REPORTAGEM
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O SER E O TEMPO DO
Felipe Montargio
Cangaรงo
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REPORTAGEM
TEXTO: LUÍS
GUSTAVO MELO
Das primeiras manifestações de banditismo rural nos rincões do sertão, às mirabolantes e sofisticadíssimas maquinações engendradas por Lampião durante seu reinado de terror no início do século passado, o cangaço deixou sua marca indelével, cristalizando esteticamente a própria imagem do Nordeste brasileiro. Nas próximas páginas, um breve relato de um dos mais controversos episódios da nossa história
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o vasto universo da historiografia brasileira, poucos episódios ilustram de modo tão incisivo a percepção da importância do legado cultural nordestino e representam com tamanha expressividade a arte e a bravura do povo sertanejo quanto o cangaço. No imaginário popular do Nordeste e até para muita gente Brasil afora, a figura do cangaceiro assume várias representações e significados. Eles eram ao mesmo tempo vistos como facínoras, heróis e justiceiros. Mas, acima de tudo, eram reconhecidos como pessoas que – a exemplo da maioria dos oprimidos daquela região – foram vítimas das injustiças e da violência do meio em que viviam.
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E é exatamente por essa razão que jamais podemos analisar o cangaço ou pretender julgar os atos desses homens sem levar em consideração o contexto histórico. A figura do cangaceiro não é apenas a representação rasa de um indivíduo que simplesmente escolheu seguir os caminhos do crime e da violência. Ela surge de uma realidade social e cultural complexa e repleta de contradições. Ao longo do período em que o fenômeno do cangaço se deu no Sertão até a primeira metade do século passado, o isolamento e a miséria daquela região eram fatores determinantes para o surgimento desse tipo de insurgência contra os valores estabelecidos. Junte-se a isso
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a ignorância, os prolongados e angustiantes períodos de seca e a ausência de governo e de Justiça, e teremos um panorama significativo de um ambiente duro e sem muitas perspectivas. “O próprio nome ‘sertão’ é uma corruptela da palavra desertão, ou seja, o lugar para onde ninguém queria ir, tal a rudeza da vida e das relações sociais”, explica à nossa reportagem o jornalista e escritor Moacir Assunção, autor do livro Os Homens que Mataram o Facínora – A História dos Grandes Inimigos de Lampião (Record, 2007), obra que aborda o fenômeno do cangaço sob o foco das temíveis volantes policiais do Sertão nordestino. “O coronel
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O Estado brasileiro combateu o cangaço com as polícias nordestinas. Na imagem ao lado, o tenente Manuel Neto e o sargento Luis Mariano, da volante pernambucana
era a figura suprema, dona da vida de todos os outros e a violência fazia parte da vida, como a morte. A Justiça e a polícia existiam somente para atender aos anseios de quem tinha poder econômico e político, e pululavam os grupos de capangas armados, a serviço dos coronéis.” “Aliado a tudo isso, havia a questão das lutas das famílias, tão antigas quanto o surgimento dessas regiões. É compreensível que as famílias tivessem tanto poder assim, já que Portugal não podia administrar áreas tão remotas. Assim o poder foi ‘terceirizado’ para os clãs familiares, que derrotaram os índios bravios, com seus exércitos particulares, e passaram a
disputar o poder entre si. Diante desse cenário, era até certo ponto natural que alguns dos sertanejos debandassem para uma vida de crimes ou para o catolicismo primitivo, como o do Antônio Conselheiro e Padre Cícero. Lampião e os líderes messiânicos só poderiam ter surgido em locais com estas características de rudeza e dificuldade”, conclui Assunção. As pessoas que ingressavam no cangaço, na maioria dos casos, eram indivíduos comuns, gente muito simples:
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lavradores, artesãos, vaqueiros, filhos de pequenos sitiantes. Quase todos vindos de camadas pobres do interior. E quase sempre seguiam esse caminho muito jovens. Alguns se tornaram cangaceiros entre os 14 e 16 anos. Outra constante era a vingança como uma das principais motivações para um pacato sertanejo se converter num fora da lei. E como todo justiceiro, o cangaceiro se tornou, aos olhos do povo do Sertão, um símbolo da coragem e da valentia.
