A canção permanece a mesma

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REPORTAGEM

Da Bossa Nova à Jovem Guarda, do Tropicalismo ao fenômeno dos cantores românticos nos anos 1970, a produção musical brasileira no período da ditadura militar refletiu a realidade e os anseios de toda uma geração que cresceu sob a sombra de um regime autoritário que negava o direito à livre expressão. Nas próximas páginas um breve relato da movimentação cultural na música popular e a influência que essas obras exercem ainda hoje TEXTO: LUÍS

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GUSTAVO MELO

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Evandro Teixeira

A CANÇÃO PERMANECE A MESMA


Divulgação Ao enquadrar na mesma cena Os Mutantes, Jorge Ben Jor e os baianos Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa, a imagem sintetiza a diversidade musical que marcou a paleta de novas sonoridades forjada pelo movimento tropicalista

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izem que se você lembra dos anos 60, é porque provavelmente não esteve lá. Isso faz sentido. Geralmente as gerações subsequentes tendem a romantizar acontecimentos e situações de época nas quais não viveram, idealizando algo de fabuloso e heroico, naquele momento em particular. E a década de 1960, de fato, exerce grande fascínio até hoje. Talvez por ter sido um período no qual ocorreram algumas mudanças significativas tanto em níveis culturais como comportamentais. Mas, no meio disso tudo, havia também muita dor, muita tragédia e sofrimento envolvidos. No contexto político e social, um turbilhão de coisas surgia a cada instante, tudo ao mesmo tempo, e a impressão

que se tinha é de que o mundo estava prestes a explodir. E vai ver estava mesmo. Aqui, desde os primeiros anos da década o país vivia sob o jugo de uma ditadura, e, culturalmente falando, permanecíamos à margem das revoluções estéticas e comportamentais que aconteciam no mundo. O Brasil dos anos 60 era um país muito atrasado, e um lugar muito, mas muito chato para quem não compartilhava do espírito nacionalista do pessoal universitário de esquerda. No contexto do que rolava nas artes, especialmente na música, o maniqueísmo que assolava a nação chegava ao ponto de praticamente obrigar o público a optar entre a ortodoxia

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musical de uma Elis Regina (num dado momento houve até uma ridícula passeata contra a guitarra elétrica em São Paulo) e a “alienação” do pessoal da Jovem Guarda. Embora artistas como Roberto Carlos e Erasmo Carlos já fossem sucesso em compactos como Calhambeque e Festa de Arromba desde o comecinho da década, esse embate se pronunciou de modo incisivo em meados de 1965, quando essas duas tendências tão distintas no cenário da música popular brasileira passaram a atrair atenção de públicos igualmente distintos em programas televisivos como O Fino da Bossa, com a dupla Elis Regina e Jair Rodrigues, e o maior hit do período, o

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Duas vertentes distintas passaram a atrair a atenção do público brasileiro, que precisou optar entre a ortodoxia da turma da bossa e a “alienação” dos jovens roqueiros Elis Regina e Jair Rodrigues foram do Fino da Bossa às ruas numa controversa passeata contra a guitarra elétrica

Jovem Guarda, comandado pelo garotão “barra limpa” e Rei da Juventude, Roberto Carlos. Mais tarde, essa rixa se expandiria para os festivais de música televisionados pela Record. Em termos de popularidade a turma de Roberto e Erasmo ganhava de lavada do programa chique da “Pimentinha”. A história que se conta é de que tudo começou com a proibição da transmissão ao vivo dos jogos de futebol nas tardes de domingo. Para cobrir o espaço no horário, o então proprietário da TV Record, Paulo Machado de Carvalho, teve a ideia de contratar um pessoal jovem para agitar as tardes com a Festa de Arromba – nome inicial do programa que viria a se chamar Jovem Guarda. Com a estreia da atração, em setembro de 65, surgia um fenômeno pop sem precedentes na história da música no Brasil. Um movimento cultural com um apelo semelhante ao do que conjuntos como os Beach

