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ara quem jamais passou pela experiência de viver numa sociedade entregue às garras de um estado autoritário, literalmente da noite para o dia, a história do golpe militar de março de 1964 pode parecer coisa de roteiro do diretor Oliver Stone. O que no caso seria uma ideia um tanto quanto equivocada, pois a realidade dos fatos era tão sinistra que até os mais sórdidos thrillers de conspiração pareceriam produções açucaradas da Disney, se comparados ao clima pesado que gravitava naquele período. Mas o pior mesmo nem foi o modo horripilante como tudo aconteceu, o fato de a ação haver surpreendido a todos e ter virado o país inteirinho de ponta-cabeça. O que realmente mexeu com políticos, artistas, intelectuais ou qualquer cidadão que, naquele momento, não compartilhasse do clima de paranoia anticomunista, foi a triste constatação de que aquilo era apenas o começo.
Analisando hoje o contexto social e político no qual o país estava inserido, percebemos que o Brasil naqueles agitados anos 1960 estava mergulhado na mesma atmosfera de tensão que tomava praticamente todo o globo. Barricadas de Paris, Primavera de Praga, a guerra no Vietnam, o assassinato do ativista Martin Luther King, os Panteras Negras partindo para a ofensiva, após séculos de sofrimento e humilhações nos Estados Unidos... E aqui, os protestos estudantis contra a ditadura, o AI-5, as torturas, as mortes, os sumiços. A luta armada, os assaltos a bancos, os sequestros. Repressão e censura em todos os setores do cenário cultural, o exílio de artistas, escritores e intelectuais de esquerda... O maior baixo astral. Os primeiros sinais de que uma pesada nuvem negra se formava surgiram em meados de 1962. Foi a partir desse ano que o Brasil começou a
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assimilar os efeitos iniciais dos traumas decorrentes da renúncia do presidente Jânio Quadros, que levou o país a uma das mais graves crises da sua história. A começar pela resistência à posse de João Goulart pelos militares envolvidos com a UDN golpista, acirrando o confronto ideológico que, num crescendo, ia preparando o clima para a grande ruptura institucional em março de 1964. Sempre na espreita, as forças conservadoras da direita assistiam à mobilização da esquerda, esperando com apreensão o momento adequado para agir, com o apoio da Embaixada NorteAmericana no Brasil. Policiais do Exército cercam a Praça dos Três Poderes, em Brasília, durante protestos após o golpe
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Na guerra ideológica que dominava o cenário nacional na década de 1960, forças e partidos políticos tinham como objetivo conquistar a opinião pública; para isso era preciso ir às ruas
pela Liberdade, gritando entre outros slogans estúpidos, o infame: “um, dois, três, Brizola no xadrez!”. Como é possível deduzir, foi muito fácil para a direita empolgar os setores mais conservadores da classe média e, sobretudo, mobilizar as elites dominantes tradicionais, católicas, empresariais e políticas, para acionar todo o esquema golpista que destituiu o presidente João Goulart do seu cargo, na noite de 31 de março para a manhã de 1º de abril daquele ano. Golpe de estado executado sem luta, sem resistência. No dia 2 de abril, o ex-presidente Goulart já estava exilado no Uruguai e, no dia 15, o general Castello Branco, que chefiava o Estado-Maior do Exército no governo deposto, assumiu a presidência. Até o final da década de
1960, o Brasil assistiria a uma radicalização cada vez maior dos abusos cometidos pelo regime militar. Nesse cenário no qual os artistas eram submetidos constantemente à lei do cão que imperava naquela época, o poeta maranhense Ferreira Gullar optou por não baixar a cabeça, assumindo em seu trabalho um compromisso de resistência à ditadura. Desde sempre, aliás, ele defendeu a ideia de que a produção artística deveria refletir a realidade a seu redor, e foi por conta de seu posicionamento político e pelo potencial subversivo de sua arte engajada que, num determinado momento, o escritor teve de se exilar, passando temporadas em países como a Rússia, o Chile, o Peru e a Argentina. Uma de suas obras mais emblemáticas nesse período é o Poema Sujo, escrito durante sua temporada na Argentina. Consta que o poema foi gravado e trazido clandestinamente para o Brasil, onde reuniões privadas para apresentar a obra eram realizadas por Vinícius de Moraes. Assim como muitos dos exilados políticos, Ferreira Gullar atuou na imprensa alternativa, colaborando em publicações como O Pasquim, onde assinava com o pseudônimo de Frederico Marques. Desde o princípio, o regime militar tratou de jogar um balde de água fria nos movimentos