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ESCUDO ÉTICO
Ao estudar a forma como esses valores tão cultuados no sertão se processam, o historiador Frederico Pernambucano de Mello desenvolveu sua famosa teoria do escudo ético, que ele apresenta no livro Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil (Editora Massangana/Fundação Joaquim Nabuco, 1985), da seguinte forma: “Muito se tem falado nos paradoxos da chamada moral sertaneja. No Nordeste, talvez melhor que em qualquer outra região, sentese a existência desse quadro de valores – inconfundível em muitos dos seus aspectos. Chega a ser quase impossível, por exemplo, explicar ao homem do sertão do Nordeste as razões por que a lei penal do país – informada por valores urbanos e litorâneos que não são os seus – atribui penas mais graves à criminalidade de sangue, em paralelo com as que comina punitivamente para os crimes contra o patrimônio. Não se perdoa o roubo no sertão, havendo, em contraste, grande compreensão para com o homicídio. O cangaceiro – vai aqui o conteúdo mental do próprio agente – não roubava, ‘tomava pelas armas’.” A lógica em tudo particular daquele pensamento produz um senso de legitimidade às
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Vingança era um princípio para justificar violência: na foto, pose e marketing
avessas. “Dentro desse quadro todo próprio, a vingança tende a revestir a forma de um legítimo direito do ofendido. ‘No sertão, quem não se vinga está moralmente morto’, repitamos mais uma vez a frase tão verdadeira de Gustavo Barroso, conhecedor profundo desse paralelismo ético sertanejo”, lembra Pernambucano de Mello. “Ao invocar tais razões de vingança, o bandido, numa interpretação absurdamente extensiva e nem por isso pouco eficaz, punha toda a sua vida de crime a coberto de interpretações que lhe negassem um sentido ético essencial. A necessidade de justificar-se aos próprios olhos e aos de terceiros levava o cangaceiro a assoalhar o seu desejo de vingança, a sua missão pretensamente ética, a verdadeira obrigação de fazer correr o sangue dos seus ofensores. O folclore heroico,
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em suas variadas formas de expressão, imortalizava-o, omitindo eventuais covardias ou perversidades e enaltecendo um ou outro gesto de bravura. Concretizada a vingança, por um imperativo de coerência estaria aberta para o cangaceiro a obrigatoriedade de abandonar as armas, deixar o cangaço. Já não teria mais a socorrer-lhe a imagem
Lampião fez do cangaço um meio de vida, era sua forma de estar no mundo; outros bandos eram redutos de criminosos, e havia ainda os que surgiram de vingança e brigas familiares
do escudo ético por esta representado. Como então realizar tal vingança, se o cangaço era um bom meio de vida?”, anotou o autor. “Os conceitos morais e os códigos verificados no Sertão dos meados do século 18 e por todo século 19, e até meados do século 20, foram determinantes para que houvesse um ingresso de sertanejos no cangaço”, afirma o pesquisador Jairo Luiz Oliveira, residente na cidade histórica de Piranhas, situada no Sertão alagoano, à margem do rio São Francisco. “O sertanejo pobre que, por muitas vezes, via o Estado como algo distante e inacessível tinha como saída a justiça feita pelas próprias mãos, impulsionado por códigos
de honra que, por sua vez, eram baseados até em questões de foro religioso. Portanto, vingança aliada a valentia e questões de honra fizeram crescer as hordas cangaceiras. Outro fator preponderante para ascensão do cangaço foram os longos períodos de seca, onde o sertanejo via-se abandonado à própria sorte buscando maneiras de sobreviver, e o Cangaço proporciona essa sobrevivência mesmo que fosse uma incógnita”. Em todo caso, o cangaço se configurou ao longo de séculos como uma tradição guerreira de resistência popular com características muito distintas dos demais exemplos de lutas sociais no Nordeste brasileiro.
Como observa Frederico Pernambucano de Mello em seus estudos, diferentemente de outras manifestações de confronto como o levante indígena, o quilombo e a revolta social, o cangaço, além da longevidade, também chama a atenção por sua multiplicidade étnica: “Você podia ter sucesso no bando, ascendendo à chefia, fosse branco alourado, como Corisco; negro, como Zé Baiano; índio, como Gato; ou mestiço dos mais diferentes matizes, como o caboclo Lampião, o mulato Sabino, o sarará Luiz Pedro, o cafuzo Jararaca, o caboverde Zé Sereno. Sem deixar de ser uma expressão de banditismo – porque sempre houve lei capaz de respaldar
Coleção Pernambucano de Mello
Mulatos, índios, brancos, pretos: o cangaço era democrático em termos étnicos; não importava a cor da pele, todo sujeito tinha as mesmas chances de se projetar e virar o chefe do bando, como mostra a variedade de tipos na imagem abaixo
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B. Abrahão, Aba-Film, Família Ferreira Nunes
esse enquadramento jurídico de epiderme – o cangaço, no mais fundo da carne, foi uma tradição brasileira de resistência popular armada, contínua e metarracial”, explica o autor. AS VÁRIAS FACES DO CANGAÇO
No clássico Guerreiros do Sol, Frederico Pernambucano revelou diversos grupos de cangaceiros que, ao longo de gerações, apresentaram características e motivações distintas. Como, por exemplo, os bandos de Lampião e Antônio Silvino, que, até onde foi possível, fizeram do cangaço predominantemente um meio de vida. Outros ingressaram no crime por vingança, geralmente num contexto de luta entre famílias, como se deu com Sinhô Pereira e o lendário Jesuíno Brilhante. Outros ainda transformaram o cangaço em asilo nômade de criminosos jurados de morte, caso de Ângelo Roque, o Labareda. Mas o maior de todos os cangaceiros foi mesmo Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, que, no comando de seu bando, ao longo de 20 anos, percorreu os sertões de sete estados: Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Bahia e Ceará. Sempre jogando com o terror como forma de domínio,
