Grito forte dos Palmares

Page 1

6 | GRACILIANO | Reportagem_

GRI TO FORTE DOS PALMARES

Texto_ LUÍS GUSTAVO MELO Ilustrações_ THIAGO OLI

Em meio ao processo de consolidação do tráfico de escravos no país, um concentrado movimento de luta popular constituído na Serra da Barriga fixou na memória nacional a imagem de um herói que se tornou ícone da causa negra no Brasil. A trajetória de Zumbi no secular conflito em Palmares permanece como um dos mais discutidos capítulos da historiografia brasileira

_Reportagem | GRACILIANO | 7 Na crônica de uma sociedade

dre Ferreira, autores do livro Três

ainda em formação no Brasil, o

Vezes Zumbi – A Construção de

episódio de resistência dos escra-

Um Herói Brasileiro, destacam, in-

vos contra o regime de opressão a

clusive, o quão perigoso é determi-

que eram submetidos cristalizou

nar primazias quando são aborda-

no imaginário a figura de um dos

dos processos históricos. E, neste

mais emblemáticos personagens da

caso em especial, as muitas lacu-

nossa história: Zumbi. Amplamen-

nas existentes na biografia do per-

te reconhecido como símbolo da

sonagem qualificam sua “história

luta pela igualdade racial no país,

de vida”, assim como parte dos re-

o líder negro, mais que qualquer

latos sobre os eventos ocorridos no

outro personagem histórico nacio-

mítico refúgio na Serra da Barriga,

nal, tem em sua trajetória de muitas

como um campo ainda em aberto.

batalhas no quilombo dos Palma-

Pouco se sabe, por exemplo, sobre

res uma intrigante aura de mistério

o cotidiano desses negros fugitivos

e controvérsias que suscita, ainda

durante os primeiros anos no Qui-

hoje, contínuos processos de in-

lombo dos Palmares, tal a escassez

vestigação da construção do mito.

de registros da época.

Em entrevista a nossa reporta-

Em artigo publicado na Revista

gem, os historiadores Jean Marcel

de História da Biblioteca Nacional,

Carvalho França e Ricardo Alexan-

o professor e historiador Flavio José Gomes Cabral assevera que fontes relativas a esse quilombo começaram a surgir com mais frequência somente a partir de 1670, quando


8 | GRACILIANO | Reportagem_

da mobilização de tropas organi-

TRÁFICO NEGREIRO

terem fracassado em seus esforços

multuada história das revoltas es-

deixaram de condicionar em grau

cravas brasileiras, a de Palmares

Introduzidos no Brasil na se-

considerável o processo histórico

ocupa lugar ímpar. Não foi apenas

gunda metade do século 16, a partir

brasileiro, em quase todos os seus

a primeira, mas a de maior enver-

de um fluxo contínuo de expedi-

aspectos mais importantes. No dia

gadura”, escreveu o jornalista e

ções que os capturavam na África,

em que forem resgatadas da grande

historiador gaúcho Décio Freitas

os negros, em pouco tempo, torna-

face oculta brasileira – face mais

(1922-2004) no clássico Palmares:

ram-se a mão de obra predominan-

oficiais portugueses. O que de fato

ampla e importante que a visível e

A Guerra dos Escravos, obra que

te no país. Conforme é mencionado

pode ser dado como certo é a razão

oficial –, as revoltas escravas pro-

forneceu bases para boa parte dos

no livro Três Vezes Zumbi, antes do

do quilombo ter causado, desde o

jetarão luz sobre um sem-número

estudos subsequentes relacionados

lucrativo comércio de escravos se

primeiro instante, inquietação e es-

de contradições históricas que de

ao tema e que serviu de norte para

estabelecer e os africanos ocupa-

panto às autoridades. Maior e mais

outro modo sempre permanecerão

o roteiro do filme Quilombo (1984),

rem maior número nos engenhos e

duradouro ajuntamento de escra-

incompreensíveis. Na imensa e tu-

do cineasta Cacá Diegues.

nos ainda incipientes núcleos urba-

zadas pelas autoridades coloniais para destruí-lo. O autor, contudo, também comenta a existência de alguns raros documentos relacionados a expedições ocorridas em meados de 1602, comandadas por