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Boys e os Beatles (no início da carreira) faziam lá fora. Em dois anos o chamado iê-iê-iê conquistou a garotada brasileira com suas canções sobre carros e meninas em pleno período de ditadura no país, provocando ojeriza entre o publico universitário e os artistas considerados “sérios” da MPB. Influenciado pela sonoridade beat inglesa e muitas vezes recorrendo a versões de sucessos dos Beatles com letras pueris que arrepiavam os críticos mais ranhetas, o pessoal da Jovem Guarda, na verdade, estava pouco se importando com a reprovação da intelectualidade. O próprio Erasmo Carlos admitiu, anos mais tarde, que o negócio deles nunca foi contestar nada. “A gente falava das nossas coisas, mesmo. A gente não era universitário, não. Não sabia falar de outras coisas. Eram os nossos problemas, garotas, carros... Eu só tinha o ginásio, vinha da Zona Norte;

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a Wanderléa parece que não tinha nem ginásio. Que é que a gente podia dizer? E o grosso da nossa plateia era assim também, era feito a gente, identificava-se conosco”, diz Erasmo. “A gente veio do povo, mesmo. Olha, não me lembro de outro movimento que tenha vindo do povo e subido tão alto... Bom, não muito alto, mas alto, enfim. O tropicalismo também foi de baixo pra cima, mas a bossa nova... era coisa da Zona Sul, de universitário, era toda de cima pra baixo. Hoje eu vejo... tem críticos, ouvi outro dia na TV, que dizem que a Jovem Guarda não inovou nada musicalmente. Eu concordo com eles. Musicalmente, não, talvez não. Mas modificou em termos de comportamento”. A ERA DOS FESTIVAIS

Como já sabemos, a arena onde o maniqueísmo que tomava o país explodia com força,


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em paixões e sentimentos primitivos da mais pura hostilidade, era nos festivais de música que viraram moda a partir da segunda metade da década, quando a televisão brasileira passou a transmitir esses certames. A história desses eventos teve início em abril de 1965, com a primeira disputa promovida pela extinta TV Excelsior. Foi lá que Elis Regina defendeu a canção Arrastão, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, que levou o primeiro prêmio. Mas seguramente o mais memorável deles foi o III Festival da MPB, onde a música popular no país protagonizou uma virada de geração, com uma espécie de prévia do que viria a ser o tropicalismo. Transmitido pela TV Record, direto do auditório do Teatro Paramount, em São Paulo, o evento foi acompanhado pelos lares de todo o país no dia 21 de outubro de 1967. Foi nessa ocasião que o cantor Caetano Veloso,

acompanhado pela banda de rock Beat Boys (composta por argentinos residentes no Brasil) apresentou a canção Alegria Alegria, e Gilberto Gil com o grupo paulista Os Mutantes, interpretou sua Domingo no Parque. Nascia a Tropicália. O nome dado ao movimento veio de uma instalação homônima criada pelo artista plástico Hélio Oiticica, e logo a coisa foi crescendo e crescendo cada vez mais. Em sua coluna no jornal Última Hora, Nelson Motta lançou o termo que rapidinho se espalhou pela imprensa, pelas rádios e também na TV, denominando com incrível eficácia aquela novidade na música popular brasileira. O rótulo pegou pra valer, de repente todo mundo só falava nesse tal tropicalismo. Alguns dias depois da publicação do artigo de Nelson Motta, o poeta Torquato Neto escreveu um manifesto para o movimento. Em tom irônico, o texto intitulado Tropicalismo

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Roberto Carlos comandou a versão brasileira do iê-iê-iê num movimento que marcou parte de uma geração

Com canções sobre carros e garotas em plena ditadura, a Jovem Guarda foi recebida com ojeriza pelo público “intelectualizado” e pelos artistas considerados “sérios” da MPB

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Caetano Veloso em dois momentos representativos da música brasileira durante a ditadura. No alto, ao defender Alegria, Alegria, no III Festival da MPB, em 1967. Acima, no ano seguinte, em ação no programa Divino Maravilhoso

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para Principiantes, dizia: “...Tropicalismo. O que é? Assumir completamente tudo o que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem cogitar de cafonice ou mau gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela encerra, ainda desconhecido. Eis o que é”, definia o autor, lançando mais adiante a pergunta: “Como adorar Godard e Pierrot le Fou e não aceitar Superbacana? Como achar Fellini genial e não gostar do Zé do Caixão?” Pronto. Estava oficialmente lançado o movimento. Em julho de 1968 veio o disco Tropicália ou Panis et Circencis, obra que documenta aquele momento histórico na música brasileira, num esforço coletivo engendrado por Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, o grupo Os Mutantes e outros. Nas ruas a guerrilha urbana era massacrada pela repressão, o diretor José Celso Martinez incomodava os milicos com suas peças O Rei da Vela e Roda Viva, o cineasta Rogério Sganzerla apresentava seu explosivo O Bandido da Luz Vermelha. O disco dos tropicalistas refletia tudo isso com uma sonoridade rica, moderna e completamente livre de preconceitos. Mas para que esse caldeirão de referências e conceitos funcionasse, era preciso uma mão segura para orquestrar o “caos”, e o responsável por essa façanha