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Passeata que reuniu descontentes com a suposta ameça comunista no Brasil. Tudo em nome da família e dos valores cristãos
As mobilizações sindicais e as intensas manifestações estudantis que, inspiradas no triunfo da Revolução de Fidel Castro em Cuba, tomavam as ruas reivindicando mudanças, foram suficientes para a direita conservadora finalmente dar um basta a tudo aquilo e entrar em ação exercendo forte pressão sobre o governo do presidente João Goulart. Foi quando começou a crescer um sentimento paranoico de medo, plantado na consciência da população de que os comunistas tomariam conta de tudo. Para manifestar sua indignação e combater o mal que ameaçava os princípios da boa sociedade, no dia 19 de março de 1964, cerca de 500 mil pessoas foram às ruas na Marcha da Família com Deus
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artísticos, ainda que num primeiro momento uma postura moderada do governo Castello Branco – sob a máscara de respeito institucional à livre expressão – houvesse tolerado, dentro de certos limites e sob atenta vigilância, algumas manifestações. “Foi nesse panorama que uma crescente consciência revolucionária em marcha entre a juventude fomentou um expressivo número de movimentos, sobretudo no teatro, no cinema e na música popular, estimulada pelos festivais de TV que estavam na moda e acabaram revelando nomes como os de Chico Buarque de Hollanda, Edu Lobo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, entre outros”, destaca o cineasta e escritor Jairo Ferreira. Em um país com território
tão vasto como o Brasil, repleto de particularidades em cada uma de suas diferentes regiões, com gostos múltiplos e vivências díspares, a coisa mais natural do mundo é que nele se desenvolva uma cultura mista, que reflita toda essa diversidade em músicas dos mais variados gêneros, certo? Acontece que não era assim que a classe universitária e o Olimpo da música popular brasileira enxergavam as coisas. Colocando tudo sob a perspectiva do que acontecia nos festivais de música dos anos 60, podemos ver claramente a tremenda guerra de estilos que as diferenças culturais no país potencializavam em uma época na qual a patrulha ideológica e o nacionalismo exacerbado jogavam tudo na arena do bipartidarismo estético, que era Divulgação
uma posição tão mesquinha que, se você não fosse adepto das “coisas boas da terra”, era tachado de alienado, brega, cafona. Assim, tínhamos os artistas da música verdadeiramente popular num canto, representados pelos cantores sertanejos da velha guarda, os ídolos românticos, os músicos de forró (como Luiz Gonzaga, por exemplo), e o pessoal da segunda geração da bossa nova numa outra posição, junto aos intérpretes das canções de protesto e a elite da MPB, exaltando os valores da cultura nacional, em confronto direto com a turma jovem do iê-iê-iê com suas guitarras elétricas – aquele símbolo máximo do imperialismo norte-americano, que tirava o sono da esquerda festiva. Então, como se não bastassem a repressão e a Divulgação
O ano é 1967, período em que o mundo passava por uma revolução de costumes e transformações em todas as formas de arte. Acima, Gilberto Gil canta Domingo no Parque; na outra imagem, Chico Buarque e MPB-4 cantam Roda Viva
