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O MOVIMENTO LGBT+ COMO AGENTE TRANSFORMADOR DA SOCIEDADE
“Estamos caminhando a passos lentos no amadurecimento da nossa democracia e das nossas almas. O movimento LGBT+ está cada vez mais forte e colorido de diversas representações”.
Jean Willys
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Movimentos Sociais: das práticas e objetivos à construção de novas formas de sociabilidade
Tendo em vista o objetivo de estudar a trajetória do Movimento LGBT+ no Espírito Santo, consideramos ser importante conceituar os movimentos sociais como um todo. Os autores divergem tanto na caracterização do que seria um movimento social, quanto na diferenciação de um movimento social de outras ações coletivas. Os movimentos sociais geralmente são analisados quanto a sua formação, dinâmica interna e seu projeto de sociabilidade. Não há uma visão unificada, um ponto de partida institucionalizado e nem critérios absolutos para que esse estudo seja realizado.
As profundas transformações políticas e sociais vividas pelos países ocidentais na década de 1960 impulsionaram novos estudos direcionados para os grandes responsáveis por essas mudanças: os movimentos de cunho social. Como uma forma de entender melhor esses “novos movimentos”, surge uma corrente de interpretação que realiza uma análise distinta daquela feita sobre os movimentos sociais que atuaram anteriormente.
A partir da década de 1960, segundo Gohn, a psicologia passou a ser rejeitada como foco explicativo básico das ações coletivas, bem como todas as análises centradas no comportamento coletivo dos grupos sociais. Refutou-se também a visão dos movimentos sociais como momentos de quebra das normas daqueles grupos. A autora denominou essas novas interpretações de teorias da “mobilização de recursos”. A
mobilização de recursos surgiu a partir de um esforço para que se analisassem os movimentos sociais dos anos 60 em sua dinâmica interna, metabolismo de poder e na sua característica de não só imprimir novas configurações às relações sociais, mas de se tornarem potencialidades transformadoras e reconstrutivas de uma sociabilidade diferenciada. Como consequência, essas teorias acabaram por refletir acerca das condições de emergência, dinâmica, desenvolvimento, estruturação e organização dos movimentos analisados.
Nesse sentido, os novos movimentos sociais se encontram em um patamar diferente daqueles considerados precursores do segmento, como o movimento sindical e operário, intrinsecamente ligados ao mundo do trabalho e à luta de classes. Essa nova concepção de luta social encontra-se diretamente conectada às questões trabalhistas, igualdade de direitos – sejam esses direitos os das mulheres, dos gays, dos deficientes, por exemplo –, ecologia e sustentabilidade. Gohn (1995) assegura que os “novos” movimentos sociais se contrapõem aos “velhos” e historicamente tradicionais movimentos sociais em suas práticas e objetivos.
Para a autora, os “novos” movimentos são ações coletivas de caráter sociopolítico, realizadas em função de interesses em comum, construídas por atores sociais pertencentes a diferentes classes e camadas sociais. Eles politizam suas demandas e criam um campo político de força social na sociedade civil. Suas ações se estruturam a partir de repertórios criados sobre temas e problemas em situações que tanto podem ser de conflitos, como de litígios ou de disputas. As ações desenvolvem um processo social e político-cultural que cria uma identidade coletiva ao movimento (GOHN, 1995). Para a autora, “as ações desenvolvem um processo social e político-cultural que cria uma identidade coletiva ao movimento, a partir de interesses em comum. Esta identidade decorre da força do princípio da solidariedade e é construída a partir da base referencial de valores culturais e políticos compartilhados pelo grupo” (GOHN, 1995, p. 44).
Os “novos” movimentos sociais desenvolvem ações relacionadas às dimensões da identidade humana, deslocada das condições socioeconômicas predominantes, de modo que suas práticas não se aproximam
de um projeto de sociabilidade diferenciada das relações sociais capitalistas, ou seja, não se voltariam para a transformação das atuais formas de dominação política e econômica, no sentido da construção de sociedade baseada na organização coletiva e no desenvolvimento das potencialidades humanas na direção não-capitalista.
Ricardo Antunes afirma que outras modalidades de luta social (como a ecológica, a feminista, a dos negros, dos LGBT+, dos jovens etc) são, como o mundo contemporâneo tem mostrado em abundância, de grande significado na busca de uma individualidade e de uma sociabilidade dotada de sentido (ANTUNES, 1997, p. 86).