O QUILOMBO DOS PALMARES ERA UMA ESPÉCIE DE REINO AFRICANO NO NORDESTE BRASILEIRO

vos revoltosos da América, em mais

nos, a base da lavoura açucareira,

de cem anos de confrontos, Palma-

sustentáculo econômico do Brasil

res constituiu-se como um verda-

de então, já havia sido construída

deiro Estado, cujas dimensões atin-

com o trabalho dos índios, os cha-

giram proporções impressionantes

mados “negros da terra”.

a partir de 1630, durante a ocupa-

De acordo com os autores da

ção holandesa – período em que

obra, ainda que bastante impreci-

estendeu seus domínios pelas ribei-

sos, os números do comércio ne-

ras do Rio São Francisco, adentran-

greiro que aqui se estabeleceu ao

do o Agreste Meridional e a Mata

longo de mais de três séculos, são

Sul pernambucana, além dos limi-

ilustrativos desse processo de na-

tes do Cabo de Santo Agostinho.

turalização do africano no Brasil.

Como descrevem alguns pes-

“Estimava-se, no final do século 19,

quisadores, Palmares era como um

que o Brasil teria comprado, entre

reino africano no Nordeste brasi-

1550 e 1850, cerca de 50 milhões

leiro. Sob o comando do rei Ganga

de africanos. Os números encon-

Zumba e posteriormente de Zumbi,

trados pelos historiadores no de-

o exército quilombola frustrou o

correr do século 20 são bem mais

avanço de sucessivas campanhas

modestos: Pandiá Calógeras fala-

expedicionárias, astutamente uti-

va em 15 milhões de almas; Pedro

lizando o ambiente natural em que

Calmon e Caio Prado Júnior redu-

vivia como aliado, transformando

ziram esse número a um universo

a ecologia do lugar em arma de de-

que variava entre 5 e 8 milhões de

fesa e lançando mão de tradicio-

pessoas; nas três últimas décadas

nais táticas de combate comuns aos

do século 20, pesquisadores como

guerreiros centro-africanos. Foi as-

Kátia Mattoso e Manolo Florentino

sim até o derradeiro momento em

passaram a advogar números que

que encontrou seu ocaso com a im-

vão de 3 a 4 milhões de negros; os

placável ação das expedições co-

dados mais recentes falam em cerca

mandadas pelo bandeirante pau-

de 5 milhões. Independentemente

lista Domingos Jorge Velho.

das significativas variações, é certo

“Nenhuma categoria social lu-

que o Brasil foi, de longe, o maior

tou de forma mais veemente e con-

importador de escravos do conti-

sequente contra a escravidão que

nente americano e que, ao longo

a dos próprios escravos. Nem por

dos séculos 16, 17 e 18, entraram


10 | GRACILIANO | Reportagem_

_Reportagem | GRACILIANO | 11

pelos portos da colônia duas vezes

bastante expressiva, alguns docu-

mais escravos do que em todas as

mentos redigidos por visitantes

colônias inglesas do Caribe, o se-

estrangeiros descreveram o modo

gundo maior importador de negros

como viviam os cativos na colônia

do continente”, conclui os histo-

e a forma como eram tratados pelo

riadores.

cidadão livre, legando-nos, hoje,

NO BRASIL, EXISTIRAM ESCRAVOS DONOS DE ESCRAVOS. ALGO QUE NÃO OCORREU NAS AMÉRICAS

mente não conseguem pagar – obri-

versidade dos castigos a que os es-

beça aos pés, uma chaga aberta, e

gam-nos por vezes a fugir para os

cravos africanos eram submetidos:

os lugares poupados pelo chicote

matos e a viver aí pilhando tudo

“Quando os ditos brasileiros ou os

foram lacerados à faca. Terminado

o que encontram pela frente, vin-

negros cometem alguma falta, os

o castigo, um outro negro derramou

gando-se, de certo modo, dos tor-

portugueses ordenam que outros

sobre suas feridas um pote conten-

mentos que lhes foram impostos.

escravos os castiguem impiedosa-

do vinagre e sal. O infeliz, sem-

As cidades, ao menos no período

mente. Nenhum verdadeiro cris-

pre amarrado, contorcia-se de dor.

