Ginecologia Básica em Medicina Familiar

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Ginecologia Básica em Medicina Familiar Coordenação:

Joaquim Neves


Ginecologia Básica em Medicina Familiar

Coordenação

Joaquim Neves

Lidel – Edições Técnicas, Lda.

www.lidel.pt


Índice Os Autores....................................................................................................................................

IX

Prefácio ........................................................................................................................................

XIII

Carlos Calhaz Jorge

Siglas ............................................................................................................................................

CAPÍTULO

1

Semiologia Geral Joaquim Neves

Abordagem inicial ................................................................................................................... Exame objetivo genital ............................................................................................................ Exame objetivo das mamas ..................................................................................................... Conclusão ...............................................................................................................................

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CAPÍTULO

2

XV

1 3 4 8

Rastreios na Mulher Riquen Mulji

Introdução ............................................................................................................................... Défice cognitivo ligeiro ........................................................................................................... Introdução .............................................................................................................................. Definição ................................................................................................................................ Epidemiologia.......................................................................................................................... Fatores de risco ....................................................................................................................... Rastreio e modelos utilizados .................................................................................................. Grupos de risco ....................................................................................................................... Conclusão ............................................................................................................................... Diabetes mellitus ..................................................................................................................... Epidemiologia ......................................................................................................................... Complicações e custo social .................................................................................................... Fatores de risco e rastreio ........................................................................................................ A diabetes na mulher ............................................................................................................... Diabetes e qualidade de vida nas mulheres ............................................................................. Conclusão ............................................................................................................................... Doença cardiovascular ............................................................................................................ Epidemiologia ......................................................................................................................... Rastreio do risco cardiovascular .............................................................................................. Conclusão ............................................................................................................................... Doenças da tiroide ..................................................................................................................

V

9 10 10 10 12 13 15 15 18 20 20 21 21 24 25 26 27 27 27 31 32


Ginecologia Básica em Medicina Familiar Epidemiologia ......................................................................................................................... Rastreio ................................................................................................................................... Conclusão ............................................................................................................................... Doença venosa periférica ........................................................................................................ Definição, epidemiologia e fisiopatologia ................................................................................ Fatores de risco ....................................................................................................................... Manifestações clínicas e classificação da doença .................................................................... Avaliação do impacto na qualidade de vida ............................................................................. Rastreio e grupos de risco ........................................................................................................ Conclusão ............................................................................................................................... Litíase biliar ............................................................................................................................. Definição e fisiopatologia ........................................................................................................ Epidemiologia.......................................................................................................................... Fatores de risco para colelitíase ............................................................................................... Fatores de risco para cancro da vesícula biliar ......................................................................... Conclusão ...............................................................................................................................

CAPÍTULO

3

Terapêutica em Ginecologia Joaquim Neves

Aspetos gerais ......................................................................................................................... Tratamento hormonal na pós-menopausa para os sintomas vasomotores ................................. Alternativa ao tratamento hormonal para os sintomas vasomotores ......................................... Outras formulações (para a proteção óssea, ver Osteoporose) ................................................. Tratamento hormonal contracetivo .......................................................................................... Tratamento para a correção das disfunções hormonais (ver Irregularidades menstruais) .............................................................................................................................. Tratamentos na infertilidade ..................................................................................................... Tratamento das infeções genitais e das queixas urogenitais ...................................................... Imunoprofilaxia para o HPV ....................................................................................................

CAPÍTULO

4

32 32 35 36 36 37 39 40 40 40 41 41 42 42 44 46

49 49 51 51 51 52 52 54 55

Contraceção Mafalda Pama, Joaquim Neves

Conceito.................................................................................................................................. Métodos naturais ..................................................................................................................... Métodos de barreira ................................................................................................................ Métodos hormonais ................................................................................................................. Dispositivos intrauterinos ......................................................................................................... Métodos cirúrgicos .................................................................................................................. Acompanhamento da mulher em idade reprodutiva ................................................................

VI

59 60 60 61 65 65 65


Índice CAPÍTULO

5

Descrição Clínica e Abordagem Ginecológica de Condições Específicas

A Anemia nas mulheres não grávidas ...........................................................................................