São movimentos que, de acordo com Ilse Scherer-Warren (1996), desejam atuar no sentido de estabelecer um novo equilíbrio de forças entre o campo político institucional – ou seja, o governo, os partidos e os aparelhos burocráticos – e a sociedade civil, bem como no interior da própria sociedade civil nas relações de força entre dominantes e dominados, entre subordinantes e subordinados.
Outro estudioso dos movimentos sociais, Alan Touraine (1977), afirma que os movimentos sociais podem ser definidos como ações coletivas vinculadas à luta por interesses, associados à organização social e a mudanças na esfera social e cultural. Evidentemente, essa mobilização é realizada contra um opositor, que resiste. Na compreensão de Touraine, os movimentos sociais são frutos de uma vontade coletiva. “Eles falam de si próprios como agentes de liberdade, de igualdade, de justiça social ou de independência nacional, ou ainda como apela à modernidade ou à liberação de forças novas, num mundo de tradições, preconceitos e privilégios” (Touraine, 1978, Pag.35).
Gohn analisa que os movimentos não seriam heróis coletivos, acontecimentos dramáticos, mas simplesmente parte do sistema de forças sociais dessa sociedade, disputando a direção de seu campo cultural. Ao mesmo tempo, Touraine assinalou que os movimentos são as forças centrais da sociedade por serem sua trama, o seu coração. Suas lutas não são elementos de recusa, marginais à ordem, mas ao contrário, de reposição da ordem. Ele chegou a postular que a sociologia contemporânea seria o estudo dos movimentos sociais, pois tratar-se-ia de um objeto de análise que traz o ator social de volta (1997).
Para Sidney Tarrow (1994), os movimentos sociais surgem como expansão da atividade política a partir do século XIX, defendendo interesses próprios, a fim de provocar mudanças institucionais, utilizando-se de formas de organização e atuação não convencionais, ou seja, passeatas, atos de violência, protestos, etc.
Os movimentos sociais agem inicialmente como mediadores no processo de busca de respostas às interrogações suscitadas no cotidiano, projetando-se para uma perspectiva maior do que os problemas da cotidianidade. Antunes afirma que “decisivo aqui é referir que a consciência é originada no interior da vida cotidiana. É na cotidianidade que as questões são suscitadas e as respostas dos indivíduos e das classes são uma constante busca de indagações que se originam na vida cotidiana, onde as questões lhes são afloradas. As respostas às questões mais complexas são, entretanto, mediatizadas.” (ANTUNES; 1997, p. 117).
Se os movimentos se restringem às lutas cotidianas limitadas às reivindicações setoriais, desarticuladas com outras mobilizações, passam a se configurar como ações paliativas e insuficientes para possibilitar mudanças estruturais, fechando-se em si mesmos. Sendo assim, é indispensável articular essas ações mais imediatas com um projeto global e alternativo de organização social, “fundamentado numa lógica onde a produção de valores de troca não encontre nenhuma possibilidade de se constituir num elemento estruturante” (ANTUNES, 1997, p. 81).
Aproximando a discussão aos movimentos sociais ligados à temática LGBT+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros), Jorge Rodrigues (apud FACCHINI, 2007) afirma que o movimento homossexual foi aquele que, talvez, tenha tido mais dificuldades para se estabelecer e encontrar a sua política de identidade. Facchini (2007) define o campo desse movimento como um campo híbrido, no qual grupos e associações convivem entre dois modelos, que lhes servem de orientação.
Um modelo daria ênfase no estudo das atividades práticas, como a produção de ações coletivas/movimentos sociais. O outro modelo se orienta a partir da compreensão de que grupos e associações se movem, na verdade, num “campo rico de tensões” entre diversas polaridades que “devem ser articuladas de alguma maneira”, e de que é mais
interessante tentar entendê-los a partir dessas polaridades do que tentar elaborar uma caracterização linear (FERNANDES, apud FACHINNI, 2005, p.88).
O movimento de luta LGBT+ é caracterizado por Macrae (1990) como detentor de fisionomia própria, que vai se modificar em decorrência da sua localização, de seus fundadores e daqueles que serão representados por ele.