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censura do Estado, os artistas ainda tinham que lidar com preconceitos, acusações e radicalismos estúpidos dentro do próprio ambiente. E tudo isso vinha à tona nos festivais de música, onde a hostilidade e a vaia do público universitário atingiam níveis que transcendiam a boçalidade. Foi num desses festivais que os artistas que inaugurariam o tropicalismo, no final da década, foram apresentados ao grande público. Com a proposta de universalizar a música brasileira, misturando o erudito com o popular, o arcaico com o moderno, e acrescentando à receita elementos do que havia de mais ousado na vanguarda mundial, artistas como o maestro Rogério Duprat, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e Os Mutantes, entre outros, bem ou mal, promoveram a quebra de muitos paradigmas na música popular brasileira, além de dialogarem com as mais diversas formas de expressão artística em destaque naquela época. O Teatro Oficina, de José Celso Martinez Corrêa, e sua montagem de O Rei da Vela, os filmes Terra em Transe, de Glauber Rocha, e O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, as instalações do artista plástico Hélio Oiticica, tudo isso estabelecia conexões com o tal do tropicalismo que, mais que um movimento
A baiana Gal Costa no auge da contracultura, durante apresentação de programa de TV que destacava as novidades na música brasileira
musical, foi um conceito. Uma forma diferente de entender e de se relacionar com a cultura brasileira, através de um discurso libertário. Nesse pique, os tropicalistas alcançaram grande projeção, estrelaram um programa de TV de vida curta, o Divino Maravilhoso, e passaram a ser bastante visados pelo regime militar. “O Brasil naquele tempo, sob a sombra de uma ditadura, precisava que a juventude tivesse material mental pra se excitar”, disse o cantor e compositor baiano Tom Zé, que segue com sua explicação: “Numa ditadura, dar para a fome da cabeça da juventude elementos para eles estarem na excitação de pensar, na excitação de compreender seu tempo, para fazer a antítese dele, tudo isso era considerado crime!”.
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Na segunda metade da década de 1960 e até meados dos anos 70, a ordem era inventar. No período da ditadura, a produção brasileira de artes plásticas refletiu não apenas o inconformismo em relação ao autoritarismo do governo, mas também captou as mudanças artísticas pelas quais o mundo atravessava. Fazendo justiça a sua própria tradição no país, esse cenário se notabilizou pela constante busca de promover rupturas estéticas e comportamentais. Com a marcação cerrada da censura, as interdições e até mesmo o exílio de boa parte da crítica, os artistas perceberam que era necessário
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descobrir novas maneiras de expressar seu inconformismo e, principalmente, perceberam que tinham que estabelecer um novo território de ocupação, além dos limites do circuito tradicional de galerias e museus. Desse modo, as artes visuais assumiram um caminho crítico e reflexivo de se manifestar naquele momento histórico, na forma de um questionamento de seus próprios meios de criação. Assim, performances, cartazes, pichações e até produtos industrializados modificados passaram a fazer parte do catálogo das artes no país. Para esse pessoal o que importava era o conceito, a leitura que se fazia da realidade. Como exemplo dessa nova abordagem, os especialistas costumam citar a intervenção do artista Cildo Meireles, que carimbou em cédulas a pergunta: “Quem matou Herzog?”. Com isso, não apenas furou o bloqueio da censura, como levou sua provocação ao público em geral. Mesmo com o acirramento da repressão nos anos 1970, a turma da vanguarda continuou inventando moda, estabelecendo novos padrões e diferentes formas de fazer suas traquinagens. Já no cenário brasileiro das artes cênicas, havia nas trincheiras pelo menos duas grandes forças expressivas de escolas distintas, mas
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igualmente empenhadas em representar textos que refletissem a realidade nacional. O Arena, mais clássico, e o Oficina, mais identificado com a vanguarda de seu tempo. Apesar de muito perseguido pelos órgãos de censura, o teatro cumpriu, na medida do possível, seu papel de resistência cultural à repressão. Em 1963, um ano antes do golpe, o dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) escreveu O Filho do Cão, peça que ficou em cartaz até fins de março de 1964, quando as mudanças políticas e o clima instável no país forçaram um recesso.