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Lampião brinca com a câmera mostrando um punhal: a arma era usada na morte por sangramento, rito extremo da violência perpetrada por cangaceiros
Lampião ficou conhecido por seu extraordinário talento para a administração e a diplomacia, além de sua excelência em executar táticas quase militares. Mesmo semianalfabeto, ele era um homem de visão e extremamente inteligente. Na história do cangaço, deve-se a ele a noção de trabalhar com logística precisa na manutenção dos equipamentos e suprimentos bélicos, o ingresso de mulheres em caráter permanente, a introdução do ofício religioso coletivo, além do cuidado com a
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estética do traje do cangaceiro, que com ele recebeu todo um apuro ornamental sofisticado, com muitas cores vivas e harmoniosas nos lenços bordados, nos bornais e frisos das cartucheiras e nas perneiras. Outra característica marcante de sua indumentária eram os chapéus, em estilo napoleônico, adornados com moedas de ouro e prata. Com todas essas particularidades e apelo visual, Lampião conseguiu marcar sua imagem. E como todo homem inteligente e de visão, o Rei do Cangaço soube se posicionar e tratar
acordos com os poderosos de igual para igual, além de vender muito bem sua imagem e a de seu bando. Já naquela época, o Capitão Virgulino era um marqueteiro de primeira. “Lampião tinha alguns importantes coronéis como seus aliados e outros como inimigos”, diz Moacir Assunção. “Entre estes segundos, o coronel Zé Pereira, de Princesa, que passou a odiar. Geralmente, os cangaceiros faziam o ‘serviço sujo’ quando os coronéis pediam que eles matassem alguém ou destruíssem a fazenda de seus inimigos. Era um jogo de aproximação e retração”. De acordo com o antropólogo Jorge Luiz Villela, Lampião nunca escolhia aliados apenas em função da classe social. Segundo o estudioso, para o bandoleiro, “pobres e ricos, oprimidos e opressores, todos eram bons desde que satisfizessem suas exigências.
Todos eram inimigos desde que se opusessem a seus propósitos”.
de transversal, atingindo o coração e o pulmão da vítima”, explica Moacir. “É fatal, não há condições de salvar alguém atingido assim. A polícia também matava cangaceiros e civis dessa forma. No Sul, o método usado era o da ‘gravata vermelha’, em que se furava o pescoço da vítima e se tirava a língua para fora. A crueldade humana não tem limites mesmo. Houve um episódio marcante, na cidade de Queimadas, na Bahia, em que Lampião matou seis soldados do destacamento local, todos sangrados, deixando vivo apenas o sargento Emiliano, porque uma moradora pediu que ele o poupasse. Não se sabe ao certo por que ele fez isso, de forma tão cruel e covarde, mas foi um episódio marcante da violência do cangaço”, conta o pesquisador.
A ARTE DE MATAR
É muito difícil enumerar as perversidades cometidas por Lampião e seus cangaceiros. Suas ações aconteceram às centenas. Sob o escudo da vingança, ele se tornou um especialista em dar cabo da vida de qualquer infeliz que o contrariasse, valendose de terríveis técnicas de assassinato por sangramento. “O sangramento é uma morte ritual, típica do vaqueiro, de quem descende o cangaceiro, que consiste em enfiar os enormes punhais, com lâminas de um metro, na fossa clavicular esquerda (conhecida como saboneteira)
Coleção Privada
Na lógica do cangaço, a crueldade tinha como justificativa, entre outras, a disputa de poder com alguns fazendeiros e líderes políticos; narrativas servem à busca de legitimação
Na ponta do punhal: cangaceiros eram especialistas no uso dessas armas durante ataques a povoados e em assassinatos
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Coleção Privada
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Rifles, revólveres e cartucheiras usados pelos cangaceiros: durante vários anos, o arsenal dos bandidos era muito mais eficiente do que o da polícia
Por meio de suas andanças e dos acordos estratégicos estabelecidos com os coiteiros e os poderosos coronéis de barranco, Lampião astutamente estabeleceu um território político e econômico, constituído unicamente por meio do movimento, nunca pela apropriação. Seu domínio se dava por meio do choque, quando espalhava com grande eficácia o medo em cada um dos sete estados por onde ele e seus comparsas transitaram. Era como uma sinistra força invencível que se espalhava
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pelas mais remotas localidades do Sertão. Em seu bando, Lampião dividia as ações formando subgrupos, alguns dos quais comandados por homens como Corisco, Zé Sereno, Salamanta, Moderno, Labareda, entre outros. Os critérios para nomear esses líderes eram essencialmente os de fidelidade e valentia. Lampião tomou essa medida para enganar a polícia, ao espalhar seus cabras por regiões distantes e atacar de forma organizada. Segundo Moacir Assunção,
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as autoridades tendiam a achar que ele estava em todos os lugares, o que, claro, não era verdade. Além disso, ele passava para o chefe do subgrupo a responsabilidade de manter o seu grupo. E eles só se reuniam quando tinham de executar uma ação maior. Em meados da década de 1920, Lampião já era uma celebridade nacional. As façanhas dele pelas distantes terras do Sertão eram reportadas por jornais de várias capitais do país e até do exterior, caso do New
York Times, que, a partir de 1930, passou a acompanhar a trajetória do bandoleiro, publicando algumas pequenas matérias sobre suas artimanhas no Brasil.