Dos países europeus aos Estados Unidos: os primeiros passos da luta LGBT+
O movimento que luta pelos direitos das pessoas LGBT+ conforme conhecemos hoje começou a se organizar no final dos anos 1970 nos Estados Unidos, bem como outros movimentos de cunho social que se articulavam em busca de visibilidade, da construção de novas formas de sociabilidade e da cidadania. Ao contrário do que é comumente afirmado, no entanto, esse não foi o primeiro momento em que esse grupo se uniu em busca de um bem comum.
Ainda que de maneira dispersa e sem uma postura unificada, alguns grupos anteriores a esse período se opuseram às condições vigentes e atuaram, de alguma forma, para que na década de 1970 o Movimento LGBT+ pudesse ganhar consistência na atuação ativista a favor da causa. Neste estudo, tomamos a postura de mencionar o maior número possível de fragmentos desse movimento, na expectativa de elaborar um contexto sólido e que sustentasse as discussões que se seguem.
É comum considerar que o Movimento LGBT+ surgiu nos Estados Unidos, porém, de acordo com Alessandro Soares da Silva (2009), estudioso do Movimento LGBT+, para compreender todo o cenário dos anos 1960 nos Estados Unidos é preciso, primeiramente, identificar alguns acontecimentos passados em alguns países da Europa em meados do século anterior, o século XIX.
Segundo Alessandro Silva, é possível distinguir três momentos históricos de luta pela emancipação LGBT+: o primeiro diz respeito aos es-
forços alemães, “que culminaram no florescimento de organizações, em muitos países europeus e nos Estados Unidos da América” (p. 125). O segundo refere-se ao período em que se inicia a II Guerra Mundial e termina em 1969, tempo em que foi possível observar “o desenvolvimento e a expansão de um movimento de libertação Lesbigay” (p. 125). E, por fim, o terceiro que seriam as contribuições estadunidenses para a formação do movimento como coletivo social.
As primeiras manifestações públicas a favor da emancipação da comunidade LGBT+ são datadas de meados do século XIX, no reino de Hanover, na Alemanha. Um membro do parlamento do reino, Karl Heinrich Ulrichs, aproveitou-se da posição pública que ocupava e da inexistência de punição para a homossexualidade em Hanover – diferentemente de outras partes da Europa –, para tornar público a defesa da homossexualidade e expor o que considerava a respeito do assunto.
Para tanto, Ulrichs fez uma intensa campanha por meio da publicação de artigos favoráveis à despenalização da homossexualidade nas regiões em que ser homossexual era considerado um crime. De acordo com Silva (p.126), em suas manifestações, Ulrichs demonstrou que considerava a homossexualidade uma anomalia “comparável a qualquer outra como a de ser canhoto ou anão”. Segundo Juan Herrero Brasas (2001, p. 248), essa luta pela despenalização da homossexualidade foi baseada no argumento de que “não há responsabilidade moral de nenhum tipo no ato de sentir atração por pessoas do mesmo sexo”.
Seus discursos não obtiveram êxito e foi preciso mais três décadas para que a primeira agremiação de luta por direitos de LGBT+ surgisse. Ainda assim, é preciso reconhecer que Ulrichs foi o primeiro a tratar os homossexuais como um grupo definido, e a defender bandeiras consideráveis para a luta – algumas em voga e sem sucesso até os dias atuais em determinados países (incluindo o Brasil).
Três décadas mais tarde, em 1897, surgiu a primeira organização voltada para a defesa dos direitos LGBT+: o Comitê Científico Humanitário (CCH). Esse comitê contava com a afiliação de pessoas importantes no cenário cultural da época e, segundo Silva (2009), serviu como inspiração para a fundação de organizações similares na Holanda e na Suécia. Esse comitê foi fundado por Magnus Hirschfeld, um alemão de
origem judaica que via na homossexualidade uma maldição e uma degeneração da natureza, motivo pelo qual não poderia ser considerada passível de pena. Para Hirschfeld, a homossexualidade era algo que o homem ou a mulher não possuía controle sobre, sendo a penalidade que a natureza lhes concedeu o suficiente.
O Comitê, sob os comandos de Hirschfeld, se mobilizou contra a posição do Código Penal Alemão, no qual a homossexualidade era um delito suscetível de prisão. Ele articulou o envio de algumas petições, assinadas inclusive por nomes como Albert Einstein, com o pedido de revogação de um artigo do Código Penal Alemão, que estabelecia a homossexualidade como um delito suscetível a prisão. Além disso, o Comitê realizou em 1903 o primeiro estudo científico para saber qual era a incidência da homossexualidade na população mundial. Nesse estudo, foi constatado que 2,2% da população mundial da época era composto por homossexuais. Esse resultado, porém, carecia de fiabilidade e seus métodos foram posteriormente contestados.