da noite, são tão inseguras quanto o

tão assiste a esse espetáculo sem

Tive, por mais que me chocasse, de

campo e, por mais severamente que

revoltar-se. Vi, certa feita, um ne-

presenciar a transformação de um

“Uma coisa importante que as

um panorama razoável da socie-

pesquisas recentes têm demons-

dade escravista daqueles tempos.

trado é que a escravidão, contra-

De acordo com tais depoimentos,

ditoriamente, e por causa do tráfi-

os “etíopes” podiam ser vistos a

se castiguem os que são apanhados,

gro faminto que, para encher a bar-

homem em carne de boi salgada e,

co, que era muito intenso, era um

todo momento em qualquer lugar,

a roubalheira não tem fim”.

riga, furtara dois pães de açúcar.

como se isso não bastasse, de ver

sistema de propriedade relativa-

efetivamente integrados ao cotidia-

Outro depoimento estrangei-

Seu senhor, ao saber do ocorrido,

derramarem sobre suas feridas pi-

mente democrático, no sentido de

no das casas, das roças e das cida-

ro, este de 1618, escrito pelo ho-

mandou amarrá-lo de bruços a uma

che derretido. O negro gritava de

que você não tinha apenas o rico

des. Por serem muitos, eram mo-

landês Dierick Ruiters, relata um

tábua e, em seguida, ordenou que

tocar o coração. Deixaram-no toda

proprietário, dono da fazenda de

tivo de inquietação, pois segundo

exemplo específico (mas não ne-

um negro o surrasse com chicote

uma noite, de joelhos, preso pelo

café ou dono do engenho de açú-

tais registros, perpetravam crimes e

cessariamente excepcional) da per-

de couro. Seu corpo ficou, da ca-

pescoço a um bloco, como um mí-

car, que tinha cinquenta, cem, du-

alimentavam temores de uma pos-

zentos escravos, e que era branco

sível revolta. Esse clima de tensão

que escravizava negros”, explica

é expresso no relato do cirurgião

o historiador João José Reis, pro-

francês Gabriel Dellon que, em

fessor titular do Departamento de

1676, dá como inevitável uma rea-

História da Universidade Federal

ção de revolta dos africanos naque-

da Bahia. A escravidão, nos conta

le ambiente extremamente hostil:

Reis, estava amplamente dissemi-

“O grande número de escravos

nada por todo o tecido social da

que há no país e a maneira cruel

colônia portuguesa e no posterior

como são tratados – não lhes sen-

Brasil independente. “Havia aque-

do dado o necessário para sobre-

le proprietário de um único escra-

viver e castigando-os excessiva-

vo, ou de dois, três... E muitos des-

mente pelas menores faltas – são

ses proprietários não eram brancos.

causa de constantes desordens,

Eram pardos, eram negros nascidos

tanto nos campos quanto nas ci-

no Brasil, e eram negros nascidos

dades do país. A maior parte des-

na própria África. Em geral, esses

ses cativos são negros trazidos de

nascidos na África, eram ex-escra-

Angola e da Guiné para trabalhar

vos, traficados para o Brasil, que

nas lavouras de cana e de tabaco.

aqui era escravo e, que de alguma

Vendidos como animais, são com-

forma, conseguiu alforria, pagando

prados às centenas pelos donos de

por ela. Uma vez liberto, prospe-

grandes propriedades, que os sub-

rava a ponto de comprar um, dois,

metem ao controle de um capataz –

três escravos. Eu e alguns outros

na maioria das vezes, pior do que o

pesquisadores, temos descoberto,

próprio senhor. Os que não têm ter-

inclusive, que existiram escravos

ras a cultivar deixam os seus cati-

que eram donos de escravos. O que

vos livres para trabalharem no que

coloca o Brasil numa categoria, em

quiserem, cobrando-lhes uma de-

se tratando de escravidão, única

terminada soma todo mês ou toda

nas Américas”.

semana. Os maus-tratos impostos

Nos meados do século de 17,

a uns e as altas somas que se exige

quando a população negra já era

dos outros – somas que frequente-

JOÃO JOSÉ REIS

Professor do Departamento de História da UFBA


_Reportagem | GRACILIANO | 13

sero animal, sem ter suas feridas

azorragues, rabos de tatus, corren-

dentes exemplos, é regular a escra-

tratadas. Fui testemunha ainda de

tes e palmatórias”.