67

Christina Soares, Joaquim Neves

B Bartholinites ..............................................................................................................................

74

Vera Ribeiro, Maria Amália Pacheco

C Cancro do colo do útero..........................................................................................................

80

Ana Otilia Gomes da Costa, Joaquim Neves

Cancro do endométrio ............................................................................................................

93

Vera Pereira de Sousa, Ana Maria Coelho, Joaquim Neves

Cancro da mama ..................................................................................................................... 109 Isabel Barros Pereira, Joaquim Neves

Cancro dos ovários ..................................................................................................................

119

Joaquim Neves

Carcinoma da vagina ...............................................................................................................

121

Sandra Maia, Joaquim Neves

D Doença benigna da mama .......................................................................................................

126

Sara Rodrigues Pereira, Paulo Santos

E Endometriose ..........................................................................................................................

134

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Sofia D. Mendes, Joaquim Neves

H Hemorragias uterinas anómalas ............................................................................................... 141 Luísa Machado

I Incontinência urinária feminina ................................................................................................ 152 Alexandra Henriques

VII


Ginecologia Básica em Medicina Familiar Infeções urinárias não complicadas na mulher não grávida ...................................................... 157 Ana Rosa Costa

Infertilidade ............................................................................................................................. 164 Cátia Rodrigues

M Massas anexiais: doença benigna do ovário ............................................................................. 168 Inês Martins, Joaquim Neves

Menopausa e pós-menopausa – insuficiência ovárica prematura ............................................ 180 Inês Rato, Ana Beatriz Godinho, Joaquim Neves

Miomas uterinos ...................................................................................................................... 187 Inês Reis, Joaquim Neves

O Oncologia geral na mulher: cancro colorretal e cancro do pulmão 1. O rastreio do cancro colorretal na mulher ......................................................................... 195 Pedro Costa

2. Cancro do pulmão ............................................................................................................ 204 Vera Pires da Silva, Joaquim Neves

Osteoporose na pós-menopausa ............................................................................................. 209 Priscila Araújo, Joaquim Neves

P Patologia vulvar ....................................................................................................................... 215 Joana Lima Silva, Pedro Vieira Baptista

Pólipos do endométrio ............................................................................................................ 222 Gonçalo Rosa Rodrigues, Joaquim Neves

Prolapso urogenital .................................................................................................................. 229 Inês Pereira, Joaquim Neves

S Síndrome do ovário poliquístico .............................................................................................. 237 Catarina Castro, Joaquim Neves

VIII


Os Autores COORDENADOR/AUTOR Joaquim Neves Especialista em Obstetrícia e Ginecologia; Assistente Hospitalar Eventual, Departamento/ Clínica Universitária de Obstetrícia e Ginecologia – Hospital de Santa Maria, CHLN, EPE; Coordenador do Ambulatório de Ginecologia – Ginecologia Geral, Planeamento Familiar e Medicina de Mulher na Pós-menopausa; Coordenador da Consulta de Interrupção da Gravidez por Opção da Mulher; Professor Assistente – Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, Clínica Universitária de Obstetrícia e Ginecologia.

AUTORES Alexandra Henriques Assistente Hospitalar, Unidade de Uroginecologia, Departamento de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina da Reprodução – Hospital de Santa Maria, CHLN, EPE. Ana Beatriz Godinho Internato de Ginecologia e Obstetrícia, Departamento de Obstetrícia e Ginecologia e Medicina da Reprodução – CHLN, EPE; Assistente Hospitalar de Ginecologia e Obstetrícia – Hospital Garcia da Orta, EPE. Ana Otilia Gomes da Costa Médica Interna da Formação Específica em Ginecologia e Obstetrícia – Hospital de Santa Maria, CHLN, EPE. Ana Maria Coelho Assistente Hospitalar, Serviço de Ginecologia – Instituto Português de Oncologia de Lisboa Dr. Francisco Gentil, EPE; Assistente Convidada de Ginecologia – Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa. Ana Rosa Costa Assistente Hospitalar Graduado de Ginecologia – Centro Hospitalar de São João, EPE; Vice-Presidente – Sociedade Portuguesa da Contracepção.

