponty: o corpo como veículo do ser no mundo........................ 61 Os conceitos de esquema corporal e imagem corporal........................... 66 As noções de Eu‑pele e de segunda pele................................................. 69 Winnicott: o psicossoma........................................................................ 71
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Corpo, género e identidade ................................................................... 77 Freud: a bissexualidade psíquica............................................................. 78 A feminilidade: do monismo fálico à diferença sexual........................... 80
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Da diferença sexual à pós‑modernidade psicodinâmica......................... 83 “Novas” masculinidades?....................................................................... 85
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O(s) género(s) e o corpo no processo analítico ....................................... 91 Ana: a integração do “corpo real” na identidade feminina..................... 91 Carlos: a integração da feminilidade psíquica na identidade masculina............................................................................................... 96
7
Masculinidade(s) e feminilidade(s) ........................................................ 105 Género, papel de género e identidade de género..................................... 105 Das teorias sociais às concetualizações psicodinâmicas.......................... 109 Das evidências científicas aos estereótipos.............................................. 113 Conclusão.............................................................................................. 117
Bibliografia.................................................................................................... 121
VIII
Autor Orlando von Doellinger
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Licenciado em Medicina e Cirurgia pelo Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (1992) e Doutorado em Investigação Psicológica, pela Universitat Ramon Llull, de Barcelona (2012). Médico Psiquiatra, Assistente Hospitalar Graduado e Diretor do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa. Professor Auxiliar Convidado da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Departamento de Neurociências Clínicas e Saúde Mental. Psicanalista, Membro Titular da Sociedade Portuguesa de Psicanálise e da International Psychoanalytical Association. Investigador do i3S (Instituto de Investigação e Inovação em Saúde).
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Prefácio Este excelente livro de Orlando von Doellinger, escrito a partir da sua experiência clínica como médico psiquiatra e psicanalista, convida-nos a viajar através dos conceitos de corpo, de identidade e de sexualidade do ser humano, levando-nos a refletir sobre questões tão intemporais e, simultaneamente, tão prementes e atuais da nossa sociedade. Não se restringindo à repetição de conceitos ou ideias convencionais, revela um pensamento crítico e um verdadeiro estar na psicanálise, no seu dizer “sempre numa perspetiva de liberdade individual e de não normatividade”. Esta viagem levou-me a pensar na complexidade antropológica em que vivemos, quer sob o ponto vista histórico, quer sociológico ou político, a qual não é facilitadora para o evoluir da identidade. Levou-me a interrogar sobre como é realmente Ser, num mundo em que ele próprio atravessa uma profunda crise de identidade? Será que a angústia confusional que a sociedade contemporânea experimenta ao pôr em causa determinados valores se assemelha à vivenciada, quando cada um de nós se defronta com as incertezas e contradições da própria condição humana? Qual o papel da turbulência e da violência de que somos historicamente protagonistas? Como se repercutem na nossa identidade? O crescimento interno pressupõe o encontro progressivo com a verdade e a liberdade, vetores fundamentais de uma verdadeira identidade, primeiro dentro de nós próprios (à medida que nos vamos libertando do jugo dos objetos internos) e depois na relação com o outro. O refletir, o projetar o futuro, o fantasiar, a procura da verdade são particularidades do pensamento do ser humano na busca incessante da sua identidade. Mas o que é a identidade? Como se adquire? A identidade é o conhecimento que faz com que a pessoa se reconheça como ser separado e distinto dos demais. É o sentir-se um e único, é o sentir-se indivíduo através do tempo, é o resultado de um processo de individuação-diferenciação, sendo a passagem do corpo ao simbólico o que determina a identidade sexual. A atividade simbólica é determinante na vida de cada indivíduo, sendo esta que lhe permite reconhecer-se a si e aos outros e relacionar-se consigo e com o mundo. É através desta atividade que o sujeito expressa a sua própria identidade, sendo esta tanto mais livre quanto maior for a sua capacidade em lidar com a perda e com a dor mental que a ela se associa. Foi Freud quem, ao atribuir um papel prioritário à primeira infância na construção da identidade adulta de cada indivíduo, contribuiu de uma forma decisiva para a atenção que foi crescendo sobre o desenvolvimento psicológico. XI
Corpo e Identidade