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foi um maestro e arranjador de formação erudita cheio de ideias estranhas que respondia pelo nome de Rogério Duprat. Sem ele, os baianos não teriam obtido o mesmo impacto. 1968 também ficou marcado como o ano em que a ditadura militar definitivamente mostrou a que veio. A tensão atingia o pico com a morte do estudante Edson Luís Lima Souto, durante uma manifestação no restaurante do Calabouço, no Rio de Janeiro, que terminou em conflito com a PM. A passeata dos 100 mil na capital carioca reuniu celebridades como o pessoal da Tropicália e os atores Othon Bastos e Paulo Autran, entre outros. A partir do dia 17 de julho, o governo proíbe qualquer tipo de manifestação de rua no país, e no dia 13 de dezembro os militares dão a cartada final, alterando radicalmente as regras do jogo com o AI-5, que estabeleceu censura aos meios de comunicação e iniciou um longo período de perseguição. Apesar desse climão, os tropicalistas ainda tiveram fôlego para apresentar na extinta TV Tupi o anárquico programa Divino Maravilhoso, dirigido por Antônio Abujamra (1932-2015), com a presença dos Mutantes, do cantor e compositor Tom Zé e mais uma constelação de artistas ligados ao Tropicalismo. “Qual a mensagem que a gente estava dando para todos que

A fotografia que estampa a capa do álbum Tropicália ou Panis et Circensis, lançado em 1968, tornou-se imagem emblemática do movimento musical que aproximou nomes como Tom Zé, Torquato Neto e o maestro Rogério Duprat

Verdadeiro caldeirão de conceitos artísticos e influências musicais, o disco dos tropicalistas apresentou uma sonoridade rica, moderna e completamente livre de preconceitos

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estivessem assistindo? ‘Sejam livres!’ E isso era extremamente subversivo na época!”, disse o ex-Mutantes Sérgio Dias ao cineasta Marcelo Machado, em depoimento para o documentário Tropicália. OS ANOS MÉDICI

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Após o AI-5, artistas como Chico Buarque de Hollanda, Caetano Veloso e Gilberto Gil passaram a ser constantemente vigiados pelos órgãos de repressão. Naquele momento, ninguém podia discutir política em público ou demonstrar qualquer contrariedade, pois sempre havia algum policial disfarçado

por perto, metido em jeans despojado e usando cabelo comprido, pronto para pegar subversivos. Após um show com os Mutantes no Rio de Janeiro, Gil e Caetano foram chamados para interrogatório e encarcerados por dois meses. Ao saírem da prisão, foram para a Bahia acertar um show de despedida antes de seguirem para o exílio em Londres. O show Barra 69, realizado nos dias 20 e 21 de julho daquele ano, no Teatro Castro Alves, representou uma virada de página na história da contracultura tupiniquim. Naqueles dias nebulosos os baianos se apresentaram acompanhados pelos Leif ’s, um grupo de rock de Salvador com

Os Mutantes durante apresentação ao lado de Gilberto Gil em mais um exemplo da alquimia sonora que misturou rock com música brasileira

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forte acento hendrixiniano. Os Leif’s eram liderados por um tal Pedro Aníbal de Oliveira Gomes, o Pepeu – jovem guitarrista que Gilberto Gil havia visto num programa de TV, ao lado do violonista Moraes Moreira. Também estava na plateia do show de despedida de Gil e Caetano uma garota de Niterói: Bernadete Dinorah, de apenas 17 anos, que mais tarde acabaria nacionalmente conhecida como Baby Consuelo. Nascia ali o grupo Os Novos Baianos. Com uma alquimia sonora que misturava música brasileira com rock, temperada por uma boa dose de irreverência, anarquia à moda baiana e uma opção de vida comunitária no maior estilo hippie, o grupo – formado pelo poeta Luiz Galvão, pelo violonista Moraes Moreira, pelo guitarrista Pepeu Gomes e pelos vocalistas Paulinho Boca de Cantor e Baby Consuelo – segurou a barra numa das fases mais cavernosas da ditadura militar. Galvão conta que nesse período de intensa marcação dos militares, eles foram presos sete vezes. “A primeira vez que fomos presos foi porque éramos cabeludos. Não houve repressão porque eles não entendiam o grupo. Então eles nos perseguiam pela imagem, essas coisas”, conta o letrista e mentor do grupo. Uma característica curiosa do cenário musical brasileiro, durante esses primeiros anos da década de 1970, foi o modo