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Catarina Castro Interna de Ginecologia/Obstetrícia – Hospital de Santa Maria, CHLN, EPE. Cátia Rodrigues Assistente Hospitalar de Ginecologia e Obstetrícia, Departamento de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina da Reprodução – Hospital de Santa Maria, CHLN, EPE. Christina Soares Médica do Internato de Medicina Geral e Familiar – ACES Loures-Odivelas. Gonçalo Rosa Rodrigues Assistente Hospitalar de Ginecologia e Obstetrícia. Inês Martins Médica Interna do Internato Complementar de Ginecologia/Obstetrícia – Hospital de Santa Maria,CHLN, EPE. IX


Ginecologia Básica em Medicina Familiar Inês Pereira Assistente Hospitalar de Ginecologia/Obstetrícia – Hospital de Santa Maria, CHLN, EPE. Inês Rato Interna de Ginecologia-Obstetrícia, Serviço de Ginecologia, Obstetrícia e Medicina da Reprodução – Hospital de Santa Maria, CHLN, EPE Inês Reis Assistente Hospitalar, Serviço de Ginecologia/Obstetrícia – Hospital de Santa Maria, CHLN, EPE. Isabel Barros Pereira Médica do Internato Complementar de Ginecologia e Obstetrícia, Departamento/Clínica Universitária de Obstetrícia e Ginecologia, – Hospital Universitário de Santa Maria, CHLN, EPE; Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, Centro Académico de Medicina de Lisboa. Joana Lima Silva Interna de Formação Específica de Ginecologia e Obstetrícia – Centro Hospitalar de São João, EPE. Luísa Machado Assistente Hospitalar de Ginecologia/Obstetrícia – Hospital da Senhora da Oliveira, Guimarães, EPE. Mafalda Pama Interna do 4.º ano da Formação Específica de Medicina Geral e Família – Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados de Sete Rios, ACES Lisboa Norte. Maria Amália Pacheco Assistente Graduada de Ginecologia e Obstetrícia – Centro Hospitalar do Algarve, Unidade de Faro, EPE; Responsável da Unidade de Patologia do Colo, Serviço de Ginecologia – Centro Hospitalar do Algarve, Unidade de Faro, EPE. Paulo Santos Assistente Hospitalar de Ginecologia-Obstetrícia – Hospital de Santa Maria, CHLN, EPE; Integra a Equipa de Mastologia do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia e Medicina da Reprodução – Hospital de Santa Maria, CHLN, EPE. Pedro Costa Médico Interno do Internato Complementar de Gastrenterologia – Hospital de Santa Maria, CHLN, EPE; Assistente Convidado de Fisiopatologia – Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Pedro Vieira Baptista Assistente Hospitalar do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia – Centro Hospitalar de São João, EPE. Priscila Araújo Interna de Medicina Geral e Familiar – Unidade de Saúde Familiar do Parque. Riquen Mulji Interno de Formação Específica em Medicina Geral e Familiar – Unidade de Saúde Familiar das Conchas, ACES Lisboa Norte, ARS LVT. X


Os Autores Sandra Maia Interna da Formação Específica em Medicina Geral e Familiar – Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados de Sete Rios, ACES Lisboa Norte. Sara Rodrigues Pereira Interna de Ginecologia e Obstetrícia – Hospital de Santa Maria, CHLN, EPE; Capitão Médica da Guarda Nacional Republicana. Sofia D. Mendes Médica do Internato de Ginecologia e Obstetrícia, Departamento/Clínica Universitária de Obstetrícia e Ginecologia – Hospital de Santa Maria, CHLN, EPE. Vera Pereira de Sousa Interna do Internato Complementar de Ginecologia/Obstetrícia – Centro Hospitalar Barreiro Montijo, EPE; Assistente Convidada de Obstetrícia – Escola Superior de Saúde de Setúbal. Vera Ribeiro Assistente Hospitalar – Centro Hospitalar do Algarve, Unidade de Faro, EPE.

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Vera Pires da Silva Médica do Internato de Medicina Geral e Familiar – Unidade de Saúde Familiar da Ramada, Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados de Loures.