Quando 1968 chegou, o que já era péssimo virou um pesadelo sem precedentes na história do país: bateu o AI-5
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Mas tudo bem, o Arena logo retomou suas atividades com uma montagem de O Tartufo, de Molière. Frente à nova realidade política do país, na sequência o grupo apresentou o espetáculo Arena Conta Zumbi, valendose, pela primeira vez no Brasil, do sistema do “coringa”, com todos os atores se revezando em todos os papéis. No mesmo esquema, surgiu a montagem Arena Conta Tiradentes. Foi quando a porca torceu o rabo, e em dezembro de 1968 os militares baixaram o AI-5. A partir desse momento a situação ficou tão difícil, que ninguém podia colocar uma vírgula sem ter de submeter o texto à avalição dos censores. A estatística impressiona: ao longo dos anos 1970 mais de 450 peças teatrais foram proibidas, e um número bem maior teve que ser modificado pela ação de cortes dos Evandro Teixeira
Registro perfeito do clima que se instalou no Brasil após o golpe militar que durou 21 anos
Divulgação / Instituto Augusto Boal Peça encenada no Teatro de Arena, espaço que se tornou foco permanente de protesto e desafio ao regime que deu todo poder aos censores
censores. A maioria dessas interdições se deu nos primeiro anos da década. Entre as peças proibidas durante esse período estavam Quantos Olhos Tinha Seu Último Casinho?, de Fernando Melo, a primeira peça a ser interditada pelo decreto-lei 1.077; A Falecida, de Nelson Rodrigues; Navalha na Carne, de Plínio Marcos; Basta e Eles Não Usam Black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, entre muitas outras. Em março de 1971, logo depois da interdição de sua peça O Comportamento do Homem, da Mulher e do Etc., o dramaturgo Augusto Boal (1931-2009) foi preso e torturado em São Paulo. Durante a sessão de agressões, o autor foi informado que estava ali devido ao fato de ter declarado, em suas peças, que existia tortura no Brasil. O artista foi processado e
depois absolvido pela 2ª Auditoria. Após o episódio, Boal resolveu se exilar, retornando ao Brasil somente em 1979. Após diversas proibições, em meados de 1974 as forças repressivas resolveram acabar definitivamente com o grupo Oficina, com a polícia invadindo o teatro e levando preso o mentor da companhia, José Celso Martinez Corrêa. Após a liberação, José Celso foi morar em Portugal.
MARGINÁLIA No final dos anos 1960 e, principalmente, a partir do momento em que foi instaurado o Ato Institucional nº 5, muitos perceberam que havia chegado ao fim toda e qualquer ilusão. Definitivamente, não havia mais espaço para poesia. O
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clima era mesmo de terror. Então, nada mais coerente que o cinema produzido na época refletisse esse estado de espírito. Ficou claro que havia chegado o momento de uma ruptura. Talvez o último resquício de vigor do Cinema Novo tenha sido o filme Terra em Transe, realizado por Glauber Rocha em 1967. Em 1968, essa escola já começava a mostrar sinais de que tinha perdido o gume. Para os jovens cineastas, a certeza era de que o movimento – que surgiu na década anterior com o slogan “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” – tinha se aburguesado, se aproximado demais do cinemão. Era preciso então que esse pessoal novo, recém-saído das escolas de cinema, mostrasse a cara, para estabelecer a divergência. Uma virada de geração. “Acho que o embrião do Cinema Marginal surgiu nos corredores da Escola Superior de Cinema São Luiz e nas mesas do vizinho Bar Riviera. Jairo Ferreira, Sganzerla, Candeias, Tonacci e tantos outros, que não eram alunos, frequentavam habitualmente os dois endereços. Foi desses encontros que eu ouvi, pela primeira vez, que o país daquele jeito só merecia filmes péssimos e mal comportados”, disse o cineasta Carlos Reichenbach (1945-2012), um dos mais destacados representantes dessa geração.