Ao defender a ideia de que todo o trabalho psíquico se alimenta da energia sexual, concebe que a origem do desejo é psíquica e, consequentemente, que o sexo biológico não é suficiente para que um sujeito se identifique como homem ou mulher, como nos relembra Orlando von Doellinger. A psicanálise dá ainda um enorme contributo na compreensão da sexualidade, ao afirmar a bissexualidade psíquica como constitutiva do ser humano, e não como uma perversão, contrariando o determinismo biológico de que o género emerge da anatomia e que a complementaridade só se atinge na heterossexualidade, bem como que o desenvolvimento saudável está dependente da coerência de sexo, género e objeto de desejo. Esta obra de Orlando von Doellinger revela a capacidade de pensar e do estar na clínica do seu autor. A forma como organiza as ideias, a profundidade com que aborda os conteúdos, o rigor metodológico e de escrita deixam uma impressão clara de uma elaboração conceptual extremamente consistente, com precisão teórica e clareza clínica. Aprofundando a temática da unidade somatopsíquica, aborda as questões complexas relacionadas com a construção da identidade, passando pelo corpo, pela sexualidade e pela identidade de género, destacando alguns conceitos que se prestam a confusões e/ou moralismos, defendendo a conceção de que masculino e feminino não são conceitos absolutos. Em síntese, leva-nos a revisitar autores clássicos como Freud, Mahler,Klein, Erikson e Winnicott, prosseguindo até aos autores mais atuais,articulando e contrapondo perspetivas, lançando interrogações, situando o seu próprio pensamento. No final, a nossa atenção é dirigida para as questões de género e perspetivas contemporâneas da “feminilidade” e da “masculinidade”, para a confusão ainda prevalente entre identidade sexual e escolha de objeto, para as noções atuais de bissexualidade que, frequentemente, continuam a confundir orientação sexual, anatomia e categorias de género, situando-se nestes diferentes pontos a grande mais-valia deste livro. Orlando von Doellinger começa por apresentar um índice muito bem estruturado, com sete capítulos bem sistematizados, o que facilita uma leitura escorreita. A sua escolha bibliográfica responde com profundidade e diversidade às diferentes dimensões exigidas pelo enquadramento teórico com um grande rigor metodológico na apresentação das fontes e das citações, o que é facilitador para o leitor vocacionado para investigações futuras. Logo no primeiro capítulo aborda as questões da “Identidade e desenvolvimento psicossexual”. Partindo do ainda controverso conceito de identidade, relembra-nos que na perspetiva psicanalítica o nascimento desta se encontra intimamente correlacionado com o desenvolvimento psicossexual (valioso XII
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Prefácio
contributo de Freud). Destaca-nos Mahler e a sua explicitação sobre a relação entre corpo e identidade, a sua interligação com as sensações corporais, a importância da imagem corporal como alicerce na formação da identidade. No segundo capítulo, “Identificação e identidade”, prossegue com conceitos fundamentais como o de identificação em Freud e os seus contributos para a construção do self. Passa para Klein com as conceções inovadoras de posição depressiva e esquizoparanoide e de identificação introjetiva e projetiva. De autores mais recentes, salienta os diferentes tipos de identificação teorizados por Grinberg e a visão do papel das tarefas identificatórias no processo de construção da identidade de Coimbra de Matos. Recorre a Hartmann, Jacobson e Kernberg para fazer a distinção entre o Eu e o self, revisita os conceitos de verdadeiro e falso self de Winnicott. Relembra-nos ainda a inextricabilidade do corpo e do self defendida por Meissner, ao propor que a conceção deste não deve ser limitada a aspetos psicológicos ou subjetivos, mas sim ser entendida em termos estruturais. Recorda-nos que já Merleau-Ponty, em 1945, defendia que o corpo não era apenas objeto, mas também agente, sujeito da experiência vivencial. No capítulo 3, aborda a “Adolescência, transformações corporais e identidade sexuada”, correlacionando as profundas modificações corporais e psíquicas desta etapa da vida com a construção de uma identidade sexuada. Retoma o desenvolvimento psicossexual de Freud e a sua perspetiva falocêntrica. Traz-nos algumas visões complementares ou mesmo antagónicas, referindo-nos Karen Horney e Helen Deutsh. Prossegue com Erikson e a crise identitária da adolescência, salientando também a importância dada por este autor aos fatores sociais no desenvolvimento. Finaliza com uma reflexão de autores mais recentes, como Braconnier e Marcelli, sobre as alterações corporais na puberdade e na adolescência e o seu impacto na estrutura psíquica do indivíduo e, consequentemente, na reorganização do sentimento de identidade. Referindo-se à adolescência afirma a importância desta etapa do desenvolvimento na “busca e constituição de uma identidade sexuada”, portanto, na identidade de género. No capítulo 4, falando sobre “Corpo e identidade”, é retomada a noção de unidade somatopsíquica. E traz-nos a questão da corporeidade, que como nos diz, é magnificamente explicitada por Merleau-Ponty quando refere que “o corpo é o veículo do ser no Mundo”. Salienta que já na terminologia metapsicológica de Freud, o Eu era, antes de mais, um Eu corporal, bem como era patente a indissociabilidade do corpo e dos fenómenos da construção da identidade no desenvolvimento psicossexual. Leva-nos a revisitar os conceitos de esquema e imagem corporal, recorrendo a Schilder, Pankow e Dolto. XIII