XI



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Prefácio

É possível encontrar descrições da prática da medicina especificamente ligada a doenças da mulher desde as civilizações grega e romana, mas essa prática é provavelmente anterior a tais relatos. Ao longo dos séculos foi sobretudo a vertente cirúrgica que mereceu referências. Com o advento de metodologias antissépticas e anestésicas minimamente adequadas, possibilitando redução muito significativa da mortalidade associada à sua prática, toda a área da cirurgia teve enorme expansão e a Ginecologia acabou por se tornar uma especialidade independente na última metade do século XIX. Em 1855, James Marion Sims fundou em Nova Iorque o primeiro hospital do mundo dedicado a doenças da mulher e, em 1880, a especialidade de Ginecologia estava já bem estabelecida. Com a evolução dos conhecimentos científicos ocorridos ao longo do século XX, sobretudo nas áreas da endocrinologia e da reprodução, e o progressivo aumento da longevidade da espécie humana, muitas áreas de saúde da mulher de âmbito não cirúrgico adquiriram grande importância. Tal não retira significado à vertente cirúrgica, característica basilar da Ginecologia, e, também ela, foco de enorme desenvolvimento técnico nas últimas décadas. Antes, confere uma muito maior amplitude de perspectivas a uma especialidade que passou a ter grande relevância, quer no que diz respeito à prevenção de doenças, quer a tratamentos de foro médico. No primeiro caso, são paradigmas a contraceção, que, na realidade, é uma forma de prevenção (de gravidezes não planeadas), os rastreios de doenças oncológicas e a eventual terapêutica de compensação hormonal na pós-menopausa. No segundo caso incluem-se todas as opções medicamentosas, nomeadamente no âmbito da infertilidade e da endocrinologia ginecológica, onde se inclui o tratamento de sintomas carenciais decorrentes da falência ovárica definitiva. Acresce a todo este espectro de ação, e muitas das respetivas opções não foram aqui enumeradas, a relevância extrema do saber aconselhar e do exercer ação pedagógica em relação a uma população cujos hábitos de vida nem sempre são os mais saudáveis. O presente livro, resultado do entusiasmo, capacidade de iniciativa e saber alicerçado em anos de experiência do seu coordenador e de um conjunto de jovens colaboradores, abarca nos vários capítulos que o compõem os conceitos que se consideram indispensáveis, procurando atingir um nível de profundidade adequado aos seus potenciais destinatários. Estou certo de que será uma mais-valia fundamental para os clínicos e outros profissionais que, nos cuidados primários de saúde, pedra basilar de qualquer sistema integrado de prestação de cuidados médicos, atendem doentes do sexo feminino, efetuam o acompanhamento de longo prazo desta população, concretizam os rastreios e o aconselhamento, elaboram os diagnósticos e ponderam o envio para cuidados de especialidade. Carlos Calhaz Jorge Professor Associado com agregação de Obstetrícia/Ginecologia, FMUL.

XIII



Siglas A ADN ACOG AINE AIS asc-us

ácido desoxirribonucleico American College of Obstetricians and Gynecologists anti-inflamatórios não esteroides adenocarcinoma in situ células escamosas atípicas de significado indeterminado

B BRCA

Breast Cancer (gene)

C CCHNP CCR CHC CHO CMV COC CTFF

cancro colorretal hereditário não polipoide cancro colorretal contraceção hormonal combinada contraceção hormonal oral citomegalovírus contraceção oral combinada capacidade total de fixação de ferro

D DCV DGS DIP DIU DLIU-LNG DM DPOC

doença cardiovascular Direção-Geral da Saúde doença inflamatória pélvica dispositivo intrauterino dispositivo de libertação intrauterina de levonorgestrel diabetes mellitus doença pulmonar obstrutiva crónica

E

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EBU eco-EV

exame bacteriológico da urina ecografia por via endocavitária

F FIGO Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia FINDRISC FINnish Diabetes Risk Score FSH hormona folículo-estimulante