Na década de 20 do século passado, o cangaço vai se encontrar com o poder oficial do país, numa parceria com a República – algo visto hoje como verdadeiro absurdo
ENCONTRO COM PADRE CÍCERO
de seus jagunços, para que fossem formados em caráter emergencial forças de milícia, os chamados Batalhões Patrióticos, um dos quais é constituído no Juazeiro, no estado do Ceará. “O presidente da República, depois de estender ao Ceará o estado de sítio decretado para o Piauí e Maranhão, vale-se de prepostos para conclamar os coronéis sertanejos a colocar a jagunçada a serviço do Governo Federal, no afã de picar, por meio de tocaias sucessivas, a agilidade dos destacamentos rebeldes – em essência uma grande tropa de cavalaria – a se deparar, se bem-sucedido o hibridismo extravagante de que se estava lançando mão, com
Integrantes da Coluna Prestes, o movimento dos tenentes comunistas que percorreu o Brasil, sendo combatido por Lampião, a pedido do governo Divulgação
O cangaço já estava em franca ascensão e em pleno curso de seus domínios, quando o ano de 1926 flagrou os bandidos, as autoridades e outras tantas personalidades de influência da região em meio a um período de agitação por todo o Nordeste. Nessa época, o então presidente da República, Arthur Bernardes, enfrentava uma grande dificuldade, pois governou praticamente seus últimos quatro anos de mandato em estado de sítio. A situação estava realmente crítica. E quando parte dos militares do Exército se ergueram do movimento que ficou conhecido como Coluna Prestes – que foi na realidade uma grande marcha de militares comandados pelo capitão Luís Carlos Prestes, a atravessar o Nordeste –, Bernardes percebeu que as forças regulares não estavam combatendo adequadamente a Coluna, porque os soldados eram colegas dos revoltosos de Prestes. Por conta disso, o presidente solicitou dos coronéis do Sertão os serviços
a guerrilha móvel praticada intuitivamente na caatinga. Uma herança tapuia tornada proverbial. Ações semelhantes tinham ocorrido à guisa de proteção federal aos Estados do Piauí, Goiás e Bahia, partidas do Catete ainda em agosto de 1925, projetando os nomes de caudilhos locais.”, escreveu Frederico Pernambucano, em seu livro Benjamin Abrahão: Entre Anjos e Cangaceiros (Escrituras, 2012). No Ceará, a direção dessa força especial improvisada é dada ao braço direito político do Padre Cícero, o deputado federal Floro Bartolomeu da Costa, que recebeu a patente de General Honorário do Exército Brasileiro e passou a ser uma
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espécie de general do cangaço, para com seus mil homens do Batalhão Patriótico, combater a Coluna Prestes. Nessa grande “salada militar” mesclavamse aos capangas e jagunços sertanejos, homens da Polícia Militar do Ceará e do Exército Brasileiro, distribuídos em doze companhias – todos munidos de armamentos de infantaria de última geração, a exemplo de fuzis e mosquetões Mauser. As forças da milícia dos “patriotas” do Juazeiro contaram ainda com o 2º
cangaceiro a patente de Capitão Honorário das Forças Legais de Combate aos Revoltosos que, a essa altura, avançava efetivamente os sertões do Nordeste. A convocação do famoso bandoleiro ocorreu em meados de janeiro de 1926, quando um cartão com o timbre do Batalhão Patriótico foi entregue a João Ferreira dos Santos, irmão caçula de Lampião, que ficou encarregado de levar o documento até Virgulino. O tal cartão precisava ser
As relações entre Igreja e política aparecem mais do que íntimas no tempo dos cangaceiros e dos coronéis do Sertão; cada lado em defesa do interesse próprio
Padre Cícero, o homem que virou santo para milhões de fiéis, mesmo contra a vontade da Igreja Católica: ele acertou com o governo do Brasil a convocação de Lampião para se integrar ao Exército e combater a suposta ameaça comunista – e Virgulino se torna capitão
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Batalhão de Caçadores do Exército, com seus 360 praças e 45 graduados, deslocados de Minas Gerais, sob o comando do major Polidoro Rodrigues Coelho. Acontece que, num dado momento, Floro Bartolomeu se desentendeu seriamente com o major Polidoro, que logo se retirou da posição com seus soldados, recolhendo-se a Fortaleza. Para contornar o problema do vazio deixado pelo 2º Batalhão, a solução encontrada foi a de completar as tropas convocando Lampião e seu bando, com as autoridades do Juazeiro prometendo ao chefe