vidão, é torná-la cristã, impedindo

ORIGEM DO QUILOMBO

Os abusos e humilhações sofri-

mares. Nem mesmo os soldados re-

dos pelos negros, como menciona-

munerados (quase todos portugue-

do no trecho de uma das cartas, re-

ses) resistiram por vezes à tentação

outras barbaridades praticadas por

O que talvez possa parecer es-

que senhores e escravos fossem

portugueses e espanhóis contra os

tranho, e um tanto quanto ques-

condenados à danação eterna: os

sultavam fatalmente em sucessivas

de ir viver a vida livre e farta dos

seus escravos”.

tionável para nós hoje em dia, é o

primeiros, por agirem de maneira

fugas. Considerados subumanos e

Palmares”, advoga o autor gaúcho

Desde o princípio, a exploração

modo que os jesuítas encontraram

cruel e injusta em relação aos seus

forçados a viver na imundície, na

em seu livro Palmares: A Guerra

e a violência infligida aos escra-

para regular a atividade escravo-

cativos, e estes, por morrerem na

miséria e sob a sombra de um brutal

dos Escravos.

vos africanos resultaram em ten-

crata dentro dos preceitos cristãos.

África sem conhecer o verdadeiro

regime de torturas, os escravos não

Vida livre e farta era tudo o que

sões e embates. Numa sociedade

Os historiadores Ricardo Alexan-

Deus. Daí a escravidão ser encara-

viam alternativa senão a de escapar

essa gente encontrava naquelas

colonial constituída por relações

dre e Jean Marcel esclarecem que a

da, pelos membros do clero, como

do cativeiro, aventurando-se pelas

terras férteis de massapê. Locali-

rígidas de mando e aplicação de

forma como a Igreja se manifestou

um modo de resgatar o africano do

matas do interior. Foi assim que

zado na região que compreende o

castigos corporais como forma de

diante desse sistema apenas refle-

seu paganismo; daí, igualmente, o

começaram a surgir e se organizar

atual estado de Alagoas, o famoso

controle social, não se poderia mes-

te uma posição relativamente clara

sem-número de prescrições ende-

em meio a um ambiente ecológico

Quilombo dos Palmares assim foi

mo esperar outra coisa. “É sempre

dos religiosos que, se contemplada

reçadas aos senhores para que dis-

complexo e até então inexplorado,

nomeado por conta da expressiva

bom lembrar que a escravidão no

à luz dos valores que circulavam

pensassem um tratamento cristão

os primeiros mocambos. Sujeitos

presença das palmeiras de ouricuri

Brasil durou mais de três séculos”,

nos séculos 16, 17 e 18, era bastante

aos seus cativos. Dito assim em

ao perigo de feras e possíveis en-

– plantas típicas do Nordeste brasi-

explica o historiador Jean Marcel

coerente com o seu tempo: “O seu

poucas palavras, desenvolveu-se

contros com nativos antropófagos,

leiro, das quais tudo se aproveita.

Carvalho. “Nenhuma estrutura so-

empenho, como podemos apreen-

então, entre os religiosos letrados

os fugitivos conseguiram vencer as

Situado a 120 quilômetros do li-

cial resiste tanto tempo com uma

der nos escritos de Vieira, Benci,

da colônia, um modo católico de

adversidades iniciais ao adquiri-

toral pernambucano, esse ajunta-

parcela da população atemorizada

Antonil e Ribeiro Rocha, para fi-

se conceber, tratar e regular a es-

rem um gradativo conhecimento

mento atraía muitos fugitivos de

e a outra controlada pelas chibatas,

carmos nuns poucos mas contun-

cravidão”.

da topografia da região.

engenhos e fazendas dos arredo-

Nesse processo de reconheci-

res de Serinhaém, Penedo, Porto

mento e adaptação, os africanos

Calvo, Recife e se constituía como

encontraram nas montanhas e flo-

uma espécie de federação de vários

restas de difícil acesso da região da

agrupamentos, com centenas de ca-

Serra da Barriga a proteção de que

sas e uma população de alguns mi-

precisavam. Rapidamente, dezenas

lhares de moradores – sendo, con-

de mocambos se espalharam nos

tudo, muito pouco provável, vale

vales e encostas. Um refúgio seguro

ressaltar, que em algum momento a

que, de acordo com a interpretação

localidade tenha abrigado os trinta

romântica e de coloração marxista

mil habitantes que alguns registros

do historiador Décio Freitas, logo

da época apontam.