Hirschfeld ainda fundou a revista Anuário de Intermediários Sexuais, dedicada à luta por direitos civis, em 1899, o Instituto de Investigações Sexuais em 1919 e organizou, em 1921, a Liga para a Reforma Sexual, que tinha como finalidade a luta contra as legislações homofóbicas que vigoravam na Europa. Mesmo que, assim como as de Ulrichs, as concepções de Hirschfeld não sejam completamente esclarecidas ou mesmo lógicas, faz-se necessário, mais uma vez, considerar que, em relação à luta pela igualdade homossexual na sociedade, o comitê trouxe avanços para o Movimento LGBT+. De acordo com Alessandra Fleury e Ana Torres (2010), o Comitê Científico Humanitário promoveu, até 1933, diversas atividades públicas, como abaixo-assinados e palestras, na tentativa de por fim à discriminação contra homossexuais. Com a chegada dos nazistas ao poder, o comitê não resistiu à perseguição e foi fechado.
Não foi somente o CCH uma vítima do nazismo: durante a Segunda Guerra mundial, os homossexuais e transgêneros também foram alvos de perseguição e eram levados aos campos de concentração, a fim de serem escravizados e mortos. Entre 50 mil e 80 mil pessoas LGBT+ foram presas nos campos de concentração na Alemanha. Os nazistas os
estigmatizam com um triângulo rosa nos uniformes de trabalho.
Já na Holanda, após o fim da Segunda Guerra Mundial, surgiu a Associação dos Homossexuais Holandeses (AHH), que continua ativa até os dias atuais. Conhecida por seu discurso de vanguarda, a atuação da associação foi importante para que a Holanda efetivasse conquistas como a legalização do casamento e da adoção de crianças por casais homossexuais, por exemplo.
Esses acontecimentos na Europa impulsionaram o surgimento de novos focos de resistência e luta pela afirmação LGBT+ em outras partes do mundo. Os Estados Unidos da América foram influenciados pelos acontecimentos europeus. Tal inspiração foi decisiva para que o movimento social ganhasse força no país, que se tornaria, um pouco mais tarde, o palco de acontecimentos relevantes, como o caso da revolta de Stonewall, que mudariam para sempre a condição da luta pela afirmação LGBT+.
Da invisibilidade à formação de grupos de discussão: o início do processo de luta emancipatória nos Estados Unidos
A primeira organização LGBT+ dos Estados Unidos surgiu por meio dos esforços de um jovem imigrante alemão chamado Josef Dittmar, no ano de 1924. Dittmar fundou a Sociedade para os Direitos Humanos. Essa sociedade ainda preservava os princípios compartilhados pelas associações alemãs que tinham a homossexualidade e a transexualidade como uma postura anormal do ser humano, e que, justamente pelo seu caráter patológico, que não possibilitava aos portadores a expectativa de viver uma vida normal, como a de qualquer cisgênero heterossexual, não merecia ser tratado como um problema moral.
Na década de 1930, nos Estados Unidos, os LGBT+ não constituíam um movimento de caráter reivindicativo. Dittmar, portanto, teve dificuldade em encontrar um grupo “que estivesse de acordo com a proposta e que não a percebesse como um ato insensato. (...) Segundo aponta Herrero Brasas, o motivo disto foi o fato de que ‘(...) existia no mundo gay uma autentica militância anti-organizativa e apolítica, uma atitu-
de centrada exclusivamente na busca da evasão e da diversão” (SILVA, 2009, p.131).
O local onde os LGBT+ se encontravam para sociabilizar eram clubes secretos, ou parcialmente secretos, fato que tornava suas ações sociais anônimas. Isso acontecia porque, logo após a supressão da Lei Seca nos Estados Unidos – que proibia a comercialização e a ingestão de bebidas alcoólicas –, ficava a critério de cada unidade federativa a regulamentação do funcionamento dos seus estabelecimentos. Bares para o publico gay, no entanto, não eram aceitos nessas legislações, o que fomentou o surgimento de bares secretos voltados para esse público.