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entregue a Lampião com urgência. O que não foi fácil. Mesmo hoje dá para imaginar a dificuldade que era conseguir encontrar o homem, não é mesmo? Semanas se passam sem que a carta de Bartolomeu, devidamente endossada por Padre Cícero, chegue ao cangaceiro, que nesse meio tempo cuidava de seus afazeres em Pernambuco, invadindo a fazenda de um antigo inimigo, onde matou duas pessoas, feriu outras duas e incendiou a casa. Como se não bastasse, ao terminar essa ação, ainda no mesmo dia – vejam só –, os bandidos travaram um combate
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A religiosidade é um dos traços que marcam enfaticamente o modo de vida que reunia pregadores e bandidos no Sertão nordestino com a Coluna, pensando que lutavam contra os “macacos”, termo que eles usavam para designar os policiais das forças volantes. Quando o cangaceiro finalmente recebeu a convocação e se apresentou com cerca de 50 cabras, no Juazeiro, era dia 4 de março, e o grosso da Coluna já havia deixado o Ceará por volta de um mês. No dia 5, Lampião se encontrou com o Padre Cícero e recebeu a patente de capitão dos Batalhões Patrióticos, assinada pelo ajudante de inspetor agrícola federal Pedro de Albuquerque Uchoa. Todos os cabras do Capitão Virgulino Ferreira receberam uniformes, fuzis automáticos e farta munição. HERÓI NO JUAZEIRO
A chegada dos cangaceiros à cidade do mítico padre Cícero Romão Batista provocou um alvoroço e tanto. Lampião e seu bando eram saudados pela população como heróis. A permanência dos bandidos convertidos em agentes do Estado, na terra do padrinho, parecia uma grande festa e,
como não poderia deixar de ser, despertou também o interesse da imprensa local. Na condição de repórter – e por intermédio de Benjamin Abrahão, o secretário particular do Padre Cícero –, o médico Otacílio Macedo aproximou-se de Lampião com o objetivo de entrevistálo para o jornal O Ceará, de Fortaleza, e escreveu o seguinte perfil do “Rei do Cangaço”: “Contrastando com os homens do seu grupo, Lampião é de todos eles o de cor mais ‘carregada’, aproximando-se mais do negro do que do tipo comum do caboclo do Norte. Descendente legítimo do tapuio, misturando-se-lhe na pele a pigmentação do negro e o bronzeado do índio autóctone, demonstrando nos gestos e nas atitudes uma desconfiança nativa, a astúcia do selvagem e a impulsão do cossaco; alternando a vida com atos de barbaria extrema e surtos de extrema generosidade, o bandido parece gozar sobremaneira a curiosidade popular que rodeia.” Em relação aos trajes e à ostentação de joias do bandido, o médico repórter descreveu: “Dedos munidos
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de anéis de preço, engastados de pedras preciosas, verificase, facilmente, no indicador e no anular, um topázio, um rubi, três brilhantes de regular tamanho e uma esmeralda, símbolos irônicos das chamadas profissões liberais do Brasil... Trajava calça de zuarte e paletó de brim escuro, listrado, chapéu de feltro ordinário, alpercata de rabicho e meia; ao pescoço, um lenço verde, enxadrezado de preto, seguro por um anel de brilhante, à moda de alfinete de gravata. Lampião usa óculos com vidros esfumaçados, engastados em tartaruga e ouro, com o fim de encobrir um extenso leucoma da córnea do olho direito. Durante todo o tempo em que conversou conosco – e foi por
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O bando de Lampião e Maria Bonita nos tempos em que foram a Juazeiro acertar participação no combate à Coluna Prestes; o desfecho do episódio deixou o rei do cangaço decepcionado com governantes, que não teriam cumprido o acordo plenamente
espaço de mais de uma hora –, não riu uma vez e mantevese em grave circunspecção, compenetrado das suas responsabilidades e da fama de seu nome...” Sem dúvida, Lampião gozava de fama nacional naquele ano de 1926. A imprensa das capitais não cansava de relatar suas proezas naquelas localidades remotas do país. Impressionava a todos a forma como Lampião transformou seu bando na “mais poderosa força de deslocamento rápido do interior do Nordeste” e, ainda, que em cinco anos de alianças estratégicas, de suborno e práticas de rapina, em comum acordo com a disciplina e sua
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brilhante forma de operar a logística, tenham bastado para que o seu grupo chegasse àquele ano aos 120 integrantes. Ao deixar o Juazeiro, Lampião, orgulhoso de sua patente de capitão, partiu decidido a cumprir o combinado, cruzando o Sertão central de Pernambuco no rumo do sul, seguindo o rastro dos homens de Prestes. Ainda em território pernambucano, Lampião fica desapontado ao perceber que a patente militar não lhe confere o prestígio que imaginava, e quando decide voltar a Juazeiro para tratar de questões monetárias com o Padre Cícero, este não o recebe. É o fim de sua carreira de agente do