Corpo e Identidade
Traz-nos o “Eu-pele” de Anzieu e a “segunda pele” de Bick, relembrando-nos como a pele é simultaneamente fronteira e zona de contacto, que não só viabiliza “a separação do Eu e do não-Eu, como recebe e processa informações que possibilitam a aquisição e o desenvolvimento da identidade”. Termina regressando a Winnicott e ao seu conceito de psicossoma. No capítulo 5, “Corpo, género e identidade”, focaliza-nos na “bissexualidade psíquica” de Freud, fundamentada na anatomofisiologia e nos estudos sobre comportamentos sexuais de Kraft-Ebing e Havelock Ellis. Refere-nos que esta dupla origem talvez possa explicar porque Freud usou indiferentemente o termo bissexualidade para designar o que, atualmente, chamamos de orientação sexual ou identidade de género. Relembra ainda que, ao longo da sua obra, Freud já tinha acentuado que a escolha de objeto e a neurose eram fenómenos claramente distintos. Traz-nos Helen Deutsh e Karen Horney, sublinhando que esta última foi uma das primeiras autoras a realçar o viés masculino da teoria freudiana. É ainda Horney, com Ernest Jones e Melanie Klein, que defende a existência de uma feminilidade primária, a partir da noção (contrária à de Freud) de que a vagina é desde cedo uma zona erógena, centro de sensações e, portanto, de investimentos libidinais. É este o fundamento da primeira vaga feminista psicanalítica, em que o desenvolvimento da masculinidade e da feminilidade resultaria, essencialmente, da anatomia. Recorda-nos que é através deste regresso à “anatomia como destino”, que os autores da segunda vaga feminista e do pós-modernismo psicanalíticos partem para a sua crítica, considerando que são excluídas as individualidades e traçadas inevitabilidades, ignorando um dos mais “interessantes e subversivos insights” freudianos: o da importância das influências sociais e individuais na construção da identidade do indivíduo. Estes autores mais recentes advogam, por isso, a não existência de uma feminilidade ou masculinidade primárias, tal como de um género inato, defendendo que estas conceptualizações não passam de falsos binários. Isto porque se, por um lado, “o género é (…) uma construção política, social e psicológica”, por outro, “masculino e feminino são uma polaridade de géneros que existe em qualquer indivíduo, seja qual for o seu sexo anatómico ou a sua identidade de género nuclear”. Orlando von Doellinger, inteligentemente, elabora aqui a sua crítica a psicanalistas atuaisque parecem ainda não discriminar género, identidade sexual e escolha de objeto. No sexto capítulo, “O(s) género(s) e o corpo no processo analítico”, remete-nos para a clínica, ilustrando os temas e as problemáticas sobre as quais anteriormente se debruçou. Não descreve processos terapêuticos, mas visões parcelares de momentos cruciais em que as temáticas do corpo, da sexualidade, XIV
Prefácio
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dos géneros e da identidade na sua unidade somatopsíquica se evidenciaram como questões centrais.Traz-nos a sua abordagem despida de todo e qualquer preconceito, numa total aceitação da liberdade individual do sujeito, mostrando-nos como a forma do Estar e Ser do terapeuta podem contribuir para a diminuição e resolução do sofrimento psíquico. No capítulo 7, “Masculinidade(s) e feminilidade(s)”, em jeito de conclusão, faz uma revisão da evolução dos conceitos de género, identidade de género e papel de género, criados por Money e Stoller, recorrendo a alguns autores relevantes na investigação psicanalítica contemporânea. Relembra-nos que qualquer ser humano apresentará, sempre, um compósito de características “masculinas” e “femininas”, específico e individualizado e que a psicanálise terá, “também aqui, um importante papel na defesa da individualidade e da diferença, no combate à normatividade esquemática”. Orlando von Doellinger, concordando com Diamond, relembra-nos que uma teoria psicanalítica deve ir além da “desconstruçãodas dicotomias ou dos binarismos de género”, esforçando-se por estabelecer a “imprescindível tensão dialética entre os aspetos dicotómicos das diferenças de género e a experiência de género mais integrada”. Terminando, agradeço a Orlando von Doellinger o convite para prefaciar este livro, pela confiança e pelo enorme prazer que me proporcionou este partilhar de ideias, de formas de estar na clínica e na vida. Este trabalho demonstra de forma exímia como a Psicanálise não pode ficar encerrada na rigidez de conceitos que não admitem questionamentos e como pode contribuir para uma transformação individual, que se vai necessariamente refletir no coletivo. As tentativas de refletir, de assumir e aceitar a diferença, de estar para além da moral no sentido da procura da verdade, são características da saúde mental. Considero este livro uma referência, merecendo ser lido e estudado atentamente, enriquecendo certamente a prática clínica de todos os que o fizerem. Luísa Branco Vicente Psiquiatra e Pedopsiquiatra. Psicanalista (Membro Titular, com funções didáticas, da Sociedade Portuguesa de Psicanálise). Psicodramatista (Presidente da Comissão de Ensino e da Comissão de Ética da Sociedade Portuguesa de Psicodrama Psicanalítico de Grupo). Doutorada em Saúde Mental. Professora na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