Juan Herrero Brasas (2001) afirma que a proibição não se dava somente quando um bar era voltado para o público LGBT+, mas era proibido também que os bares aceitassem a presença de um LGBT+ em seu interior – nesse caso, alguém que se deixasse identificar como tal, fosse por meio de sua vestimenta ou por suas condutas. Esses clubes, entretanto, figuravam-se como parcialmente secretos na medida em que constantes subornos eram feitos para os policiais da época com a intenção de manter o local em funcionamento.
A década de 1940 se configurou como uma época em que a atuação ativista ainda não poderia ser observada claramente, mas a possibilidade do início da projeção dos LGBT+ como grupo social discriminado ganhou força nesse momento de aparentes mudanças sociais proporcionadas pela Segunda Guerra Mundial.
O cenário socioeconômico dos países envolvidos na guerra constituía-se por homens saindo de seus países para lutar e mulheres adentrando no mercado de trabalho. Essas mudanças, como narra Silva (2009), resultaram em novas configurações sociais, em que, por exemplo, as mulheres lésbicas encontraram um ambiente mais favorável à formação de redes sociais, além dos gays que estavam em combate e conviviam, principalmente, com outros homens. Estas redes construídas foram importantes para a tomada de consciência de muitos gays e lésbicas que, até esse momento, não haviam se dado conta de que não estavam sozinhos no mundo, de que não eram tão poucos e que poderiam organizar-se com o intuito de reivindicar (SILVA, 2009).
No final dos anos 1940, houve outro fator importante para fomentar a busca por visibilidade de pessoas LGBT+: a publicação dos Informes Kinsey, em 1948, elaboradas por Alfred Kinsey. Este trabalho, que foi um dos primeiros informes sobre a sexualidade humana, causou impacto na sociedade ao afirmar que 10% da população masculina já teve algum contato, ou desejo de ter contato, com a experiência homossexual. Kinsey demonstrou que o que os indivíduos consideravam como uma conduta anormal poderia não ser tão anormal quanto supunham. No relatório, Kinsey deixa explícito que seu trabalho poderia não estar de acordo com a ordem moral, religiosa, cultural e psiquiátrica vigentes, intentando apenas diagnosticar estatisticamente a sexualidade da população.
Segundo Herrero Brasas (2001), a publicização desse relatório, mostrando um contingente significativo de LGBT+ na sociedade norte-americana, contribuiu decisivamente para que homossexuais e transgêneros tomassem consciência de que, ainda que não fossem poucos, se encontravam em silêncio e ocultos.
Foi somente nos anos 1950 que a primeira organização com o caráter militante e reivindicativo foi fundada, chamado Mattachine Society. Composta majoritariamente por gays membros do partido comunista dos Estados Unidos, essa organização trabalhava com o ideal da conscientização da população gay e lésbica. Era preciso, “(...) ajudar gays e lésbicas a tomar consciência de sua situação e condição social e, assim, lutar para transformá-la enquanto coletivo organizado” (SILVA, 2009, p. 134).
Fundada em 1951, a Mattachine Society se iniciou como uma sociedade secreta, já que naquela década a perseguição aos comunistas e ao comunismo era recorrente. Além disso, também havia a perseguição aos chamados pervertidos. A organização defendia os direitos civis e sociais dos LGBT+, reivindicações que ainda vigoram em diversos países.
Essa organização também foi significante para a trajetória do Movimento LGBT+ nos Estados Unidos por ser a primeira a defender a causa, não por considerar os LGBT+ portadores de anormalidades, e sim por percebê-los como um coletivo socialmente oprimido na sociedade. Os
integrantes da Mattachine Society logo perceberam que era preciso, antes de qualquer coisa, trabalhar para que os LGBT+ entendessem a sua condição na sociedade, e que, a partir daí, pudessem lutar por mais justiça.
Segundo John D’Emilio, a primeira tarefa do movimento de emancipação homossexual era, pois, lutar contra a internalização desse tipo de consciência pelos homossexuais e desenvolver entre a população gay a consciência de seu status como minoria oprimida (SILVA, 2009, p.135).
O fim da Mattachine Society aconteceu dez anos após a sua fundação, em 1961, quando as disputas internas pelo poder no grupo resultaram na dissolução das centenas de grupos ligados a organização. Surgiram, assim, inúmeras associações independentes.
