Penitenciária

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ENTREVISTA

PENITENCIÁRIA: SUBSTANTIVO FEMININO

“Identifico-me muito quando Drauzio Varella diz que desde criança era fascinado pelo

mundo do crime, acho que eu também. Talvez meu maior medo seja ser presa”. Assim Lara Buitron, 26 anos, militante feminista e ALGBTIQ+, inicia seu relato. Em uma visita residencial, sediada no bairro do Cordeiro/Recife-PE, final de setembro de 2017, fala da importância de atentarmos à vivência ALGBTIQ+ nas penitenciárias e dos motivos que conduziram seu contato com as travestis do presídio Frei Damião, complexo do Curado. LUCAS XAVIER

 Inicio com uma pergunta acerca da acessibilidade. Dentro do

sistema carcerário do Recife, qual penitenciária você visitou e quais foram os motivos que conduziram essa visita? LARA BUITRON  Visitei a Frei Damião, no complexo do Curado, que teoricamente é

a mais perigosa, por abrigar detentos que já tiveram cerca de três antecedentes criminais. Na verdade, o que motivou minha visita foi a execução do meu TCC, o filme Dindas, documentário elaborado em conjunção com Vitor Lima, Bruna Belo e Ariana Gondim. A proposta surgiu a partir da disciplina Cinema Queer, ministrada pelo docente Chico Lacerda do Departamento de Comunicação (DCOM) da UFPE; mas também de um documentário intitulado À margem do corpo (2006) – trata de uma mulher curitibana, que durante os anos 90 foi estuprada, mas não conseguiu abortar, acabando presa por matar a criança. Fiquei pensando sobre “estar à margem do seu próprio corpo”, juntei isso com queer, pensei nas travestis, negras, prostituídas, que estão “na margem da margem”. Lembro que andava com estudantes de Direito e a partir disso mesclei queer com Direito Penal, dando essa “doideira”. Quando pensamos em sistema penitenciário, não pensamos nessas pessoas ALGBTIQ+ lá dentro. Pensamos, talvez, nas penitenciárias femininas nas quais estão as mulheres lésbicas e os homens trans; quando atentamos às penitenciárias masculinas, pensamos nos gays, bissexuais nem tanto, quanto às travestis, invisibilizamos. LUCAS XAVIER 

Você disse que visitou a penitenciária Frei Damião, complexo do Curado. Foi seu primeiro contato com penitenciária? Houve impacto, se sim, qual (is)?


LARA BUITRON

 Foi meu primeiro contato com presídio, sim. Mas sempre tive

interesse por penal, adoro Drauzio Varella, li todos os livros dele. A gente não chegou filmando, entramos em contato com o Centro Estadual de Combate à Homofobia (CECH), que passou um período inativo, mas está se reestruturando novamente. Acompanhávamos as atividades que o CECH exercia no Frei Damião. Confesso que o Frei Damião foi uma escolha aleatória, especialmente por conter o maior índice de população ALGBTIQ+ e a casa das Dindas – uma cela exclusiva para GBT’s. Passamos cerca de um ano e meio na produção do documentário, sendo um ano reservado às visitas, ouvindo histórias, conhecendo a instituição. Lembro que no primeiro dia de visita, entregamos os documentos a um dos guardas penitenciários que monitorava, o qual dialogando com o pessoal do CECH, disse: “Olha, as meninas estão fazendo muita decisão, tem que ver isso aí, o que você podem fazer”. Ao lado dele tinha outro agente penitenciário, supostamente novato, que no momento em que escutou o “meninas”, disse: “aqui não tem meninas, não”. Pensei “hum, apenas observando”. O outro agente, replicando: “tem sim! As meninas da sala das dindas”. Ele repetiu a sentença com firmeza: “Aqui não tem meninas, aqui só tem homens!”. Pensei “Eita, parece que o que achava está sendo confirmado no primeiro dia”. Foi esse meu primeiro impacto. Fora isso, a relação com os agentes foi bem pacífica, estávamos sob companhia de representantes dos Direitos Humanos; quanto às meninas não tivemos nenhum problema, elas “abriram o coração” conosco; com os demais detentos, não tivemos contato. LUCAS XAVIER  Você disse que as meninas “abriram o coração” para sua equipe.