converteu-se num foco insurrecio-

A história que se conta é de que

nal de luta contra o regime escravis-

o núcleo inicial do quilombo te-

ta, e asilo para todos os deserdados

ria sido composto por pouco mais

da sociedade.

de quarenta negros fugidos de um

“Nem só negros ou ex-escravos

engenho de açúcar da capitania de

viviam nos Palmares. Ainda que

Pernambuco, em meados de 1597.

em pequeno número, havia entre

A escolha daquela região na Serra

eles índios, mamelucos, mulatos e

da Barriga não foi aleatória e, para

brancos. Este fato sublinha o con-

alguns historiadores, tal decisão se

teúdo essencialmente social do

afigura num dos mais importantes

movimento palmarino. Desde o

traços político-militares da “expe-

início, Palmares se constituiu em

riência atlântica de Palmares”. Um

um asilo aberto a todos os perse-

exemplo disso está no próprio as-

guidos e deserdados da sociedade

pecto da construção do quilombo,

colonial. Mais tarde, soldados das

que traduz para a realidade em que

expedições desertariam para Pal-

viveram esses povos aqui no Brasil,


14 | GRACILIANO | Reportagem_

a tradição dos negros centro-africa-

te deles tinha grande penetração

tavam ou sequestravam escravos.

Diante de uma aldeia atacada, refu-

ainda que os mocambos contavam

nos do século 17 que, quando em

e uma eficaz comunicação com as

De Palmares, saíam guerrilhas que

giavam-se em outras próximas. Al-

com criações e plantações capazes

conflito, tinham por hábito cons-

áreas urbanas. Segundo João José

espalhavam medo e insegurança.

gumas delas eram utilizadas como

de sustentar as cerca de mil famí-

truir fortificações (paliçadas cer-

Reis, muitos desses ajuntamentos

Daí as diversas tentativas portu-

espaços de preparação para os com-

lias que habitavam o lugar e que “os

cadas por armadilhas), em regiões

mantinham redes de apoio e de in-

guesas e holandesas de acabar com

bates, onde também produziam ar-

negros viviam ali do mesmo modo

íngremes.

que viviam em Angola”.

teresses que envolviam escravos,

aquele temido foco de desordem.

mamentos e armadilhas devido ao

No livro Palmares: Escravidão e

negros livres e mesmo brancos, de

Foi por essa época que surgiram

estado permanente de guerra e de

Liberdade no Atlântico Sul, o his-

quem recebiam informações sobre

os primeiros escritos holandeses a

perseguições.

toriador Flávio dos Santos Gomes

movimentos de tropas e outros as-

relatar com mais atenção a existên-

Muito do que os colonizadores

1645 a expedição do capitão Jan

chama atenção para esse recurso

suntos estratégicos.

cia desse entrave aos seus planos

holandeses em ataque a Palmares

Blaer atingiu alguns mocambos na

de domínio.

tomaram conhecimento de ante-

região palmarina, os holandeses

No ano seguinte, houve outra campanha militar. “Quando em

extremamente difundido nos qui-

Essa rede de acordos firmada

lombos do Brasil colonial. Segundo

pelos habitantes do quilombo com

Os documentos holandeses que

mão – no que se refere à geografia

já estavam no Brasil havia quinze

o autor, as montanhas representa-

outros grupos sociais também lo-

narram os assaltos perpetrados por

da região, a configuração e dispo-

anos”, observa Rômulo Xavier. “A

vam verdadeiros “santuários” para

grou êxito no que se refere a sua

estes escravos fugitivos nominam-

sição dos mocambos, o número de

chegada aos ‘domínios dos quilom-

as populações centro-africanas em

economia de base agrícola. Esta,

nos de “bosnegers” (negros da

habitantes – se deve ao envio de

bolas’ deixou-os impressionados

fuga, e em Palmares o mesmo espí-

como hoje verificam os estudiosos,

mata) e, de acordo com o pesquisa-

espiões. Com a ajuda de infiltrados

com as roças de mandioca e fei-

rito se fez presente. “Não apenas no

não era destinada apenas à subsis-

dor Rômulo Xavier do Nascimento,

jão, sem contar as armadilhas dis-

imaginário africano de sua popula-

tência de sua crescente população.