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Introdução A temática do presente trabalho tem-nos acompanhado ao longo do nosso percurso, primeiro como médico e psiquiatra, depois já como psicanalista. A nossa formação em Medicina, apesar de ministrada numa Escola com forte componente humanista, não conseguiu fornecer-nos um enquadramento que excluísse, definitivamente, a clássica visão organicista da “Medicina de órgãos e de sistemas”. No internato em Psiquiatria que se lhe seguiu, a globalidade do ser humano, a visão da integralidade a partir das partes, foi-nos sendo apresentada, ao mesmo tempo que era fomentada a análise das mais diversas situações e quadros clínicos a partir desse ponto de vista. Foi ainda durante o internato que começámos um trabalho com pacientes mastectomizadas e com casais que sofriam de infertilidade. O impacto psicológico das diferentes cirurgias mamárias e, mais ainda, o seu impacto na vivência corporal da feminilidade das pacientes foi algo que constatámos na prática clínica e que, até certo ponto, era corroborado pela bibliografia que íamos consultando, ainda que não explicitado de forma completamente satisfatória. A questão de ser mulher era, também, uma angústia frequente nas mulheres dos casais portadores das mais diferentes causas de infertilidade. A partir destas constatações, e recorrendo a uma extensa pesquisa bibliográfica, fomos aprofundando o estudo da questão do corpo na construção da identidade feminina, temática em torno da qual delineámos um projeto de doutoramento. Vicissitudes diversas impediram que esse mesmo trabalho, no seu formato original, pudesse ser concretizado. Mas a questão do corpo e da identidade, da unidade somatopsíquica intrínseca ao ser humano, continuou a ser um tema de estudo constante. Ao mesmo tempo que fomos redefinindo e concretizando o campo da investigação do nosso doutoramento, aprofundámos a prática psicoterapêutica e psicanalítica. Foi a partir de uma crescente experiência clínica que se tornou imperioso aprofundar o estudo dos temas relacionados com a unidade somatopsíquica, agora numa perspetiva psicodinâmica: as questões da construção da identidade – construção que passa, necessariamente, pelo corpo próprio; as questões da sexualidade e, consequentemente, do corpo sexuado; as questões de identidade de género, que, no fundo, implicam as questões anteriores e as colocam em tensão com a cultura em que vivemos. XVII
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Assim, neste trabalho, apresentamos uma revisão das teorias de alguns dos autores psicanalíticos mais conhecidos e divulgados (Freud, Mahler, Klein, Erikson e Winnicott) no que respeita ao corpo e à identidade, bem como algumas das contribuições de autores mais recentes (uns que aprofundam as teorias previamente elaboradas, outros que as criticam e propõem alternativas), centrando-nos, finalmente, nas questões de género e nas perspetivas contemporâneas da feminilidade e da masculinidade na teorização psicodinâmica. Saliente-se, ainda, uma particularidade: sendo o género um conceito não psicanalítico, este trabalho pretende contribuir, também, para a sua integração na teorização psicodinâmica (como, de resto, o fazem grande parte dos autores contemporâneos que nele serão apresentados) e, simultaneamente, alargar o âmbito e o alcance do pensamento psicanalítico e psicodinâmico a outras áreas do conhecimento. Sempre numa perspetiva de liberdade individual e de não normatividade, que é, de resto, a essência das teorias psicodinâmicas e, em particular, da psicanálise.
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Capítulo 4
Corpo e identidade Vem de longe a conceção do ser humano como uma dualidade de substância. Tal conceção, que pressupõe que a mente é uma substância imaterial que habita temporariamente o corpo, deu origem a uma nítida delimitação entre a Fisiologia (ciência que estuda o funcionamento do corpo) e a Psicologia (que estuda os processos mentais) (Guimón, 1999, p. 15). Todavia, o contributo de diversos autores, particularmente Merleau‑Ponty (1945), aprofundou o conhecimento da corporeidade, entendida como a experiência vivida do corpo como realidade fenomenológica, em contraste com o corpo dos estudos anatómicos e fisiológicos. Por outro lado, e como já vimos em capítulo anterior, a teoria psicanalítica acrescentou, desde o início, a noção de corpo libidinal e motor de pulsões, bem como, posteriormente, a importância do corpo como objeto‑sujeito do intercâmbio com o outro (Guimón, 1999, p. 16). Aparecem, assim, e num primeiro tempo, os conceitos de esquema corporal e imagem corporal (Schilder, 1950). Posteriormente, a unidade somatopsíquica é explicitada pelas noções de Eu‑pele (Anzieu, 1974) e de segunda pele (Bick, 1967). Mas não terminaremos o capítulo sem voltar a Winnicott, autor que ao longo do seu percurso clínico e teórico tanta importância deu ao corpo – particularmente à relação dos cuidados maternos com o corpo do bebé, no saudável desenvolvimento deste. Importância objetivável no conceito winnicottiano de psicossoma (Winnicott, 1949).