Carlos Hyra Divulgação Mário Luiz Thompson

como o pessoal abraçou o hippismo que lá fora já era considerado coisa do passado. Quer dizer, o mundo em plena ressaca do “verão do amor” e o Brasil entrando atrasado nessa onda de cultura hippie. No rastro dessa tendência, uma série de festivais ao ar livre inspirados em Woodstock aconteceu ao longo dos anos 70. O primeiro deles foi o festival de Guarapari, realizado em 1971, no Espírito Santo. Contando com apresentações de grupos como os Novos Baianos e A Bolha, o evento ficou conhecido através da grande mídia por conta de um incidente ocorrido durante o show do soul man brazuca Toni Tornado, que se atirou do palco sobre a plateia, caindo em cima de uma jovem, que ficou paraplégica. Outros festivais importantes foram Dia da Criação (RJ), Cambé (PR), Kohoutek (SP) e o lendário Festival de Águas Claras (SP). O período também ficou marcado pelo surgimento de uma geração hoje bastante cultuada, porém pouco documentada, na história do rock brasileiro. Além dos Mutantes e dos Novos Baianos, formações como A Bolha, Som Nosso de Cada Dia, O Terço, Bixo da Seda, Paulo Bagunça e a Tropa Maldita e Veludo, entre outros, abriram picadas em meio a uma selva densa, quando ser roqueiro no Brasil era coisa de marginal. Em meados de 1972, a era de ouro dos festivais de música

Representantes do rock brasileiro com jeito e cara dos anos 70. De cima para baixo: O Som Nosso de Cada Dia, Paulo Bagunça e a Tropa Maldita e Veludo

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popular que agitaram a década anterior já havia acabado. Mas as emissoras de televisão continuavam apostando suas fichas no segmento. A TV Globo, que perdeu o melhor da festa nos anos 60, produziu certames como o Festival Internacional da Canção (FIC) que, em sua sétima edição, realizada em setembro de 1972, entrou para a história por conta da polêmica em torno de Cabeça, a música que revelou o cantor e compositor Walter Franco como um dos mais talentosos e inventivos artistas surgidos no pós-tropicalismo. Para defender sua hipnótica canção, Walter chegou ao palco diante daquele mundo de gente, com apenas um violão e um banquinho e começou a cantar acompanhado por gravações de vozes sobrepostas, criadas previamente por ele. A música consistia basicamente numa colagem alucinada de vozes que diziam: “O que é que tem nessa cabeça, irmão/ O que é que tem nessa cabeça ou não/ O que é que tem nessa cabeça saiba irmão/ O que é que tem nessa cabeça saiba ou não/ O que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode irmão/ O que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode ou não/ O que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode explodir irmão/ O que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode explodir ou não”. O Maracanazinho inteiro explodiu numa vaia

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ensurdecedora. Walter, claro, já esperava a recepção negativa. “Minha reação foi consciente, baseada no princípio da nãoviolência. O público é uma criança, sabe? Uma criança com um potencial incrível”, disse ele tempos depois. O fato é que a música atingiu em cheio o júri formado por Rogério Duprat, Décio Pignatari e Nara Leão, que deu ao cantor paulista o primeiro lugar. A organização do festival, por outro lado, não gostou da decisão e destituiu todo o júri, dando como vencedora a cantora Maria Alcina, que interpretou Fio Maravilha, música do Jorge Ben. Uma das mais impactantes e desafiadoras composições surgidas durante aquele período, Cabeça incomodou muito a censura federal e, em algumas ocasiões, levou seu autor a protagonizar episódios bizarros. “Eu lembro bem que num programa de rádio, o entrevistador, o radialista, me perguntou: ‘Walter, eu gostaria que você me explicasse essa história do Cabeça. Aí, eu disse: ‘Olha, eu gostaria que as pessoas tirassem as suas conclusões, usando a própria cabeça. Eu não gostaria de explicar nada. No instante seguinte, tiraram a emissora do ar. Me tiraram do ar porque simplesmente eu disse que as pessoas pensassem com a própria cabeça”, conta o artista. Em meio a pluralidade que a música brasileira apresentava