não é improvável que muitos deles

postas pelo caminho. Encontraram

ção, mas concretamente no cotidia-

Com os excedentes, os quilombolas

tenham escapado para o Quilombo

e destruíram o que julgavam ser o

no dos conflitos pela manutenção

realizavam trocas mercantis com

dos Palmares. “Uma vez ganhando

daqueles redutos, essa noção com

moradores e lavradores das vilas

as matas, os bosnegers não tarda-

certeza difundiu-se por toda a po-

próximas. Desse modo, produtos

riam a ocupar as várzeas através

pulação, mesmo entre aqueles de

como farinha, vinho de palma e

de ataques-surpresa aos engenhos e

procedências outras. Não se trata

manteiga eram trocados por ar-

casas de moradores do interior. Em

de um simples traço cultural carre-

mas de fogo, pólvora, ferramentas

Pernambuco, desde fins do século

gado ou imitado na América, mas

e o que mais eles precisassem nos

16, as fugas de escravos já causa-

quilombolas e as sucessivas expe-

de uma escolha consciente por uma

mocambos.

vam dores de cabeça ao poder lo-

dições que invadiram Palmares, já

DO QUILOMBO DOS PALMARES, SAÍAM GUERRILHAS QUE ESPALHAVAM MEDO E INSEGURANÇA NO BRASIL COLÔNIA

‘Palmares Novo’. Mas outros palmares haveriam de surgir e desaparecer até sua destruição definitiva em 1694”, conclui o historiador. Não é possível precisar o número de combates ocorridos entre os

estratégia de sobrevivência adap-

Mais até do que no aumento

cal. Com a conquista holandesa, em

tada àquela nova situação dos ne-

das fugas e da ocupação de terras

1630, esse problema apenas muda-

como o mulato Bartolomeu Dias,

que muitas dessas investidas não foram oficialmente documentadas.

gros africanos, e que muito nos diz

férteis, era nessas articulações es-

va de mãos”, conclui Xavier.

foi organizada em 1644 a primei-

Alguns estudiosos, porém, defen-

a respeito de seu passado e suas

tratégicas e mercantis de Palma-

No auge do confronto com as

ra expedição holandesa à cidade

dem a ideia de que o quilombo te-

experiências atlânticas”.

res que se encontravam as maio-

expedições holandesas, o quilom-

principal do quilombo que, sob o

ria suportado ataques de sessenta

res preocupações das autoridades

bo contava com duas povoações

comando do capitão Roloux Baro,

e seis expedições coloniais. Com

CONFLITOS E GUERRILHAS

coloniais – já que ali se estruturava

de grande destaque, tendo a maior

atacou a fortaleza de Ganga Zumba,

o fim da ocupação holandesa em

A partir do momento em que

uma ampla rede social clandestina

quase o dobro de casas que a menor.

com um exército de índios tapuias

1654, Palmares continuou a desa-

se deu a ocupação holandesa no

que, além do comércio, estabelecia

Na mais importante delas, mencio-

vindo do Recife.

fiar o poder institucionalizado da

Nordeste brasileiro, em 1630, o qui-

um eficiente sistema de troca de

nada nos documentos da época

Em carta à administração ho-

lombo ampliou consideravelmente

interesses e informações em torno

como “cidade real”, vivia Ganga

landesa, Baro conta que alcançou a

seus domínios no vasto verde da

dos quilombos, das senzalas, das

Zumba, o monarca a quem todos

região com o intuito de dar comba-

então capitania de Pernambuco. O

vilas e dos engenhos da região.

colônia, que voltou às mãos dos portugueses.