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Estado. O cangaceiro retoma a velha rotina pelas caatingas do interior do Nordeste, com o detalhe de que agora permaneceria como capitão por vontade própria. Capitão de seu exército de cangaceiros, título que ele manteria até o fim da vida. Sobre o final amargo desse episódio, Frederico Pernambucano escreveu no livro Benjamin Abrahão: Entre Anjos e Cangaceiros: “Ao morrer, em 1938, a polícia de Alagoas encontra uma das platinas de oficial entre os bens arrecadados. Galões amarelos sobre mescla azul. Muito bem conservada. E nada que dissesse respeito ao padre
Cícero. Nem mesmo entre as oito orações escritas que o cangaceiro conduzia em um saquinho atado ao pescoço, no estilo mais tradicional dos caborjes do catolicismo popular sertanejo.” Apesar de tudo, se houve mágoa profunda, Lampião trancou no silêncio: “Também não se reportam testemunhos de reparo que pudessem ter saído da boca do cangaceiro sobre a conduta do Padrinho, nos doze anos de sobrevida ao episódio da patente gorada. Ao contrário. Para consumo dos rapazes do bando, de inimigos e paisanos em geral, a astúcia de Virgulino tratou de disseminar pelo tempo afora a versão de que este dispunha, por outorga pessoal, da proteção seráfica mais entranhadamente cara aos sertanejos do Nordeste: a de afilhado do padre Cícero. Meiaverdade fértil em dividendos para a imagem pública do cangaceiro.”
A imprensa brasileira relatava os feitos de Lampião e seu grupo com espanto, diante do poderio para os deslocamentos rápidos nos rincões do Sertão
GOVERNADOR DO SERTÃO
Em dezembro do mesmo ano de 1926, outro fato marcante da história do cangaço aconteceu. Foi quando o Capitão Virgulino Ferreira da Silva, que a essa altura havia recebido dos jornais da época o título de “governador do Sertão”, resolveu que estava mais do que na hora de “oficializar” o seu cargo. Vaidoso como só ele, e com a ousadia de quem tinha plena convicção de seus domínios, Lampião propõe a divisão do estado de Pernambuco, ao enviar uma carta ao então governador do Estado Júlio de Melo, que, ao receber a mensagem do bandoleiro, declarou: “A proposta de Lampião terá uma resposta à altura de seu atrevimento e ousadia”. No dia 12 daquele mês, Júlio de Melo seria sucedido por Estácio Coimbra, que tratou de colocar na chefia da polícia o então jovem Eurico de Souza Leão, advogado nascido de uma família importante da Zona da Mata, que tomou uma série de medidas para “baixar a bola” do cangaceiro e desmantelar seus domínios em Pernambuco. Substituiu os soldados do Litoral que combatiam os bandidos por sertanejos calejados no ambiente hostil da caatinga, e portanto com hábitos e resistência física compatíveis aos dos cangaceiros. Tratou de prender
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e processar coiteiros e grandes latifundiários coniventes com as ações dos bandidos, desestabilizando assim o vínculo de proteção e troca de favores entre Lampião e seus comparsas, com os poderosos coronéis e líderes do interior do estado. Mas a cartada final de Eurico de Souza foi promover convênios com os estados vizinhos para enfrentar os bandoleiros. “Em Pernambuco, por volta de 1934, o governo começou a perseguir coiteiros e defensores em geral”, relata Moacir Assunção. “Já identificados, eles eram presos e pressionados para que revelassem o que sabiam. Era um método diferente na luta contra o cangaço. Com Pernambuco hostil, só restou a Lampião enveredar por outros estados como Bahia e Ceará para tentar sobreviver. Isso representou uma mudança de postura – causada em parte pela emergência da ditadura do Estado Novo, que diminuiu o poder das oligarquias estaduais em detrimento do poder central.” Foi o começo de uma série de dificuldades que o “governador do Sertão” teria de enfrentar a partir daquele momento. A MULHER NO CANGAÇO
Além dos primeiros impactos de uma perseguição mais
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acirrada aos fora da lei por parte do Estado, outro fator contribuiu para que algumas mudanças fossem percebidas na rotina de Lampião e seus “cabras”, a partir da década de 1930: a entrada da mulher no cangaço – começo de uma nova era, que nas palavras do historiador Frederico Pernambucano de Mello significou uma época de “mais idade, menos guerra e mais limpeza”. Para alguns,
