A inserção do eu no Outro Queer1
Final de 2017, encontro-me sentado na sala de espera da Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude (SDSCJ-PE), situada na Av. Cruz Cabugá, Santo Amaro-Recife; na qual conheceria e entrevistaria Fernanda Fiberson, cuja identidade se resumia a três palavras: Travesti, Puta, Detenta. Lembro que estava vestida de primavera quando a encontrei. O corpo, adornado num vestido que redesenhava as formas curvilíneas. Nas orelhas, desenrolavam-se duas argolas douradas, exalando o prestígio da posição que agora assumia. Sobre os ombros, acompanhando seu minucioso e enigmático mover de braços, estendia-se uma bolsa, hoje nem tanto significativa como outrora – fora um dos seus instrumentos de trabalho na época em que comercializava o corpo, servia-lhe como um sinalizador da profissão que exercia nas ruas do Recife. Os lábios, redesenhados num batom cintilante, tilintavam entreabertos a contar-me histórias. Da rua, cárcere e subalternidade. O hálito, exalava o odor inebriante de um cigarro recém fumado. Quem sabe, talvez, usado para atrair memórias longínquas, as quais estou atento a ouvir. Eu, o queer, busco conhecer o Outro queer, Fernanda. Ela, irresoluta, conta-me o quão difícil foi ser reconhecida hoje como Fernanda Falcão. Lembranças dolorosas do corpo e vida reconstituídos pelas marcas da opressão. Corpo incogniscível, abjeto, a pesar na balança binária do masculino e feminino. Corpo Travestido. Vinte e seis anos, lembra com fervor – quem sabe até uma dose involuntária de medo – da noite em que foi açoitada pelos braços fortes e impiedosos dos policiais. Tomaram-lhe tudo, sobretudo a liberdade. Eu, que mesmo sendo queer, jamais precisei lutar pela minha identidade, sequer pelo meu nome. Contame – com poucas palavras – num tom sofrido, os tempos do cárcere: Fraude, Estupro, Racismo, Negligência, Anomia, Negação, Dor, Assédio. Num instante, parece-me que ao ouvi-la contar, presencio as torturas e sequelas que até hoje carrega na alma e corpo, mas apenas parece. Eu, mesmo negro, pobre e acima de tudo queer, jamais vivi aquilo. Naquele momento, toma-me por completo um sentimento, uma certeza: Eu, mesmo condicionado à marginalidade, ao racismo e LGBTfobia, jamais fui atingido pelas flechadas cujas marcas grafam o corpo de Fernanda. O rosto dela, é agora, tão somente um espelho, refletindo o que eu nunca tive ciência que possuía: O privilégio. Palavras, gestos e marcas que refletem o que sou, um ser – em sua miserabilidade étnica, sexual e racial – de certa forma blindado às desumanidades sociais. Enxergo, agora, em Fernanda, um Outro queer, desprivilegiado.
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O termo queer faz referência ao movimento das diversidades sexuais e de gênero implantado na militância/ativismo LGBT no final do século XX, cujo principal objetivo é abarcar as diversas genericidades não englobadas na sigla LGBT. Aqui, o termo inglês, assume seu significado epistemológico de bizarro/estranho, a fim de remeter às genericidades latino-americanas marginalizadas, hiperssexualizadas e cujas condições identitárias – étnica, racial e sexual - subvertem as normas do status quo, tendo como principais exemplos a travesti e o homem gay negro (cafuçu).