obedeciam. Conhecida por seus ha-

te ao “pequeno Palmares”, quando

O GUERREIRO ZUMBI

crescente e organizado contingente

Essa prodigiosa capacidade de

bitantes como Macaco, esta “cida-

se surpreendeu diante do “grande

É neste período imediatamente

de negros em Palmares causava um

interação com outros segmentos so-

de real” que aparece nas cartas dos

Palmares”. Segundo o relato, após

posterior à derrocada batava que,

bocado de aborrecimentos às auto-

ciais impressionava os colonizado-

colonizadores era o centro político

intensa batalha, restou viva uma

acredita-se, tenha nascido o len-

ridades da colônia, que ficavam a

res e atormentava-os quase tanto

e administrativo do reino fundado

centena de quilombolas, e dentre os

dário Zumbi. Com a existência de

dar voltas em seus gabinetes, gas-

quanto os constantes assaltos nas

na Serra da Barriga. Esparsamente

pouco mais de trinta rebeldes cap-

pouquíssimos documentos contem-

tando o assoalho. Ao contrário do

estradas e os ataques a povoados e

dispostas nas serras, as povoações

turados, o holandês destaca a pre-

porâneos relacionados a ele – que

que se imagina, os quilombos não

fazendas, onde esses negros insur-

quilombolas buscavam proteção

sença de “sete tupis” e uns tantos

o citam sem revelar informações

eram redutos tão isolados. Boa par-

gentes roubavam dinheiro e recru-

empregando estratégias de defesa.

mulatos. O expedicionário reporta

mais profundas –, sua real origem


_Reportagem | GRACILIANO | 17

permanece uma incógnita. A bem

das tropas coloniais. E foi durante

da verdade, muito pouco pode ser

sua atuação como líder do exército

seguramente confirmado a respeito

de Ganga Zumba, que as autorida-

do suposto sobrinho do rei Ganga

des luso-brasileiras intensificaram

Zumba. Ao longo dos séculos, dife-

o cerco a Palmares. Com a expulsão

rentes interpretações e comentários

dos holandeses, foi o colonizador

sobre sua participação nos eventos

André Rocha quem primeiro en-

de Palmares surgiram, foram supe-

frentou o quilombo. No comando

radas e posteriormente reformula-

de cerca de seiscentos homens, nes-

das por sucessivas gerações de his-

se empreendimento o português foi

toriadores e homens de letras.

responsável pela prisão de duzen-

A REAL ORIGEM DE ZUMBI É UMA INCÓGNITA. HISTORIADORES DIVERGEM SOBRE SUA TRAJETÓRIA

Zumbi arregimentou outros chefes

negro com promessas e privilégios

ataque a Palmares, refugiando-se

quilombolas descontentes e tomou

mostraram-se infrutíferas. O qui-

na serra Dois Irmãos. Àquela altu-

para si o posto de governante de

lombo começou a desmantelar-se

ra, o herói já contava com 39 anos

toda a federação de mocambos de

em 1694, em decorrência de uma

de idade e há pelo menos 24 vivia

Palmares. Ganga Zumba, segundo

série de ataques perpetrados pelo

a exasperante rotina de lutas. Es-

nos conta a história, foi morto por

bandeirante Domingos Jorge Velho,

tava cansado e ferido, mas resistiu

envenenamento.

em associação com um batalhão da

por mais um ano em seu novo re-

No decorrer dos últimos anos

capitania de Pernambuco. Por mui-

fúgio, até ser finalmente encontra-

de resistência do quilombo, as au-

to tempo acreditou-se que Zumbi

do e morto pelas forças repressivas

toridades tentaram de todas as for-

teria morrido na batalha que resul-

do comandante André Furtado. O

mas entrar em acordo com o novo

tou na destruição de Palmares. A

cerco só logrou êxito por conta da

Uma construção histórica hoje

tos negros – número considerado

soberano de Palmares. Existe, in-

lenda do valoroso guerreiro, que

colaboração de um mulato traidor

muito conhecida e reiterada por di-

baixo, se levada em consideração

clusive, a evidência de uma carta

prefere morrer saltando de um pre-

conhecido por Antônio Soares, que

versos pesquisadores e estudiosos

a existência das “quase 20 mil al-

atribuída ao rei de Portugal Pedro

cipício a ser subjugado pelos ini-

revelou a localização do esconderi-

surgiu com a publicação de Palma-

mas que ali viviam”. No relatório

II, na qual é proposto um novo

migos, atravessou séculos.

jo de Zumbi em troca de proteção.

res: A Guerra dos Escravos, obra na

da ação, contudo, o autor garante

acordo de paz com Zumbi. Todas

A história contada atualmente é

Em seu livro Zumbi, o historia-

qual o autor Décio Freitas forja uma

que o resultado da missão foi su-

as tentativas de dissuadir o líder

de que ele teria escapado ao último

dor carioca Joel Rufino dos Santos

história de infância para Zumbi.