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O compositor Odair José incomodou os órgãos de censura com canções temáticas que questionavam tabus morais, sexuais e religiosos. Ao todo, ele teve 47 músicas cortadas ou proibidas durante a ditadura


nos anos 70, um estrato pouco estudado e que, principalmente naquele período, era visto com bastante preconceito foi o fenômeno de massa dos cantores românticos que despontaram a partir do rastro deixado pela Jovem Guarda. Extremamente populares, mas injustamente ignorados pela crítica e pelos arautos do “bom gosto”, músicos como Odair José eram responsáveis pelo alto faturamento das gravadoras multinacionais no país que conseguia, através deles, equilibrar as contas para continuar investindo no lançamento dos artistas considerados classe A, que geravam baixos retornos finaceiros. Na época do “milagre brasileiro”, o governo militar vendia a imagem de um país em progresso, mas tropeçava na incompetência administrativa e na inabilidade em lidar com os problemas sociais. Odair José não era exatamente um compositor de protesto, mas possuía a sensibilidade de captar a realidade ao seu redor e colocar isso em músicas que retratam o cotidiano das pessoas das camadas populares. Suas letras cutucavam tabus morais, sexuais, sociais e religiosos, o que muitas vezes incomodava os órgãos de censura. Odair e Chico Buarque foram, inclusive, dois dos compositores mais censurados na década

de 1970. Enquanto Chico era perseguido pelo conteúdo de crítica ao regime em suas letras, Odair José incomodava a turma da caneta vermelha por seus temas que atentavam contra a “moral e os bons costumes”. Foram ao todo 47 músicas cortadas, começando com Em Qualquer Lugar, que foi proibida na íntegra por ter um texto “descritivo de atitudes comportamentais

TODOS OS OLHOS

Walter Franco protagonizou episódios bizarros ao provocar os censores e ao despertar a ira do público durante apresentações em festivais alusivas ao desejo sexual”. Seu maior sucesso, Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula), foi proibida em todo o território nacional. Mesmo assim Odair a executava em shows, até ser intimado por um general. De acordo com o livro Eu Não Sou Cachorro, Não, de Paulo César de Araújo, Odair teria dito: “Poxa, general, pílula é uma coisa normal. O senhor permite a proposta gay do Secos & Molhados e não permite que eu faça uma proposta de homem. O senhor é gay?”

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Em 1973, quando o disco Todos os Olhos foi lançado, o compositor baiano Tom Zé deixou bem claro sua posição em relação ao estado de espírito da época. “Eu nunca estava de acordo com o regime, embora eu trabalhasse para a classe estudantil, me mantinha como cantor, porém eu sempre fazia canções reparando o que estava errado na maneira de combater a ditadura. Isto está lá presente o tempo todo no álbum”, disse o compositor. Em pleno governo Médici, no auge da truculência do governo militar, o álbum de Tom Zé foi uma das mais ousadas afrontas à ditadura e à estupidez da censura. Das letras incisivas e sempre bem sacadas, à capa – eleita em 2001, por um grupo formado por mais de 100 personalidades da música brasileira, como a segunda melhor capa da MPB de todos os tempos, atrás apenas do trabalho gráfico do primeiro disco dos Secos & Molhados –, o disco do tropicalista entrou para a história como mais uma prova do quanto os censores, na maior parte do tempo, não faziam a menor ideia do que examinavam. Foi assim com a própria apresentação gráfica do disco, que eles deixaram passar, sem nem de longe imaginar que aquela foto com fundo róseo