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O CORPO COMO VEÍCULO DO SER NO ▪▪MERLEAU‑PONTY: MUNDO
Paul Valéry (1957), citado por Agostinho Ribeiro (2003, p. 17), descreve três modos de perceção e de uso do corpo próprio. Três corpos de que a experiência subjetiva nos dá conta: o corpo que se manifesta na relação imediata com o Eu (o corpo que tenho); o corpo que se evidencia aos outros na aparência (o corpo social); e o corpo anatomofisiológico do saber médico (só conhecido porque é estudado). Mas, como afirma Ribeiro, há um quarto corpo que 61
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assentando na fisicalidade destes três, a transcende. É o corpo da corporeidade, de cujo conhecimento depende a resolução de problemas vitais, mas que resiste ao conhecimento: “é um corpo‑mistério”. Maurice Merleau‑Ponty (1908‑1961) é, indiscutivelmente, a figura de proa no que respeita à elaboração do pensamento sobre essa mesma corporeidade e, por consequência, sobre o corpo e a identidade. Este autor nega, então, a dualidade de substância, afirmando que “a união entre a alma e o corpo não é selada por um decreto arbitrário entre dois termos exteriores, um sujeito, outro objeto. Ela realiza‑se a cada instante no movimento da existência” (Merleau‑Ponty, 1945, p. 131). Em toda a obra deste fenomenologista, cujo pensamento, numa primeira fase, é de carácter existencial e antropológico para, posteriormente, tomar um percurso mais ontológico, é possível constatar‑se a importância dada ao pensamento de Freud, ainda que, frequentemente, de uma forma crítica ou enviesada (Furlan, 1999). Tentaremos, aqui, sintetizar o pensamento de Merleau‑Ponty, como expresso na sua obra magna – Fenomenologia da percepção (1945) –, particularmente no que respeita ao corpo. É também nesta obra que as ideias de Freud são mais explicitamente evocadas e confrontadas. Para Merleau‑Ponty, o corpo “é o veículo do ser no mundo”. Ou seja, é o corpo que permite ao ser vivo juntar‑se a um meio definido, confundir ‑se em determinados projetos a empenhar‑se na sua prossecução. E corpo e mundo são indissociáveis, na medida em que é através do mundo que o indivíduo toma consciência do corpo, ao mesmo tempo que é através deste que toma consciência do mundo (Merleau‑Ponty, 1945, p. 122). Estamos, portanto, perante a ideia de um corpo relacional, um corpo que não existe isoladamente, apenas tendo sentido quando traduzindo a existência humana, que, como frisa constantemente, ocorre no mundo. O corpo é sentido através do mundo que o rodeia e é através dele que esse mesmo mundo é sentido. O corpo, como já a psicologia clássica afirmava, é um objeto. Um objeto num mundo de objetos, mas também o objeto a partir do qual é possível ter uma perspetiva sobre o mundo. Pelo corpo passa, então, a possibilidade de perceção dos outros objetos e, igualmente, a possibilidade de perceção do corpo, ele mesmo. Só é possível compreender a função do corpo vivo realizando‑a, na medida em que o indivíduo é um corpo que se ergue em direção ao mundo (Ibid., p. 114).
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Mas, como sugere Merleau‑Ponty, o corpo é mais do que um objeto do mundo: o corpo é o meio de comunicação com o mundo, e este não é apenas uma soma de objetos, é, antes, o horizonte latente da experiência. Daí que ser é “ser uma experiência, é comunicar interiormente com o mundo, com o corpo e com os outros; é ser com eles” (Ibid., p. 142). O corpo está sempre perto e à disposição do indivíduo, mas nunca verdadeiramente diante dele. O indivíduo está no seu corpo, ou seja, é o seu corpo (Ibid., pp. 207‑208). E se ser corpo é, como anteriormente explicitado, fazer parte do mundo, poderemos então concluir que o corpo não está primariamente no espaço – ele é no espaço (Ibid., p. 205). O corpo não é nem apenas sujeito nem apenas objeto. Merleau‑Ponty propõe, por isso, uma renovada visão da ontologia do corpo. O corpo, porque impossível de ser desdobrado sob o olhar do próprio, permanece à margem de todas as autoperceções (Ibid., p. 134). De igual modo, o corpo não é nunca, para o próprio, uma associação de órgãos justapostos no espaço. É, antes, vivenciado como indiviso, sendo a posição de cada um dos seus órgãos ou membros conhecida através de um esquema corporal onde todos estão envolvidos (Ibid., pp. 143‑144). Tal facto implica, portanto, que o corpo funciona sempre como um todo e como um todo é autopercecionado. O esquema corporal em causa não é, então, o mero resultado de associa ções estabelecidas através da experiência. É, isso sim, uma tomada de consciên cia da postura do organismo no mundo intersensorial (Ibid., p. 145). Ou, melhor, o esquema corporal é uma entidade dinâmica que permite exprimir que o corpo está no mundo (Ibid., p. 147). Na obra em estudo, a importância dada ao pensamento de Freud é explicitamente evocada quando Merleau‑Ponty discorre sobre o corpo como ser sexuado. Aí transmite a sua visão sobre as investigações psicanalíticas, afirmando que estas não pretendem explicar o Homem pela sua infraestrutura sexual; visam reencontrar na sexualidade as relações e atitudes que anteriormente passavam por relações e atitudes de consciência. Conclui, ainda, que “a significação da psicanálise não é tanto a de tornar biológica a psicologia quanto a de descobrir um movimento dialético em funções que se acreditavam serem puramente corporais, e reintegrar a sexualidade no ser humano” (Ibid., p. 218).