a presença feminina naquele ambiente teria sido um dos motivos principais da gradativa diminuição do poder e fúria selvagem do cangaço. Contudo, é necessário fazer justiça ao fato de que o movimento contou com moças fortes e destemidas, caso da cangaceira Dadá, mulher de Corisco. “Na verdade as mulheres não tinham funções militares ou estratégicas”, explica
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Mulheres no cangaço teriam provocado algumas mudanças de rumo: menos violência, para alguns, ou enfraquecimento, na opinião de outros
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Jairo Oliveira. “As mulheres tinham uma participação mais ligada à companhia de alguns cangaceiros que decidiram ter sua parceira. As mulheres não participavam dos combates, a única mulher a pegar em armas, já no final do cangaço, foi Sérgia Ribeiro, conhecida como Dadá”. A vida dura de longas caminhadas durante dias e dias, no meio do mato seco, sob um sol de rachar, algumas vezes passando fome e sede, já foi relatada em diversas ocasiões ao longo dos anos por ex-cangaceiras como Adília, companheira do bandoleiro Canário, e Sila, esposa de Zé Sereno, um dos chefes de subgrupo do bando de Lampião. Mas as coisas ficavam ainda mais difíceis com o nascimento de crianças. Nesse caso, a solução era dar os recém-nascidos para padres, fazendeiros ou qualquer outra pessoa de influência e extrema confiança dos cangaceiros. Quando morria um companheiro, a viúva tinha de arranjar novo par. Segundo consta, por duas vezes isso não deu certo e a saída foi executar as mulheres. Desse modo, Rosinha e Cristina foram assassinadas para não ameaçar o grupo. Outro drama era o adultério. Caso de Lídia (que muitos dizem ter sido a mais bela mulher do cangaço) e Lili, que morreram por trair seus companheiros.
CORRUPÇÃO
Com a extenuante e agitada vida de andarilhos na caatinga, o bando de Lampião podia, às vezes, até passar fome, mas balas nunca lhes faltaram. A corrupção naqueles tempos – como aliás em qualquer período da nossa história – era generalizada, e muito provavelmente os bandoleiros eram armados com equipamentos modernos e supridos com farta munição por líderes políticos e pela própria polícia. Ao longo dos anos de pesquisas sobre o cangaço e de intermináveis discussões, fortes suspeitas recaíram – por mais estranho que isso possa parecer – sobre o Tenente João
Bezerra, o líder da volante policial alagoana responsável por matar Lampião e parte do bando em Sergipe, em julho de 1938. “Não resta dúvida”, enfatiza Moacir, “hoje, e eu discuto muito isso no meu livro Os Homens que Mataram o Facínora – A História dos Grandes Inimigos de Lampião, que boa parte do armamento e das munições dos cangaceiros era obtida com a própria polícia ou com coronéis corruptos. Não é muito diferente do que ocorre nos morros do Rio de Janeiro ou nas periferias das grandes cidades. Zé Rufino, o homem que mais matou cangaceiros, constatou, ao revirar os locais dos combates, que a munição dos bandidos
Coleção Luiz Antônio Barreto/Pesquise. Foto Eronides de Carvalho
Lampião e seus cabras, prontos para o combate, munidos de armamento cuja origem, na maioria das vezes, era a própria polícia, corrupta e igualmente violenta
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era quase sempre mais nova do que a da polícia. Havia histórias de chefes de volante que nunca lutavam contra Lampião. Em determinada época, no estado de Sergipe, a polícia não o enfrentava por determinação do governador de então, tido como seu protetor. Até hoje, essa rede de apoio e proteção e abastecimento dos cangaceiros permanece parcialmente secreta. Não sei se algum dia será totalmente decifrada.” Coronelismo e mundo oficial se entenderam de modo bastante particular naqueles tempos. “O Estado era o maior apoiador dos cangaceiros e em especial de Lampião”, reitera o pesquisador Jairo Oliveira, “pois os representantes do Estado, na sua grande maioria políticos que detinham o poder econômico da região, mantinham estreitos laços com Lampião e seus cangaceiros. Os famosos ‘coronéis’ se aliavam a Lampião com um único objetivo de se manterem no poder através da intimidação e do medo provocados por aquela relação entre eles – os coronéis e os cangaceiros. Armas, munições, presentes diversos e informações privilegiadas eram as moedas de troca entre os coronéis, agentes da lei, representantes religiosos e os cangaceiros. A corrupção foi um dos principais motivos da ascensão do cangaço – em especial na era Lampião”, pontua.