Você pode contar um pouco sobre as Dindas? LARA BUITRON

 Entrevistamos cerca de oito dindas, nem todas transexuais. Na

verdade, elas não se identificam como transexuais, identificam-se como travestis. Esse conceito de trans é bem acadêmico. São travestis, periféricas e marginalizadas, que não têm contato acadêmico. Durante nossas conversas, elas reafirmavam que “nunca seriam mulheres por que nasceram homens”, mesmo que sentissem vontade de transicionarem, na cabeça delas nunca seriam mulheres. Ao ouvir isso, questionei-me acerca da noção de identidade de gênero, para e por quem a identidade de gênero é facilmente assimilada. No filme, não apareceram todas as dindas, apareceu Fabiana, Tiane, Rafa – que chegou na Frei Damião como travesti, mas estava no processo de “retransição”, cortava o cabelo, não usava saia, pois estava muito traumatizada, tinha sofrido muitos estupros corretivos fora do sistema penitenciário – e Sabrina. Conhecemos também Padre Feijó, um padre assumidamente gay, não excomungado pela Igreja Católica, preso por saqueamento, que se autodesignou como chaveiro da sela por ter um nível intelectual acima das meninas. LUCAS XAVIER

 Dentre as quatro histórias ouvidas, qual mais impactou e por

quê?

 A história da Fabiana foi a que mais comoveu. Fabiana faleceu assim que terminamos o último corte do documentário. Ela foi uma travesti histórica para a cidade do Recife, não somente para o sistema carcerário, no qual viveu cerca de 30 anos, mas também pela sua biografia. Fabiana saiu de casa aos 9 anos de idade, tinha um caso com um vizinho, pelo qual era estuprada. Passou por um processo de hormonização desde essa idade, foi expulsa de casa e o relacionamento com o vizinho LARA BUITRON


acabou devido a feminilidade provocada pela injeção de hormônios. Daí foi para a rua, onde começou a prostituir-se no Recife Antigo, passou muito tempo morando na rua. Depois passou a fazer performances cantando Laura Pausini, Whitney Houston etc. Já adulta, prostituía-se na Antônio Falcão, entre os anos 80 e 90, local de extrema periculosidade para travestis, que eram mortas diariamente. Fabiana foi presa a primeira vez aos 16 anos, porque matou um cliente que a espancou por ser travesti. Durante os anos 90, conheceu Antônio da Moto, no Aníbal Bruno, considerado “o dono do presídio”, virando seu braço direito. Fabiana faleceu vítima de câncer bucal aos 45 anos, devido à negligência do sistema de saúde penitenciário. LUCAS XAVIER  Finalizo com uma pergunta acerca da sua experiência. Lara, ao

considerar essa experiência, alguma coisa marcou e/ou mudou? E, sobretudo, você tem alguma coisa a acrescentar?

 Foi uma experiência muito “doida”, percebi o quanto está tudo errado. Lembro que cheguei lá bem academicista, mas o contato com as meninas desconstruiu tudo, foi um “tapa na cara”. Na questão de gênero, por exemplo, repensei o quanto identidade é subjetivo, pessoal, autônomo, não vale a pena tentar pressupor a identidade alheia, perguntar é mais eficaz. Temos uma dificuldade muito grande de nos comunicar com quem realmente importa, a impressão que se dá sempre é que são objetos de estudo, não indivíduos, os quais provam ou não teorias, elaborando suas próprias teorias. Além disso, tem a temporalidade, lá dentro as coisas passam muito rápido e ao mesmo tempo muito lento, porque se trata de cativos. É uma relação espacial e temporal muito diferente da nossa, ninguém que está aqui fora sabe o que é estar numa penitenciária. Tudo lá dentro é superlotado. Muita coisa mudou, foi um ano de transformação. Repensei militância, repensei o quanto sou privilegiada. Já fui detida duas vezes, mas nunca caí. Sei que é porque não sou negra, sou classe média, tenho advogado, se não fosse por todos esses privilégios, estaria na Bom Pastor. Percebo também que há um diferencial enorme quando mulheres, sejam travestis, cisgêneras, transgêneras, são detidas. Ninguém vai lá “tirar a prisão delas”, já aos homens cisgêneros têm total atenção. LARA BUITRON

Lucas Xavier é graduando em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco, RECIFE-PE.

Lara Buitron é bacharel em Comunicação Social – Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal de Pernambuco, RECIFE-PE. Atualmente, atua como diretora de estúdio e auxiliar de cozinha, milita pelas causas feminista e ALGBTIQ+. Em parceria com três cineastas produziu o documentário Dindas. (Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=9x9cYrQVrPw&feature=youtu.be)



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