G GnRH GnRhr

gonadotrofinas humanas gonadotrofinas recombinantes

XV


Ginecologia Básica em Medicina Familiar

H hCG HER2 HPV HSIL HTA HUA

gonadotrofina coriónica humana epidermal growth factor receptor 2 vírus do papiloma humano lesão intraepitelial de alto grau hipertensão arterial hemorragia uterina anómala

I IMC ITU

índice de massa corporal infeção do trato urinário

L LES LH LSC

lúpus eritematoso sistémico hormona luteinizante líquen simples crónico

P PAF PCR PET PMA

polipose adenomatosa familiar proteína C reativa tomografia por emissão de positrões procriação medicamente assistida

R RM

ressonância magnética

S SOP SPG STRAW

síndrome dos ovários poliquísticos Sociedade Portuguesa de Ginecologia Stages for Reproductive Aging Workshop

T TC TSH

tomografia computorizada hormona tiroestimulante

V VIN

neoplasia intraepitelial vulvar

W WHI

Women’s Health Initiative

XVI


Ginecologia Básica em Medicina Familiar Tabela 2.11

Fatores de risco para a doença venosa periférica

Fatores de risco não modificáveis

Fatores de risco modificáveis Paridade

Idade avançada: prevalência aumenta com a idade, mas a incidência parece ser constante

Estrogénios (contraceção oral combinada; THPM) Obesidade: sobretudo nas mulheres Sedentarismo

História familiar

Profissões que exijam muito tempo de pé* ou sentado

Sexo feminino

Obstipação crónica Dieta**

Pré-disposição genética: história de trombofilia

Tabagismo** Estatuto socioeconómico**

* Apesar de ser fator agravante, é pouco provável que seja causa primária; ** O aumento do risco não é consensual.

A necessidade de as mulheres efetuarem terapêutica estroprogestativa (contraceção oral ou THPM) confere-lhes o potencial para o risco acrescido de doença venosa periférica. Os contracetivos orais com progestativos de primeira e segunda gerações têm menor risco de desenvolvimento de TVP que os de terceira geração (desogestrel ou gestodeno) e do que o acetato de ciproterona e a drospirenona, mas existem divergências no risco entre os diferentes progestativos nos vários estudos realizados. O tromboembolismo venoso é um efeito adverso grave, mas raro, da contraceção oral combinada. A utilização de contracetivos orais combinados acarreta um risco quatro vezes maior de desenvolvimento de TVP e 35 vezes superior quando associada a trombofilia com a presença do fator V de Leiden, comparativamente às utentes que não fazem contraceção. Este risco é maior com o etinilestradiol do que com os estrogénios naturais e com a via transdérmica. No entanto, o risco é superior na gravidez e é mais elevado no primeiro ano de utilização do método. Não existem evidências de que os contracetivos orais combinados promovam o aparecimento ou o agravamento de veias varicosas[5,6]. As alterações fisiológicas associadas à gravidez favorecem o desenvolvimento da DVC, pelo relaxamento do músculo liso, a vasodilatação, a incompetência valvular, o aumento do volume circulante, a diminuição da velocidade de circulação do sangue e a estase sanguínea, a qual pode ser secundária à compressão das veias ilíacas pelo aumento do tamanho do útero. As varizes desenvolvem-se em 8% a 20% das grávidas, nomeadamente em 13% das primíparas, 30% das secundíparas e em 57% das multíparas. A presença da tríade de Virchow (hipercoagulabilidade, lesão endotelial e estase sanguínea) durante a gravidez favorece o desenvolvimento de DVC, em particular de TVP. Isto deve-se, em parte, ao aumento da atividade trombótica (aumento de fibrinogénio e fatores de coagulação, diminuição de antitrombina III) e à redução da atividade fibrinolítica (diminuição de 40% da proteína S e aumento da resistência à proteína C ativada). A incidência de TVP é superior na gravidez em comparação com o género masculino, mas diminui para níveis inferiores após a gestação[5]. O tromboembolismo pulmonar é a principal causa de morte materna nos EUA, sendo que na gravidez ocorre o risco relativo cinco vezes maior de incidência de TVP, sendo o risco semelhante nos três trimestres. Os fatores de risco adicionais para TVP na grávida com idade 38