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E é a sexualidade que faz com que o Homem tenha uma história; é na sua sexualidade que o Homem projeta a sua forma de ser em relação ao mundo, ou seja, em relação ao tempo e aos outros homens (Ibid., p. 219)14. Sendo o seu objetivo o de pôr em evidência a função primordial pela qual o indivíduo assume o espaço (e o objeto ou o instrumento) e descrever o corpo enquanto lugar dessa apropriação, e verificado que o mundo natural existe em si mesmo, para além da existência para o sujeito, conclui que, para se pôr em evidência a génese do ser, será preciso considerar a área da experiência que visivelmente apenas só tem sentido e realidade para o próprio indivíduo: o seu meio afetivo. Que procurando ver como um objeto ou um ser passa a existir para o próprio, pelo desejo ou pelo amor, melhor se compreenderá como objetos e seres podem existir, em geral (Ibid., p. 213). Para Merleau‑Ponty, o sono, o despertar, a doença ou a saúde não são modalidades da consciência ou da vontade. Pelo contrário, pressupõem um “passo existencial”. E é através do corpo que se processa a metamorfose da transformação das ideias em coisas, o que equivale a dizer que o corpo simboliza a existência na medida em que a realiza e a atualiza. Assim, o corpo é aquilo que pode fechar o indivíduo ao mundo e, consequentemente, aquilo que o abre ao mundo e o coloca em situação, permitindo o movimento de existência em direção ao outro, em direção ao futuro, em direção ao mundo (Ibid., p. 228). O corpo exprime, por isso, a existência total; não é um acompanhamento exterior, pois é nele que se realiza a existência. E é esse sentido encarnado que é o fenómeno central do qual corpo e espírito, signo e significação, são momentos abstratos (Ibid., p. 229). A teoria do esquema corporal, em Merleau‑Ponty, é implicitamente uma teoria da perceção. O Homem, em diferentes situações de privação sensorial, reaprenderá o sentir do corpo, reencontrando, sob o saber objetivo e distante do próprio corpo, outro saber que tem dele. Porque o corpo está sempre com o Homem e porque o Homem é o corpo. Da mesma maneira, será preciso despertar a experiência do mundo tal como ele aparece enquanto percebemos o mundo com o corpo. Após os períodos de privação sensorial, retomando o contacto com o corpo e com o mundo, é a si próprio que o Homem se vai De forma idêntica, Seabra Diniz (1993) chama a atenção para o facto de a sexualidade ser uma manifestação da unidade somatopsíquica: a sexualidade humana é “típica de um funcionamento sensorial, inscrito no corpo e dele dependente”, mas, simultaneamente, está “dependente do fantasma inconsciente, da fantasia e do afeto”. 14
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reencontrar, já que, se percebemos com o nosso corpo, o corpo é um Eu natural e como que o sujeito da perceção (Ibid., p. 278). Na relação com o outro, a consciência de outrem só pode ser deduzida se as suas expressões emocionais e as do próprio são comparadas e identificadas, e se são reconhecidas correlações precisas entre a mímica e “factos psíquicos”. Mas é a perceção de outrem que precede e torna possíveis tais constatações, pois estas são constitutivas daquelas (Ibid., p. 471). Um objeto cultural desempenha um papel essencial na perceção de outrem: a linguagem. A fala é, em si mesma, um ato corporal. A vocalização requer a utilização de órgãos corporais, fazendo com que tudo o que é dito passe pelo corpo e, simultaneamente, constitua uma certa apresentação do corpo. Só há discurso se houver corpo, não existindo discurso senão através do corpo (Butler, 2004, p. 172). No diálogo constitui‑se um terreno comum entre outrem e o próprio, o pensamento de um e de outro formam um só tecido, o que ambos dizem insere‑se numa operação comum da qual nenhum dos dois é o criador. Passa a existir um ser a dois onde ninguém é mais um simples comportamento, antes são um para o outro, colaboradores numa reciprocidade perfeita. Ambos coexistem através de um mesmo mundo (Merleau‑Ponty, 1945, pp. 474‑475). Tal não traduz outra coisa senão a natureza da intersubjetividade da relação humana. O corpo, na obra de Merleau‑Ponty, pelo que atrás foi explicitado, tem um carácter pós‑dualista, que coloca em questão as tradicionais oposições cérebro/mente ou corpo/alma, pois, para além de ser a estrutura vivida, o corpo é também o lugar do aparelho cognitivo e o contexto dos processos de cognição (Ribeiro, 2003, p. 18). O corpo é o espelho do ser. E porque ele é um Eu natural, uma corrente de existência dada, nunca saberemos se as forças que nos dirigem são as suas ou as nossas – ou, antes, elas nunca são inteiramente nem suas nem nossas (Merleau‑Ponty, 1945, p. 236). O Homem é, como verificámos, o seu próprio corpo e esse corpo existe no espaço e move‑se ao longo do tempo; o que quer dizer que, simultaneamente, vai construindo a sua história (Ribeiro, 2003, p. 20). Cada indivíduo existe no mundo enquanto ser carnal entre outros seres carnais e é estruturado pelos diferentes tipos de relações que estabelece, simultaneamente, com ele mesmo e com os outros. E toda a relação passa pelo corpo. Como afirma Parisoli (2002, p. 5), o corpo é uma coisa, mas, ao mesmo tempo, uma coisa que é do 65
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próprio ou, melhor, que é o próprio. O corpo humano, encarnação da pessoa, é o lugar onde nascem e se manifestam os desejos, as sensações e as emoções. E é também aquilo que nos permite encontrar os outros, manifestando a natureza relacional do indivíduo pela afirmação da sua individualidade. Mas a realidade corporal é também uma realidade subjetiva, uma vivência impregnada de memórias e de expectativas, resultantes da contínua dialética corpo/mundo. A corporeidade é, por isso, um fenómeno‑história em cuja continuidade se constrói o sentimento de identidade pessoal (Ribeiro, 2003, pp. 19‑20).