ficiente para sabotar o ânimo dos

Nela, o líder negro teria nascido

rebeldes sobreviventes.

livre em Palmares no ano de 1655

Com essa investida pioneira,

e, durante uma investida colonial

vieram dezenas de outras tentati-

contra o quilombo, fora capturado

vas de destruir o quilombo, mas o

ainda recém-nascido pelo expedi-

que resultou disso tudo foi um sis-

cionário Brás da Rocha. Baseado

temático rechaçar de tropas e solda-

em supostas cartas – registros os

dos portugueses. Mesmo perdendo

quais nenhum outro historiador

batalhas, o poder colonial mostra-

viu até hoje –, Freitas conta que

va-se surpreendentemente empe-

Zumbi foi levado quando bebê

nhado. Em 1674, durante o man-

para a vila de Porto Calvo, onde

dato do governador de Pernambuco

foi criado pelo padre Antônio de

D. Pedro de Almeida, campanhas

Melo, que o batizou com o nome

militares foram articuladas com in-

de Francisco e lhe ensinou latim e

tensidade redobrada. Os combates,

português. Por volta de 1670, quan-

segundo nos contam os registros,

do tinha quinze anos de idade, o

foram acirrados, havendo baixas

então coroinha fugiu para Palmares

em ambos os lados. Em um des-

e depois de alguns anos, tornou-

ses confrontos, Zumbi foi ferido,

-se um importante comandante do

mas conseguiu escapar.

exército do Cerco Real do Macaco.

Após quatro anos de confronto

Independentemente das ressal-

durante seu governo, Pedro de Al-

vas que se faça a esta ou qualquer

meida enviou ao quilombo um re-

outra reconstituição biográfica do

presentante de suas forças expedi-

personagem, o fato é que o Zum-

cionárias para oferecer um tratado

bi que surge nas diferentes cons-

de paz a Ganga Zumba que, prova-

truções históricas apresentadas ao

velmente abalado com as sucessi-

longo do tempo está sempre asso-

vas batalhas e baixas de seu efe-

ciado à imagem do bravo guerreiro

tivo, aceitou o acordo. Indignado

quilombola que resistiu até quando

com a postura submissa assumida

foi possível às inúmeras investidas

pelo líder da Cerca Real do Macaco,


18 | GRACILIANO | Reportagem_

_Reportagem | GRACILIANO | 19

assim reconstitui o episódio da morte do líder quilombola: “Em Novembro de 1695, por azar, um dos homens de Zumbi foi emboscado perto de Penedo. Ele foi preso e estava para ser enviado ao Recife. No caminho, a guarda encontrou com o exército de André Furtado, que o sequestrou e torturou a fim de indicar o esconderijo de Zumbi. Nada conseguiu até que mudou de tática: a garantia de vida e liberdade se cooperasse. Zumbi confiava em Soares, e quando este lhe meteu a faca na barriga se preparava para um abraço. Seis guerrilheiros apenas estavam com ele naquele momento; cinco foram mortos imediatamente pelos homens de André Furtado. Zumbi, ainda que ferido, matou um e feriu vários, vindo a falecer por volta das cinco horas da manhã de 20 de Novembro de 1695”. A tomada de Palmares e o posterior assassinato de Zumbi não puseram um fim em definitivo nos ajuntamentos de revoltosos. Remanescentes do antigo quilombo ainda resistiram por mais algum tempo sob o comando do guerreiro Camoanga. E mesmo décadas após os eventos finais na Serra da Barriga, alguns mocambos povoaram as serras daquela região. Com a diferença de que, a partir de então, esses redutos se constituíram de forma mais dispersa e seus habitantes resignadamente perceberam que qualquer tentativa de reorganização de um novo Palmares resultaria em mais sangue e destruição. Muitos negros do quilombo seguiram para áreas mais remotas do interior, outros fugiram para a capitania da Paraíba, formando outros mocambos. Na capitania de Pernambuco, até meados de 1757, chegavam notícias de novos quilombos estabelecidos nas mesmas regiões serranas onde, em tempos passados, aconteceu o maior foco de resistência negra das Américas. ×


20 | GRACILIANO | Reportagem_

_Reportagem | GRACILIANO | 21


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.