Rastreios na Mulher

superior a 35 anos incluem obesidade, trombofilia, história pregressa de TVP (sobretudo se idiopática ou associada a trombofilia), varizes, patologia sistémica (síndrome nefrótica, anemia, DM2, patologia cardiovascular, hipertensão, doenças inflamatórias [como doença inflamatória intestinal], imobilidade prolongada [por fratura recente, paraplegia, viagem longa], desidratação e parto por cesariana)[1]. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS E CLASSIFICAÇÃO DA DOENÇA As manifestações clínicas são variadas e os sintomas podem variar entre ligeiros (dor inespecífica, sensação de peso, cansaço, irrequietude, prurido, sensação de queimadura ou tensão cutânea, cãibras e edema ligeiro) e graves, incluindo edema de tecidos moles, dermatite de estase, hiperpigmentação, lipodermatoesclerose, ulceração, erosão cutânea ou hemorragia[1]. A partir de 1994 adotou-se mundialmente um sistema de classificação que permitiu padronizar o estadiamento e uniformizar a comunicação sobre DVC em investigação científica. A classificação denominada CEAP (Tabela 2.12) baseia-se na avaliação multifatorial da doença (Clinical, Etiologic, Anatomic, Pathophysiologic)[1,4,7]. Tabela 2.12

Classificação CEAP básica[7] 0

Ausência de sinais ou sintomas E: Classificação etiológica

C: Classificação clínica

C

Congénita

S

Secundária

P

Primária

N

Sem etiologia identificada

S

Superficial

P

Perfurante

1

Telangiectasias ou veias reticulares

2

Varizes tronculares

3

Edema (etiologia venosa)

D

Profunda

4a

Pigmentação ou eczema

N

Sem localização identificada

4b

Lipodermatoesclerose ou atrofia branca

R

Refluxo

O

Obstrução

5

Úlcera venosa prévia, atualmente cicatrizada

6

Úlcera venosa ativa

A: Classificação anatómica

P: Classificação fisiopatológica

RO N

Refluxo e obstrução Sem fisiopatologia identificada

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As limitações deste sistema (arbitrário, subjetivo e com limite da definição entre categorias) proporcionaram a elaboração de outros sistemas complementares de classificação, entre os quais o Venous Severity Score, que permite avaliar a resposta à terapêutica, baseando-se em três componentes:[3] 1. Venous clinical severity score: consiste em 10 componentes clínicos (dor, varizes, edema, hiperpigmentação, inflamação, espessamento, número de úlceras, duração e tamanho das úlceras e terapêutica compressiva), classificados em quatro graus (ausente, ligeiro, moderado e grave); 2. Venous anatomic segmental score: atribui um valor numérico ao segmento venoso afetado tanto por refluxo como por obstrução; 3. Venous disability score: baseia-se na capacidade de efetuar as tarefas do quotidiano com ou sem utilização de meias compressivas. 39


CAPÍTULO

4

Contraceção Mafalda Pama, Joaquim Neves

CONCEITO A contraceção está incluída na área da saúde sexual e reprodutiva, sendo reconhecida pela OMS como um direito humano. Consiste no uso deliberado de métodos ou técnicas para evitar a gravidez não planeada como consequência de atividade sexual. Apesar deste objetivo comum, a estratégia utilizada é variável. Assim, os métodos contracetivos podem ser classificados como: naturais, barreira, hormonais, intrauterinos e cirúrgicos (Figura 4.1). A escolha do método contracetivo é influenciada por diferentes circunstâncias, tendo os profissionais de saúde a função fundamental de partilhar a informação referente às características específicas do método (eficácia, medida pelo índice de Pearl), forma de utilização, efeitos secundários, riscos e benefícios. Deve ainda enfatizar os métodos de contraceção de Métodos contracetivos

Naturais

• Calendário

• Mecânico

• Sinais e sintomas • Método de Billings • Sintotérmico • Dia standard (dia padronizado) • Amenorreia lactacional • Abstinência sexual