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e uma esfera verde no centro surgiu de uma tentativa de registrar a imagem de uma bolinha de gude repousada sobre uma parte muito particular do corpo humano. “O Décio Pignatari, você sabe, o poeta concreto, tinha uma agência de publicidade”, conta Tom Zé. “E ele disse: ‘De vez em quando todos os olhos se voltam pra mim, de lá do fundo’ [trecho da letra da música Todos os Olhos]. ‘Todos os olhos pra lá, todos os olhos pra cá, nesse disco era bom botar um cu na capa’. E eu que era um caipira, um tabaréu, tomei um susto, e fiquei com medo porque no tempo da ditadura tinha uma banda de moleque que cantou a palavra ‘seio’ no palco e foi presa quando terminou a apresentação.” “Agora você imagina botar um cu na capa de um disco, é claro que eu fiquei tremendo de medo, mas eu tinha que bancar o civilizado, o culto, né, ‘boa ideia, muito bem...’ Doido que ele desistisse, pois onde é que ele ia arranjar um cu para botar na capa de disco? Mas em São Paulo tem tudo, tem até cu para botar na capa de disco, um rapaz que trabalhava com ele chamou a namorada e ela topou.” O tal rapaz que trabalhava na agência publicitária de Décio Pignatari era o ainda muito jovem escritor Reinaldo Moraes, autor do cult Tanto Faz, publicado no início dos

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anos 1980, que ao receber do poeta concretista a missão de fazer a foto, levou a parceira para um quartinho de motel. Acontece que, na prática, a ideia não estava funcionando. A bola de gude não parava. Tentaram várias posições. A garota começou a ficar constrangida com a situação, mas quando o objeto finalmente parou no canto, Reinaldo se pôs a disparar dezenas de cliques, gastando todos os filmes. Na agência, examinaram as fotos, porém, apesar de algumas terem ficado muito boas, mesmo nas melhores, ficava evidente demais do que se tratava o material.

Diante do impasse, uma nova tentativa foi posta em prática, só que desta vez o rapaz teve outra ideia: como a moça tinha a boca carnuda e lábios rosados, viu que bastava colocar a bola de gude na boca da modelo. Os lábios contraídos formaram frisos que ficaram bem parecidos com o que eles pretendiam. “Acabaram desistindo, e botando uma boca com uma bola de gude dentro”, disse Tom Zé ao músico e apresentador Charles Gavin. “Mas agora não adianta contar, hoje eu estou contando isso, e vão dizer que é mentira porque a história do cu é muito mais interessante...”. Divulgação O irreverente Tom Zé protagonizoucapítulo pitoresco no auge do regime

No auge da truculência da ditadura, o álbum de Tom Zé foi considerado uma das mais ousadas afrontas ao governo militar

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Divulgação Para comemorar os 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o compositor Jards Macalé montou um espetáculo ousado, em 1973, no Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, e despertou a fúria do governo militar

UMA CHANCE À PAZ

Em 1973, a barra continuava pesadíssima, mas isso não impediu o compositor carioca Jards Macalé de idealizar e dirigir seu ousado espetáculo Banquete dos Mendigos, que reuniu artistas tão diversos quanto Luiz Melodia, Gal Costa, Raul Seixas, Edu Lobo, Jorge Mautner, Chico Buarque e o próprio Macalé, entre outros na comemoração dos 25 anos

da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Quem lembra esse evento histórico é o crítico musical Tárik de Souza: “Eu estava entre os mais de três mil espectadores sentados no chão do salão do segundo andar do Museu de Arte Moderna, do Rio de Janeiro, enquanto o prédio era cercado por soldados do Exército. Na noite de 10 de dezembro de 1973, uma constelação de artistas reunida pelos produtores Jards Macalé e Xico Chaves

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desafiava a espessa treva da ditadura tripulada pelo general Médici, durante as tensas três horas do espetáculo Direitos Humanos no Banquete dos Mendigos. O show foi associado às comemorações dos 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, promovidas pela ONU. A leitura de trechos do documento, pelo poeta Ivan Junqueira, funcionou como epígrafe candente do evento, como o quinto artigo, ‘ninguém será submetido à tortura nem

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FORA DO EIXO

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Da esquerda para a direita, momentos distintos de vertentes menos populares da música brasileira. Primeiro, o público no festival punk O Começo do Fim do Mundo, ocorrido em 1982, em São Paulo. Na sequência, Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé, dois representantes seminais da chamada Vanguarda Paulistana

a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante’. Ou o nono, ‘ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado’, ambos aplaudidos como afrontas às práticas do regime vigente”, relata o jornalista. “Numa reunião na casa do Chico Buarque, escolhemos os artigos mais barra-pesada da declaração para ler entre as apresentações”, lembra Macalé. “Era até engraçado, nós dizíamos: ‘Esse não, esse é muito burguês’ [risos], e aí virou uma carta subversivíssima. ‘Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado’, ‘Ninguém será submetido a tortura’, dito assim no meio do governo Médici, no dia 10 de dezembro de 1973, na presença do representante da ONU, com o museu lotado por quatro mil pessoas e cercado pela polícia. Participaram Milton Nascimento, Chico Buarque, Edu Lobo, Jorge Mautner, Dominguinhos, Gal, Paulinho da