CONCEITOS DE ESQUEMA CORPORAL E IMAGEM ▪▪OS CORPORAL
Paul Schilder criou o conceito de imagem corporal, que definiu como a “figuração do nosso corpo na nossa mente, ou seja, o modo pelo qual ele se apresenta para nós” (Schilder, 1950, p. 7). Como qualquer imagem, a imagem corporal é edificada em múltiplas experiências, particularmente cinestésicas, labirínticas, tácteis e, sobretudo, visuais. E é através do processamento dos dados fornecidos por essas experiências que se estabelece uma unidade essencial à correta apreensão do meio envolvente, bem como uma satisfatória coordenação motora (Tisseron, 1995, p. 44). Foi esta unidade – percebida, mas que ultrapassa a perceção e que, no fundo, traduz a imagem tridimensional que todos têm de si mesmos – que Schilder designou de imagem corporal. Este autor salienta, ainda, que a utilização deste termo indica, por um lado, que não está a falar de uma mera sensação ou imaginação, mas, antes, que se trata de uma aperceção do corpo; por outro lado, indica que, apesar de nos chegar através dos sentidos, não se trata de uma simples perceção; não sendo também uma representação, ainda que estejam envolvidas no processo figurações e representações mentais (Schilder, 1950, p. 7). Estas reflexões foram posteriormente desenvolvidas por duas importantes autoras: Gisela Pankow e Françoise Dolto. Gisela Pankow (1969, 1981), no seu trabalho com pacientes psicóticos, sugeriu que a estruturação da imagem do corpo é um elemento essencial do desenvolvimento psíquico, das fases de maior fragmentação mental até à aceitação de um corpo unificado e unissexual. Esta autora distingue duas funções fundamentais da imagem corporal. A primeira diz respeito à estrutura espacial do corpo enquanto forma, ou seja, permite o reconhecimento de uma 66
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associação dinâmica entre as partes do corpo e a sua totalidade. A segunda também diz respeito à estrutura espacial, mas quanto ao conteúdo e sentido. É esta função que permite a colocação em relação de cada parte do corpo (percebida como parte de uma totalidade, graças à primeira função) com uma atividade específica que lhe dá um sentido. Daí que esta segunda função tenha um importante papel no desenvolvimento das zonas erógenas e na comunicação destas com o exterior. Françoise Dolto (1984), por sua vez, distingue dois conceitos que, salienta, não devem ser confundidos: esquema corporal e imagem corporal. O esquema corporal é uma realidade de facto (Dolto, 1984, p. 18) que especifica o indivíduo enquanto representante da espécie, independentemente do local, da época ou das condições em que vive. Este esquema corporal depende da integridade do organismo e das suas lesões (Tisseron, 1995, p. 45). É o intérprete passivo ou ativo da imagem do corpo, pois é ele que permite a objetivação de uma intersubjetividade, de uma relação libidinal fundada na linguagem que, sem o seu suporte, seria incomunicável (Dolto, 1984, p. 21). Ao contrário do esquema corporal, a imagem do corpo é própria de cada um, estando intimamente associada ao sujeito e à sua história. É específica da libido de uma situação, de um tipo de relação libidinal. Daqui se conclui que o esquema corporal é em parte inconsciente, mas também pré‑consciente e consciente, enquanto a imagem do corpo é eminentemente inconsciente. A comunicação com o outro, todo o contacto com o outro, assenta na imagem do corpo; é na imagem do corpo que o tempo se cruza com o espaço e que o passado inconsciente encontra eco na relação presente (Ibid., pp. 21‑22). A imagem do corpo é, por isso, o resultado das relações estabelecidas pelo sujeito com o ambiente e, simultaneamente, o organizador dessas relações (Tisseron, 1995, p. 44). Não se refere a uma estrutura e funções de um organismo biológico, mas sim ao modo como o corpo é sentido pela pessoa que nele e através dele vive (Boothby, 2005, pp. 145‑146). Sendo a síntese viva das nossas experiências emocionais, a imagem do corpo pode considerar‑se como a encarnação simbólica inconsciente do sujeito desejoso. Todavia, os desejos não são suficientes para organizarem, eles mesmos, a imagem do corpo: é a palavra que vai ter um papel primordial nessa organização. Enquanto o esquema corporal refere o corpo atual no espaço e à experiên cia imediata, e é independente da linguagem; a imagem do corpo refere o sujeito do desejo ao seu fruir, mediatizado pela linguagem memorizada da 67