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Barreira

• Preservativo masculino

Hormonais

• Combinado • Progestativo • Emergência

• Preservativo feminino • Diafragma vaginal • Diafragma cervical • Esponja cervical • Capa cervical • Químico • Espermicida • Misto • Esponja cervical

Figura 4.1

Métodos contracetivos

59

Intrauterinos

• DIU com cobre • DIU com levonorgestrel

Cirúrgicos

• Laqueação tubária bilateral • Vasectomia


Descrição Clínica e Abordagem Ginecológica de Condições Específicas

CAPÍTULO

5

Anemia nas mulheres não grávidas Christina Soares, Joaquim Neves

Notas

CONCEITO De acordo com os critérios da Organização Mundial da Saúde (OMS), a anemia nas mulheres é definida como a diminuição da concentração de hemoglobina no sangue para valores inferiores a 12 g/dl ou hematócrito com valores inferiores a 37%[1]. No contexto ginecológico, apresenta-se sobretudo sob a forma de anemia microcítica hipocrómica e, essencialmente, associa-se às hemorragias uterinas anómalas (HUA). Esta variante das hemorragias é a causa principal de anemia nas mulheres e é, geralmente, de causas benignas. Atualmente, denominam-se HUA todas as situações de hemorragia genital com origem intrauterina que diferem em regularidade, quantidade, frequência, duração e volume do padrão menstrual habitual de cada mulher[2]. ETIOLOGIA As causas variam consoante o grupo etário e podem ser divididas em dois grandes grupos: as hemorragias disfuncionais (ovulatórias e anovulatórias) e as hemorragias causadas por doenças orgânicas de natureza sistémica ou ginecológica. No entanto, antes da puberdade e depois da menopausa não é suposto ocorrerem episódios de hemorragias vaginais. Nas mulheres em idade fértil é sempre importante excluir possível gravidez[3]. © Lidel – Edições Técnicas

A

HUA nA pUberdAde Em 85% dos casos a causa é disfuncional e relacionada com a imaturidade do eixo hipotálamo-hipófise-ovário. As causas orgânicas correspondem aos restantes casos e podem ser de origem ginecológica – infeções, pólipos, hiperplasia e neoplasias – ou não ginecológica – discrasias sanguíneas (doença de Von Willebrand, púrpura trombocitopénica idiopática, doenças linfoproliferativas), patologias 67


Ginecologia Básica em Medicina Familiar

sistémicas (de origem hepática ou renal, DM, autoimunes ou da tiroide), iatrogénicas (hormonas anticoagulantes, salicilatos, citostáticos, anticonvulsivantes) e patologia psicossocial (stress, distúrbios alimentares, exercício físico de competição).

HUA nA idAde reprodUtorA Nesta fase da vida das mulheres, as causas incluem patologias endocavitárias – pólipos, miomas submucosos, hiperplasia endometrial com ou sem atipia, neoplasia maligna do endométrio e endometrite, ou patologia miometrial (miomas intersticiais e adenomiose) – e ainda a disfunção anovulatória ou disovulatória.

HUA nA peri e pós-menopAUsA Nos grupos etários referidos devem considerar-se as hemorragias anovulatórias disfuncionais, o carcinoma do endométrio, os pólipos cervicais e endometriais, a hiperplasia endometrial, a endometrite atrófica, os miomas, tumores do útero, ovários e patologia secretora de estrogénios, vaginite atrófica, carcinoma da vulva e da vagina, trauma vaginal, cervicites e causas iatrogénicas e sistémicas[4]. ABORDAGEM[5] No estudo das causas de anemia é importante realizar história clínica pormenorizada, o que contribui para o correto diagnóstico diferencial e orientação da investigação laboratorial e imagiológica a equacionar e a realizar. O despiste regular da anemia nas mulheres deve iniciar-se na adolescência, com periodicidade de 5 a 10 anos de intervalo. Esta avaliação deverá ser anual nas seguintes situações: perdas menstruais abundantes; baixa ingestão de ferro na dieta; diagnóstico anterior de anemia; terapêutica hormonal com perdas vaginais; dispositivo intrauterino de cobre com perdas hemáticas abundantes.