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Viola, Raul Seixas e mais gente.” “Depois o disco chegou a ser prensado, mas foi proibido. Ficou indo e vindo da RCA pra censura, até que eu e o Xico Chaves fomos lá; o Xico conhecia um cara que tinha estudado com ele e virado censor. Aí o amigo dele burocrata disse: ‘Tá vendo aqueles caras ali, naquela outra sala?’ Tinha cinco caras em volta de uma vitrolinha. ‘Isso tudo é SNI [Serviço Nacional de Informação, o serviço secreto da ditadura militar], acho bom vocês irem embora’. A gente

“Numa reunião na casa do Chico Buarque, escolhemos os artigos mais barrapesada da declaração para ler”, lembra Macalé

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se picou, deixou a porra lá, os caras estavam ouvindo o Banquete dos Mendigos! Depois chegou o telex ‘proibido para todo o território nacional’ e alhures. Eu ainda tenho esse telex. Nada a ser feito a não ser esperar.” O disco só foi liberado em 1979. No início da década de 1980, o país atravessava um período complicado, com uma inflação que batia na casa dos 200% ao mês. O Brasil vivia os últimos anos da ditadura que, mesmo naquele momento, ainda representava uma ameaça à liberdade de expressão. Nessa época, a chamada Vanguarda Paulistana, movimento que tinha no músico erudito Arrigo Barnabé e no cantor e compositor Itamar Assumpção seus principais agentes, agitava o submundo da maior cidade brasileira. Também em São Paulo, despontava como fenômeno de mídia, em 1982, o movimento punk, que no final das contas acabou sucumbindo


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ao radicalismo e à violência dentro do seu próprio gueto. Enquanto isso, no Rio de Janeiro, o clima era mais relaxado e a onda eram os animados shows no então recém-inaugurado Circo voador, onde a banda Blitz, do cantor e ator Evandro Mesquita, lançou a fagulha que resultou no “boom” de grupos new wave no Brasil –, com pelo menos seis anos de atraso. O resto é história. Ao longo da década, a jovem geração rock reinou absoluta na condição de fenômeno de massa, com presença constante nas rádios e nos programas de auditório, até apresentar sinais de desgaste e perder espaço para a música sertaneja e outros gêneros que volta e meia aparecem no cíclico território da indústria cultural. Hoje, apesar de uma onda de conservadorismo muito semelhante àquela gerada durante o golpe se pronunciar, os tempos agora são outros. Atualmente, todos têm o

A música deixou de representar o seu papel como voz de descontentamento às arbitrariedades do poder constituído direito de manifestar suas convicções, por mais tacanhas que sejam. E há muito a música e a cultura do país deixaram de representar o seu papel como voz de descontentamento às arbitrariedades do poder constituído. O cenário musical atual é muito mais vasto, dinâmico e diverso que em tempos passados, com milhares de artistas produzindo e agitando sua própria onda em estúdios caseiros. Porém, em muitos casos, nada de substancialmente impactante ou inovador é apresentado. A música produzida no Brasil pelas gerações surgidas

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nas duas últimas décadas é, em essência, conservadora. Eternamente regurgitando o que foi feito lá atrás pela geração de Caetano, Gil e Gal, os novos talentos da música brasileira parecem ter esquecido o que de mais importante seus heróis trouxeram como contribuição na década de 1960: o fato de terem surgido promovendo rupturas, com um trabalho ousado e contestador. O cenário atual não rompe com nada, não contesta nada e prefere demonstrar reverência e copiar o que foi feito há 40, 50 anos, em nome de um pretenso bom gosto, ao invés de ousar e surpreender. Enquanto isso, os velhos contestadores da MPB hoje vivem da lenda de seu passado “heroico”, confortavelmente integrados ao establishment, assumindo a mesma face da estagnação que combateram, mas vendendo aos incautos a ideia de que o espírito de 68 nunca acabou.

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