Outro grupo que surgiu em nos anos 1950, de acordo com Silva (2009), foi a Associação Filhas de Bilitis. Fundado em 1953 e considerada como a primeira organização formada somente por lésbicas, esse grupo tinha um viés conservador, cuja pauta estava relacionada à educação das lésbicas, promoção de debates com especialistas e disseminação de um modo de vida aceitável pela sociedade.
Diante do histórico apresentado, é relevante ressaltar a importância dos anos 1950 para os acontecimentos que se seguem em relação ao movimento de afirmação homossexual nos Estados Unidos. Os reflexos dos avanços dessa época levaram ao evento mais popular em relação ao início da luta homossexual no mundo, já na década seguinte: a revolta de Stonewall. Faz-se necessário, porém, antes de mencionar Stonewall, ressaltar as mudanças culturais vividas no mundo ocidental da década de 1960, que redundariam na contestação dos padrões sociais vigentes, o que, de certa maneira, exerceu influência naqueles que encampariam a luta LGBT+ nos anos seguintes.
Movimentos, manifestações, criações intelectuais, artísticas e políticas: a revolução cultural nos anos 1960
A década de 1960 é um marco na história ocidental. Foram anos complexos de revolução nos costumes e comportamentos em diversos setores sociais nos países capitalistas, proporcionando um cenário ideal para o crescimento das lutas sociais em busca da igualdade entre as pessoas. Nesse sentido, a revolução sexual e a contracultura influenciaram mudanças na cultura LGBT+.
Para entender os movimentos sociais da atualidade, é crucial compreendermos os acontecimentos da década de 1960. Foram anos complexos de mudanças drásticas em todo o Ocidente. A atuação internacional da União Soviética, a guerra do Vietnã, os movimentos pacifistas que surgem a partir dela e a revolução cultural da China são alguns dos precedentes que ajudam a criar uma cultura contestadora e passam a inspirar rebeliões na Itália, em Portugal, nos EUA, no Brasil, na França e em vários outros países. Esse marco histórico representa uma quebra de hegemonia na atuação em movimentos sociais, que antes sempre fora feito e idealizado por sindicatos ou partidos comunistas, como já registrado. Dessa vez, a juventude esteve na liderança de um processo político geral e radical: uma luta pela transformação social. Entretanto, é o episódio de maio de 68, na França, que se destaca como um marco de mudanças em todo o mundo.
No pós-Segunda Guerra Mundial, o capitalismo francês se encontrava em declínio, forçando o estado a fazer uma reforma universitária. Mas o quadro de insatisfação era geral, em função da qualidade do ensino e em razão de que os próprios estudantes se encontravam prejudicados e precarizados, com perspectiva de desemprego durante e após os estudos. A partir desse contexto, o movimento estudantil decide ampliar suas reinvindicações, lutando por outras reformas no país e busca, também, o apoio do proletariado. O resultado foi a ocupação de universidades e fábricas, totalizando um número de 10 milhões de trabalhadores que aderiram ao movimento grevista na época.
Com o sucesso da adesão do proletariado, os estudantes avançam em suas reivindicações, e passam a questionar também as ciências, a
universidade e seu papel na sociedade, a produção capitalista, o consumismo, entre vários outros temas, colocando em questão o conjunto de sistemas e valores estabelecidos socialmente. Já não se tratava mais de reformas e, sim, de revolução. Apesar dos insucessos da “revolução” proposta, os questionamentos que surgiram nessa época deram abertura e serviram de base para vários outros movimentos. Os questionamentos se estenderam a outros domínios. Influenciaram não só a sociedade, mas o próprio modelo civilizatório, seus usos e costumes. Essas reivindicações influenciaram mudanças de postura por todo o mundo ocidental, o que resultou na conjuntura política e social para que um evento como Stonewall pudesse acontecer.
Dos guetos às ruas: os acontecimentos em Stonewall marcam uma nova fase do movimento de luta LGBT+
Logo no início da década de 1960, surge, na cidade de São Francisco, uma associação chamada A Taverna. Essa nova associação percorreu um caminho inverso ao trilhado pela Mattachine Society – que se acreditava que o homossexual deveria se enquadrar nos padrões heterossexuais – e se propôs a defender a existência de ambientes como bares para gays e lésbicas. No ano de 1964, cria-se uma outra associação, chamada Sociedade para os Direitos Individuais (Society for individual Rights – SIR). O SIR nasce com o objetivo de fortalecer a comunidade, de consolidar sua identidade gay, buscar enfatizar a diferença e o direito a ela (SILVA, 2009).