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Na busca por caminhos para representar o momento do país após o golpe militar, a arte se valeu do experimentalismo. Ao lado, cena do filme O Bandido da Luz Vermelha
O marco inicial do chamado Cinema Marginal foi o filme A Margem, rodado por Ozualdo Candeias em 1967. Produzido na Boca do Lixo, o filme é uma parábola surrealista sobre a miséria às margens do rio Tietê. “Carlos Richenbach, Rogério Sganzerla, Antônio Lima, João Callegaro, Jairo Ferreira e alguns outros viram em A Margem e nos filmes do Mojica uma saída para a estagnação estética e criativa do cinema brasileiro”, destaca o jornalista André Barcinski, em Maldito, biografia do cineasta José Mojica Marins. Situada no bairro paulista de Santa Ifigênia, a Boca do Lixo se tornou a partir daquele momento a meca do novo cinema experimental brasileiro. O local foi assim batizado pela crônica policial por causa das prostitutas e dos trombadinhas que frequentavam a região. Mas, a partir de 1968, a Boca também passou a ser
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relacionada ao filme síntese daquele período: O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla (1946-2004). “Fiz um filme voluntariamente panfletário, poético, sensacionalista, selvagem, mal comportado, cinematográfico, sanguinário, pretensioso e revolucionário”, disse o cineasta, na época. “Os personagens desse filme mágico e cafajeste são sublimes e boçais. Acima de tudo, a estupidez e a boçalidade são dados políticos, revelando as leis secretas da alma e do corpo explorado, desesperado, servil, colonial e subdesenvolvido. Meus personagens são, todos eles, inutilmente boçais, aliás como 80% do cinema brasileiro; desde a estupidez trágica de Corisco à cretinice do ‘Boca de Ouro’, passando por Zé do Caixão e pelos atrasados pescadores de Barravento. Assim, o bandido da luz
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vermelha é um personagem político na medida em que é boçal, ineficaz, um rebelde importante, um recalcado infeliz que não consegue canalizar suas energias vitais”. A produção desse novo e anárquico cinema experimental, denominado pejorativamente de “udigrúdi” (termo inventado por Glauber Rocha como uma avacalhação em clara referência ao underground americano), gerou uma leva de filmes impactantes. Títulos como Hitler 3º Mundo, Jardim de Guerra, O Profeta da Fome e Orgia ou o Homem que Deu Cria, entre outros, mostram uma realidade que destoava completamente da imagem de paz e progresso forjada na fase do “milagre brasileiro”, durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici. A ilusão de crescimento econômico e de prosperidade custaria muito caro. Mas a conta, como hoje sabemos, só
Hélio Oiticica
Contestar o governo vigente era visto como subversão. Não por acaso, artistas adotaram a ideia de marginalidade para expressar repúdio ao sistema opressor
seria cobrada nas próximas décadas. O ufanismo tomava conta do país através de canções chapa-branca e em slogans do tipo “Brasil: Ame-o ou Deixe-o”. E nesta época, de fato, muitos tiveram que deixar o país. Amordaçada, a produção cultural entrava em colapso. Praticamente tudo que havia sido realizado pelo Cinema Marginal do período sofreu com a ação da censura federal. “Para mim, o Cinema Marginal acabou em 71, com as interdições de Orgia, de Trevisan, e República da Traição, de Ebert, sob a sombra tétrica do governo Médici”, sentenciou Carlos Richenbach.