HistóriA dA doençA AtUAl e Antecedentes Para resumir a história atual e os respetivos antecedentes será necessário:

Caracterizar pormenorizadamente as perdas hemáticas uterinas; Pesquisar sinais sugestivos de anomalias da hemóstase; Documentar os padrões de hemorragia e avaliar os sinais de anemia; Documentar a história menstrual, a data da última menstruação, método contracetivo, doenças associadas e medicação habitual.

Na investigação clínica, identificar antecedentes familiares de patologia tiroideia e, sobretudo, de neoplasia endometrial e cólica. 68


Ginecologia Básica em Medicina Familiar

Estádio IA

Estádio IB Miométrio Trompa

Miométrio Trompa

Ovário Paramétrio

Estádio II

Miométrio

Ovário Paramétrio

Ovário Paramétrio

Vagina

Trompa

Vagina

Vagina

Estádio IIIC Gânglios paraórticos

Ilíaca comum Estádio IIIA Miométrio

Trompa

Estádio IIIB Miométrio

Ilíaca externa

Miométrio

Trompa

Trompa Ovário Paramétrio

Ovário Paramétrio

Ovário Paramétrio

Vagina

Vagina

Vagina

Figura 5.2

Estadiamento do cancro do endométrio

Miométrio Gânglios paraórticos Ilíaca comum

Miométrio

Ilíaca externa

Ovário Paramétrio

Trompa

Ovário Paramétrio

Vagina

IA G3, IB, II, III, carcinossarcoma e carcinofibroma total extrafascial e anexectomia bilateral . Linfadenectomia pélvica e lomboaórtica

IA G1 e G2 . Histerectomia total extrafascial e anexectomia bilateral . Não é obrigatória linfadenectomia

. Histerectomia

Estômago

Miométrio Trompa p

Epíploon Ilíaca comum

Gânglios paraórticos Miométrio Ovàrio

Trompa

Paramétrio

Ovário

Ilíaca externa

Paramétrio Vagina

Tipos histológicos seroso e de células claras . Histerectomia total extrafascial e

II clínico

anexectomia bilateral . Linfadenectomia pélvica e lomboaórtica . Omentectomia . Biopsias peritoneais, citologia das cúpulas diafragmáticas

. Linfadenectomia pélvica e

Figura 5.3

. Histerectomia radical modificada tipo

Piver II lomboaórtica

Abordagem cirúrgica recomendada

104


Ginecologia Básica em Medicina Familiar

É reconhecida a importância da articulação entre os cuidados de saúde primários e a ginecologia para a promoção da saúde da mulher, de modo a efetuar com rigor o acompanhamento e aconselhamento das utentes, concretizar os rastreios, elaborar os diagnósticos e referenciar para cuidados de especialidade sempre que necessário. Este livro pretende ser uma ferramenta indispensável a todos os que, no seu dia a dia, lidam com doentes do sexo feminino. Ginecologia Básica em Medicina Familiar é uma obra estruturada de uma forma muito prática e dividida em cinco capítulos, que vão desde a semiologia geral, rastreios, terapêutica e contraceção, à descrição clínica e abordagem ginecológica das principais patologias – este último capítulo, o mais extenso, está organizado por ordem alfabética, para uma fácil consulta. Este livro irá seguramente fazer parte da bibliografia de referência para os médicos de Medicina Geral e Familiar, internos da especialidade e internistas, assim como será muito útil para estudantes e outros profissionais de saúde.

ISBN 978-989-752-133-1

9 789897 521331

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Joaquim Neves Especialista em Obstetrícia e Ginecologia; Assistente Hospitalar Eventual no Departamento/Clínica Universitária de Obstetrícia e Ginecologia do Hospital de Santa Maria – CHLN, EPE; Coordenador do Ambulatório de Ginecologia – Ginecologia Geral, Planeamento Familiar e Medicina de Mulher na Pós-menopausa; Coordenador da Consulta da Interrupção da Gravidez por Opção da Mulher; Assistente da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa – Clínica Universitária de Obstetrícia e Ginecologia. Coordenador e autor das obras Contraceção e Medicina da Mulher na Pós-menopausa, publicadas pela Lidel.


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