Outras associações foram criadas nos Estados Unidos e, em conjunto com as acima mencionadas, fundam a Conferência Norte-Americana de Organização Homofilas (NACHO), que passa a organizar congressos para tentar trilhar um caminho estratégico de ações coletivas. Herrero Brasas (2001) avalia que os coletivos ligados à NACHO tinham uma pauta mínima de mobilização comum: a luta pela legalização da relação homossexual, pela supressão das operações encobertas da polícia, pelo fim da discriminação contra os trans-homossexuais nas forças armadas e pelo fim da discriminação na concessão de vistos para
estrangeiros trans-homossexuais. Uma dessas causas, em especial a que diz respeito às operações encobertas pela polícia, contribuiu para os acontecimentos que se seguiram em Los Angeles e em Nova York.
Em 1967, em Los Angeles, na noite do Ano-novo, vários policiais vestidos à paisana adentraram o bar Black Cat Tavern. Os policiais prenderam dezesseis clientes, incluindo três pessoas que trabalhavam no local, por estarem manifestando o seu afeto por alguém do mesmo sexo. Isso acabou criando um tumulto nas imediações e mais de 200 pessoas protestaram contra a invasão.
Em Stonewall, na noite de 27 de junho de 1969, os policiais também adentraram o recinto e fizeram algumas detenções agressivas, como normalmente era feito. Mas dessa vez, uma mulher que estava no local foi agredida na cabeça por um policial e deu início, aos gritos, à rebelião que em pouco tempo contagiou as outras pessoas que estavam no estabelecimento. Cansados das humilhações e perseguições, os LGBT+ que estavam no bar, liderados pelas travestis, resistiram à polícia. Em pouco tempo, a euforia se espalhou entre as pessoas que acompanhavam o acontecimento e o número de envolvidos no protesto rapidamente aumentou.
A unidade antidistúrbios chegou para tentar controlar a situação, que naquele momento já se tornara incontrolável, e os manifestantes se rebelaram de maneira mais furiosa. A revolta foi até a madrugada do dia 28 e continuou pelos quatro dias seguintes, até o dia 02 de julho. No último dia, aproximadamente 2.000 homens e mulheres estavam nas ruas enfrentando os policiais.
Quanto à divulgação do fato, o que a imprensa da época veiculou foi a versão policial de que os distúrbios que se produziram naqueles dias ocorreram porque a polícia buscava garantir a ordem. Essa versão foi reforçada com a ideia de que a origem dos distúrbios foi uma blitz moralizante em um ninho de bichas ou que, o que aconteceu foi uma espécie de ataque de loucas (SILVA, 2009). Um ano depois do acontecimento em Stonewall, no primeiro aniversario da rebelião, aproximadamente 10 mil LGBT+ marcharam nas ruas de Nova Iorque, com o intuito de relembrar o acontecimento e demonstrar que estavam dispostos a seguir lutando por seus direitos. Por esse evento, desde essa época,
o dia 28 de junho é considerado como o Dia Internacional do Orgulho LGBT+.
Segundo Herrera Brasas (2001), após a revolta em Stonewall, o Movimento LGBT+ seguiu por caminhos que não reconheciam as organizações do passado – a Mattachine Society, o Sir, as Filhas da Bilitis – como precedentes do seu movimento. Para ele sensação de poder, a comprovação de que era possível a ação coletiva de LGBT+ para lutar contra a opressão foram alguns dos fatores que se combinaram para dar lugar, praticamente da noite para o dia, ao novo movimento de liberação LGBT+.
Nos três anos seguintes a Stonewall, surgiram mais de 500 Frentes de Libertação LGBT+ que conquistaram alguns importantes avanços em relação a discriminação contra esse grupo social, a saber: a Associação Nacional de Psiquiatria foi levada a rediscutir a classificação dos homossexuais como doentes e a revogação da lei que proibia os homossexuais de trabalhar no serviço público, que vigorava em algumas cidades norte- americanas. Além disso, também foi alcançada a revogação da lei que punia criminalmente a sodomia e a aprovação, em algumas cidades, da lei que proibia a discriminação nos locais de trabalho e moradia.