Ao longo da década de 1970, uma das mais importantes trincheiras de resistência formadas contra a ditadura foi a chamada imprensa nanica, que era composta basicamente por revistas e jornais alternativos – publicações produzidas por grupos independentes ou ligados a movimentos políticos e sociais. Nesse contexto, um dos mais famosos era o tablóide O Pasquim, lançado em 1969, no Rio de Janeiro. Sua equipe de criação era composta por nomes como Millôr Fernandes,
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Paulo Francis, Tarso de Castro, Ferreira Gullar, Henfil, Ziraldo, Jaguar e Fortuna, entre outros. Com irreverência, atitude e uma linguagem coloquial que fazia a cabeça do público jovem, a publicação se tornou um sucesso, com vendas semanais de até 200 mil exemplares. Para se esquivar da censura os autores evitavam confronto direto com o regime, mas não deixavam de caprichar no humor negro para ironizar o “milagre econômico”. Em seu variado catálogo de publicações, a imprensa nanica apresentava diversas faces. Algumas publicações eram mais voltadas para a militância política, que era o caso de veículos como Opinião, Movimento e Repórter; outras mostravam um perfil literário e poético. Em 1976 a revista Veja constatou que três publicações independentes voltadas exclusivamente para ideias e literatura – a carioca Ficção, e as paulistas Escrita e Versus – “conseguem sobreviver exclusivamente da venda em bancas e livrarias, num conjunto de 50 mil exemplares vendidos a cada mês”. Versus era comandada por Marcos Faerman (19431999), um dos mais brilhantes repórteres e editores brasileiros, e tinha entre seus colaboradores Lívio Xavier, Abdias do Nascimento, Diana Bellessi, Augusto Boal, Hélio Goldsztein, Plínio Marcos e
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Julio Cortázar. No texto de apresentação de uma antologia de reportagens de Versus, o jornalista Omar L. de Barros Filho lembra que o editor-chefe, Marcos Faerman, costumava dizer que “Versus nascera sob o signo da tristeza provocada pela morte do jornalista Vladimir Herzog nos porões da ditadura”. Num outro estrato em termos de dimensão, mas com mesmo espírito, dezenas de pequenas publicações regionais – muitas feitas em mimeógrafos e vendidas de mão em mão em bares, praias e cinemas – disseminaram o trabalho de poetas e artistas gráficos de vários estados brasileiros, em títulos como Paralelo, Ovelha Negra, Bagaço, Cogumelo Atômico, Brasil Mulher etc.
Trabalhar com criação naqueles anos perversos de ditadura era fogo. Qualquer coisa que o censor considerasse inapropriado, de mau gosto, que ferisse os princípios ilibados da moral e dos bons costumes e, principalmente, que representasse algum tipo de ameaça à segurança nacional receberia reprovação imediata. Mas quem foram esses burocratas que decidiam o que era bom ou não para o público? “Eu trabalhava realmente com muito gosto. Me dedicava a fundo procurando desempenhar a minha Divulgação
Jornalista Marcos Faerman comandava jornal alternativo que segundo ele nascera da tristeza com a morte de Vladimir Herzog
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função com o máximo de responsabilidade e procurando sempre humanizar aquilo que estava fazendo”, relatou o censor Carlos Lúcio Menezes, ao escritor e pesquisador Wagner Homem. “Na hora em que me era dada uma missão para examinar ou censurar um espetáculo de televisão ou rádio, ou peça teatral, ou letra musical, eu procurava ver naquilo apenas uma obra de arte. E não procurava... ‘bom eu vou ver isso aqui, se tem alguma coisa que eu possa cortar’. Não! Eu não examinava assim. Procurava ver o que tinha de bonito ali dentro do trabalho. Então, eu sempre tive muito mais prazer no meu trabalho do que desprazer”. De fato, essas pessoas aparentavam ter muito prazer no que faziam. O desprazer ficou por conta dos pobres artistas que tiveram suas obras cortadas, mutiladas e muitas vezes impossibilitadas de chegarem ao público. Naquela época, para conseguir um emprego de censor federal no Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), não era necessário mais que um diploma superior. Qualquer um podia se candidatar. Primeiro, o camarada passava por um teste, que consistia em assistir a um filme ou ler um livro e depois emitir um parecer sobre os trechos que julgava dignos de proibição. Os autores dos pareceres mais