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comunicação entre sujeitos. A imagem corporal é, então, sempre inconsciente e está constituída pela articulação dinâmica de uma imagem de base, uma imagem funcional e uma imagem das zonas erógenas onde se expressa a tensão das pulsões (Dolto, 1984, p. 22). A imagem do corpo é o local onde se inscrevem as experiências relacionais da necessidade e do desejo, valorizantes e/ou desvalorizantes (narcisantes e/ou desnarcisantes). Estas sensações manifestam‑se como uma simbolização das variações da perceção do esquema corporal e mais particularmente das induzidas pelos encontros interpessoais. Enquanto o esquema corporal é a fonte das pulsões, o lugar da sua representação é a imagem do corpo (Ibid., pp. 33‑34). Dolto distingue três modalidades de uma mesma imagem do corpo: a imagem de base, a imagem funcional e a imagem erógena que, todas juntas, constituem a imagem do corpo sujeito de vivências e o narcisismo do sujeito em cada estádio da sua evolução. Estas imagens estão permanentemente ligadas entre si por algo que as mantém coesas e a que a autora designou de imagem dinâmica (Ibid., p. 42). A imagem de base é uma imagem estática, própria de cada estádio, que vai sendo alterada de acordo com as zonas erógenas em destaque e que permite à criança sentir‑se numa continuidade narcísica e espaçotemporal. É desta continuidade que procede a noção de existência (Ibid., p. 43). A imagem funcional, ao contrário da de base, é uma imagem “esténica” de um sujeito tendente ao cumprimento do seu desejo (Ibid., p. 47). Da elaboração desta imagem funcional se entranha, em relação com a mera resposta em jogo das zonas erógenas, um enriquecimento das possibilidades de relacionamento com o outro (Ibid., p. 48). A imagem erógena corresponde ao desejo face ao outro ser humano e abre uma via para o prazer partilhado (Tisseron, 1995, p. 45). A imagem dinâmica corresponde ao “desejo de ser” e de se perseverar num advir, não tendo, por isso, uma representação que lhe seja própria. Ela expressa o sujeito desejoso e com direito a desejar (Dolto, 1984, p. 50). O esquema corporal estrutura‑se em torno de aprendizagens e experiências independentes da linguagem, enquanto a imagem do corpo se estrutura na comunicação em volta dos desejos do sujeito (Tisseron, 1995, pp. 45‑46).
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14,5 cm x 21 cm
CORPO E IDENTIDADE
10,3 mm
Perspetiva Psicodinâmica da Unidade Somatopsíquica
Escorado numa vasta revisão bibliográfica que revisita os clássicos e se completa com os contributos de autores contemporâneos, Orlando von Doellinger expõe, neste livro, um pensamento crítico e a sua forma de estar nas áreas em que trabalha (a psiquiatria, a psicoterapia psicodinâmica e a psicanálise).
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Dirigido a um público abrangente, interessado nos temas em questão, este livro é de leitura imprescindível para todos aqueles que trabalham na área da saúde, particularmente na área da saúde mental: médicos e estudantes de medicina; psiquiatras, pedopsiquiatras e psicólogos; enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais e outros técnicos que habitualmente integram equipas multidisciplinares de intervenção em saúde mental.
Orlando von Doellinger
ISBN 978-989-752-293-2
9 789897 522932
Orlando von Doellinger
Médico Psiquiatra, Diretor do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa. Doutorado em Psicologia e Professor no Departamento de Neurociências Clínicas e Saúde Mental da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Membro Titular da Sociedade Portuguesa de Psicanálise e da International Psychoanalytical Association.
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Perspetiva Psicodinâmica da Unidade Somatopsíquica
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Integrando conceitos de diferentes áreas do conhecimento, aprofunda a temática da unidade somatopsíquica. Para tal, aborda as questões da construção da identidade – construção que passa, necessariamente, pelo corpo próprio –, as questões da sexualidade e, consequentemente, do corpo sexuado e as questões de identidade de género, que, no fundo, implicam as questões anteriores e as colocam em tensão com a cultura em que vivemos. A presente obra é, por isso, um contributo para o alargamento do âmbito e do alcance do pensamento psicanalítico e psicodinâmico, tendo por base inabaláveis princípios de aceitação da liberdade individual e de não normatividade.
CORPO E IDENTIDADE
Combatendo a dicotomia corpo/mente e os binarismos de género, esta obra convida-nos a viajar através dos conceitos de corpo, de identidade, de sexualidade e de género, numa perspetiva psicodinâmica.
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14,5 cm x 21 cm
Orlando von Doellinger
CORPO E IDENTIDADE Perspetiva Psicodinâmica da Unidade Somatopsíquica