Mesmo sem saber com precisão o que aconteceu em Stonewall, se a mulher agredida foi ou não o estopim ou se a ronda estava ou não marcada, esse acontecimento inspirou um movimento de protesto LGBT+ não só pela América, mas também em todo o mundo. Jafree Soizick afirma:
O mito de Stonewall é uma criação politicamente genial que não podemos deixar de celebrar. O movimento de libertação gay nascido com o Stonewall construiu uma identidade indispensável à emancipação dos homossexuais. (JAFREE SOIZICK, 2002, p. 53).
O movimento de luta LGBT+ se transformou, então, em uma resistência primordialmente política e adotou um discurso radical e militante quanto ao direito à diferença. Spencer (1999) afirma que a partir desse momento esse movimento começou a tomar maiores proporções em todo o mundo ocidental.
Passados dez anos da revolta em Stonewall, um evento em São Francisco também marcou o cenário da Luta LGBT+ e teve como protagonista um político norte-americano assumidamente homossexual chamado Harvey Bernard Milk. Milk foi assassinado por um colega vereador de São Francisco em 1978 após se envolver em uma discordância política entre um policial e o então prefeito de São Francisco, George Moscone. Ainda que a morte de Milk não tenha sido diretamente relacionada com o fato de ele ter sido um defensor das minorias, principalmente os LGBT+, ela é tida como importante marco na luta homossexual. Milk foi morto após sua maior vitória política: barrar uma lei que previa a demissão sumária de professores que se admitissem homossexuais.
Tempos contemporâneos: uma luta por Direitos Humanos
Atualmente a luta LGBT+ está inserida no contexto dos Direitos Humanos na maioria dos países do mundo. Essa luta é, basicamente, calcada na promoção da igualdade dos direitos civis para essa população. Desde 2008, tanto a Organização das Nações Unidas (ONU) quanto a Organização dos Estados Americanos (OEA) têm aprovado declarações e resoluções afirmando que a orientação sexual e a identidade de gênero também devem ser consideradas como direitos humanos.
O casamento igualitário, que foi (e ainda é em alguns países) uma das mais fortes e unificadas reivindicações da população LGBT+ nunca avançou tão rapidamente quanto na última década. Dos 54 países que permitem casamentos ou uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, 39 implementaram a mudança entre 2009 e 2019, período em que, segundo matéria publicada no site da Agência Brasil, o reconhecimento das uniões homoafetivas mais do que triplicou no mundo.
Em 2009, a Associação Internacional de Gays, Lésbicas Bissexuais, Transgêneros e Intersexuais (Ilga) contabilizava sete países que permitiam o casamento entre pessoas do mesmo sexo. São eles: Bélgica, Holanda, Noruega, Espanha, Suécia, Canadá e África do Sul. Já os que permitiam a união civil eram oito: Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Islândia, Suíça, Reino Unido, Nova Zelândia e Colômbia. No levantamento
de 2019, já chegava a 26 o número de países que permitem o casamento civil e a 27 os que preveem a união civil. O número de países que permitem a adoção por casais homoafetivos, quando comparamos os relatórios da Ilga de 2009 e 2019, saltou de 10 para 27.
Entre 2009 e 2019, cresceu ainda o número de países que tipificaram crimes de ódio contra LGBT+, de 17 para 42, além de haver mais países que consideram ilegal incitar o ódio LGBTfóbico, grupo que aumentou de 17 para 39. Discriminar LGBT+ no trabalho também já é ilegal em 73 países, número bem maior que os 48 que eram contabilizados em 2009.
O Brasil entrou recentemente na lista de países que criminalizam a LGBTfobia, com a decisão do Supremo Tribunal Federal, em 2019, que equiparou a discriminação a LGBT+ ao crime de racismo.
Porém, de acordo com a Agência Brasil, nem tudo são flores: se em 54 países os homossexuais e bissexuais já podem ter suas relações reconhecidas legalmente, em 68 ter relacionamentos homoafetivos ainda é considerado crime. Apesar de esse número ter caído em relação a 2009, quando 80 países criminalizavam pessoas que se relacionassem com o mesmo sexo, a lista inclui nações que preveem pena de morte e prisão perpétua para homossexuais, como o Sudão, a Arábia Saudita, o Irã e Paquistão.
Parada do Orgulho LGBT realizada em 25 de junho de 2017 em Brasília (DF). Foto: Mídia NINJA.