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satisfatórios tornavam-se censores oficiais e passavam a ser responsáveis pela escolha das músicas, filmes, peças de teatro, livros e programas televisivos que 90 milhões de brasileiros teriam ou não o direito de consumir. “Eu tive música proibida que falava em luz”, lembra o cantor e compositor paulistano Walter Franco. “Luz não podia. A palavra luz foi proibida. Imagina uma música ser censurada por conter a palavra ‘luz’? A palavra ‘feto’ foi proibida. Também não podia! Eles me chamavam lá pra prestar os depoimentos todos. Aí eu já ia preparado, chegava com tudo. Mas também eu era uma figura que causava um certo incômodo a eles, entende? Porque era cabeludo tinha aquela barba enorme... Era muito cabelo, muita barba, muito tudo.” Divulgação
Segundo conta André Barcinski em Maldito, a “Bíblia” dos censores era um manual de 26 páginas que continha as diretrizes para emissão de certificados de censura. O documento dizia que o objetivo da censura era “proteger a saúde mental e física do jovem” e listava várias “situações proibidas” que deveriam ser cortadas de qualquer obra. Exemplos: “vantagens auferidas pelo herói/heroína na prática de ações negativas”, “ausência de punição para o herói ou heroína que comete deslizes”, “elogios à atuação negativa de personagens centrais” e por aí segue o drama... Depois de decorar o manual, os censores iniciavam seu trabalho. “A censura de cinema era realizada por grupos de três ou quatro censores”, relata Barcinski. “Eles assistiam aos filmes em uma pequena sala. Quando viam alguma cena que julgavam inapropriada, apertavam uma campainha e o projecionista colava um pedaço de papel no rolo do filme, indicando a posição da cena. Depois da sessão, os técnicos reviam as cenas selecionadas e decidiam se a fita poderia ser exibida ou não. Na maioria das vezes os filmes eram liberados com cortes, mas em alguns casos o número de cortes O cantor e compositor Walter Franco teve música censurada porque usava palavras como “luz”e “feto”: burrice e violência juntas
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O avanço da repressão sufocava a produção de artistas, que eram censurados pelos motivos mais absurdos que se poderia imaginar exigidos era tão grande que não se justificava, na opinião dos censores, a liberação da fita”. Nos idos de 1972, a truculência dos agentes de repressão estava no auge. O cidadão nem precisava mais ser um “comunista” para ser enquadrado na rua, bastava um adolescente ostentar uma cabeleira vasta que já estava de bom tamanho. Nesse ano, houve no Rio de Janeiro um tremendo tumulto na porta de um cinema que exibia sem muito alarde um documentário de contracultura. A história toda foi relatada pelo jornalista e crítico musical Ezequiel Neves, na edição da Rolling Stone, de 16 de maio de 1972.
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“Durante uns dois meses, nos programas distribuídos nos cinemas da cadeia Severiano Ribeiro, havia um espaço ocupado pelo anúncio de Gimme Shelter, filme com os Rolling Stones, distribuído pela Fox. Interessada em divulgar o documentário, a direção da Rolling Stone entrou em contato com os dirigentes da Fox, sendo informada que o filme só entraria em cartaz no mês de junho. Em 10 de abril, de forma discreta, com publicidade mínima, o filme entrou em exibição no Cine Palácio, permanecendo em cartaz até o dia 16, um domingo. De repente vimos um carro-choque da polícia chegando e os gorilões no maior avanço de cassetetes por cima da multidão. A porta de vidro do cinema espatifouse e uma centena de gente ficou ferida pra valer”.
Em 1975, o Serviço Nacional de Teatro retornou seu Concurso de Dramaturgia, que havia sido suspenso desde 1969, quando a peça vencedora Papa Highirte (sobre os sonhos de poder de um ditador latino-americano deposto), do dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha (1936-1974), foi proibida pela censura. Na volta do concurso, o drama se repetiu. A peça Rasga Coração, também de Vianinha, venceu
O cerco aos nomes que despertavam ódio do regime era permanente. Produzir arte poderia ser algo muito perigoso, visto como ação subversiva para afrontar o governo Em cena, a banda britânica Rolling Stones cujo documentário sobre a contracultura causou confusão ao ser exibido no país
e... foi censurada. Nos anos seguintes outras peças de autoria de Vianinha, a exemplo de Moço em Estado de Sítio e A Longa Noite de Cristal, foram proibidas ou canceladas. Em 1979, quando o clima nacional estava relativamente mais ameno, montagens de Papa Highirte e Rasga Coração finalmente entraram em cartaz com grande sucesso. “Creio que [Rasga Coração] incomodava muito o então ministro da Justiça Armando Falcão por conter referências ao Partido Integralista, ao qual o ministro havia pertencido”, disse o diretor José Renato à revista Veja, de 16 de maio de 1979. Mas, em se tratando de censura nas artes cênicas, o ator e dramaturgo Plínio Marcos era campeão. Ele foi o autor mais perseguido pelos censores ao longo de toda a década de 1970, era o dramaturgo que mais incomodava a ditadura. Em 1968, na época em que trabalhou como ator na novela Beto Rockfeller, contracenando com Luís Gustavo, Plínio já
Ethan Russell
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Cartazes de peças de teatro que tratavam dos dramas do brasileiro comum, vítima de uma ditadura implacável com o direito à liberdade
era tido como inimigo pelos militares. Naquele mesmo ano ele foi detido pelo 2º Exército, sendo liberado apenas alguns dias depois, por interferência de Cassiano Gabus Mendes, diretor de novelas da TV Tupi. No ano seguinte, o artista foi preso novamente no Teatro Coliseu, em Santos, por se recusar a acatar a interdição do seu espetáculo Dois Perdidos
numa Noite Suja. Além dessas e outras prisões, foi detido para interrogatório em várias ocasiões. A convite dos editores de Versus, em dezembro de 1977, Plínio Marcos redigiu seu auto-retrato na publicação e não perdeu a chance de dar o seu recado: “Acham que eu me beneficio das perseguições da Censura. Que, se não fosse a Censura fazer marcação tipo ‘mãe de miss’ em cima de mim, eu nunca teria aparecido. Mas eu não sou malandro. Malandra é a agulha, que leva atrás e não perde a linha. E, para provar isso, sempre dou razão aos meus inimigos. Reconheço que sou um mau autor teatral. Que minhas peças são apenas um retrato da realidade brasileira. E lamento que, mesmo as que foram escritas há dezoito anos atrás, como Barrela, ou as que foram escritas há dez anos atrás, como Dois Perdidos numa Noite Suja, Homens de Papel, Navalha na Carne, Quando as Máquinas Param e outras não estejam superadas. Concordo com meus inimigos que elas sejam peças menores e lamento que não estejam superadas, porque esse fato apenas prova que, nesses anos todos, o Brasil não evoluiu socialmente”. No período final do regime militar, a imprensa, a cultura e os cidadãos foram gradualmente recuperando seus direitos à liberdade de expressão. Em meados de 1984,
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A convivência com a censura atravessa a vida brasileira, mesmo em períodos de governos democráticos: é preciso estar atento, sempre houve toda aquela comoção em torno das Diretas, com ampla adesão de todos os setores da classe artística e da cultura em geral, mas quando finalmente o país se libertou das garras dos militares, ganhou de presente José Sarney como primeiro presidente civil após 21 anos nas mãos dos generais. Como explicam vários estudos, a democracia foi restabelecida no país, mas ainda hoje o Brasil sofre os efeitos do que aconteceu em 1964. Como acertadamente ressaltou o músico Lívio Tragtemberg, a degradação do ensino público, que começou com o golpe militar, é algo que ainda hoje o cidadão comum sente as consequências: “Nosso sistema educacional está completamente falido, formando pessoas que não conseguem nem escrever, nem entender o que é dito, o que é escrito. Tudo ou quase tudo que o Brasil tem pra resolver agora, as coisas ruins que atrapalham a nossa vida, o nosso progresso, elas se originaram nesse golpe”.
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