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REPORTAGEM
REGISTRO PARA ETERNIDADE
Divulgação
Entre o obsceno e o aparentemente inabalável poder dos coronéis sertanejos e a insolente tática de dominação dos cangaceiros pelo terror, virtualmente nada do que se desenrolou naquelas terras secas do Nordeste brasileiro, no início do século passado, escapou ao olhar do fotógrafo e mascate sírio-libanês Benjamin Abrahão Calil Botto, o secretário pessoal do Padre Cícero, que, durante o encontro de Lampião com o Padrinho, no Juazeiro, em 1926, fez as vezes de mediador das audiências do Rei do Cangaço com a imprensa e as pessoas importantes da região.
Lá pelo meio da década de 1930, um bom tempo depois da morte do Padre Cícero, o ousado Benjamin Abrahão engendrou um projeto, cuja aventura pelos sertões entre o ambiente hostil da caatinga e das imponentes propriedades dos grandes latifundiários, o inscreveu nos anais da memória nacional como o homem que legou para a posteridade as icônicas imagens do bando de Lampião. Naqueles dias de penúria e incertezas, Benjamin percebeu que se fizesse um filme e um documentário fotográfico sobre Lampião e seu bando, teria condições de vender isso não somente para o Brasil, como para outros países. Tratou de arranjar patrocinadores, de obter o
equipamento da Aba-Film de Fortaleza, firmou acordos com importantes coiteiros e armou diversos tipos de esquema que lhes permitissem realizar o documentário, que é absolutamente o mais importante registro etnográfico sobre o cangaço. O filme em preto e branco e em 35 mm foi rodado na caatinga, entre os meses de junho e outubro de 1936. Os cangaceiros foram filmados no ambiente em que viviam, ora flagrados em práticas cotidianas nos períodos de sossego, ora simulando ataques diante da câmera. Na edição de domingo do dia 27 de dezembro de 1936, o Diario de Pernambuco publicou, em primeira mão, o testemunho do aventureiro sírio pelos sertões nordestinos. Na ocasião, ele contou para os repórteres em que condições conseguiu encontrar Lampião, após dezoito meses percorrendo os sertões da Paraíba, de Pernambuco, de Alagoas e da Bahia, vivendo na
Benjamin Abrahão toma nota em entrevista com Lampião; o libanês teve um fim trágico no país que ele escolheu para morar 20
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Coleção Pernambucano de Mello Imagem que ficaria famosa como símbolo do combate ao cangaço: depois da eliminação de Lampião e parte de seu bando, a exposição macabra tem como palco as escadarias da Prefeitura de Piranhas, município do Sertão alagoano
caatinga e enfrentando diversos perigos. Disse também que, em seu primeiro encontro, Lampião mostrou-se “homem de boas maneiras”, oferecendo-lhe uma refeição e conhaque, mas que continuava desconfiado. Toda essa publicidade e a nítida impressão de ineficácia das autoridades no combate aos bandidos, perante a opinião pública – uma vez que um cinegrafista conseguira chegar ao bando de Lampião, enquanto a polícia sequer tinha ideia de onde encontrá-los –, despertou nos poderes constituídos a necessidade de acabar de uma vez por todas com essa história. Uma dura resposta do Governo que se abateu não apenas sobre os cangaceiros, mas que acabou por respingar no pobre Benjamin Abrahão,
assassinado barbaramente com 42 punhaladas, numa noite escura, aos 37 anos. “Ele é, ao meu ver, a maior figura da documentação pela imagem no Brasil”, afirmou Frederico Pernambucano, em entrevista a este repórter no jornal Gazeta de Alagoas. “O que mais correu riscos, o que termina até de certo modo como um mártir, porque deu a vida por essa façanha que nobilita, digamos assim, a sua existência”. OS ÚLTIMOS DIAS DE LAMPIÃO
A campanha do governo que resultou no enfraquecimento do cangaço passou a ter mais ênfase quando o presidente Getúlio Vargas assumiu o
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poder, mas, após a decretação do Estado Novo em 1937, a campanha contra o banditismo no sertão foi levada adiante com ainda mais empenho por parte dos interventores federais. “Os principais atingidos com essa determinação por parte do governo em empreender uma campanha para o extermínio do cangaço nos sertões nordestinos, com toda certeza, foram os coiteiros, principalmente os mais humildes”, afirma Jairo Oliveira. “Era comum a tortura, as ameaças e muitas vezes as prisões injustificadas, e com isso a rede de informantes de Lampião e de outros cangaceiros foi seriamente ameaçada e, como consequência, a escassez de munições, de
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Benjamin Abrahão
As cabeças degoladas dos cangaceiros ficaram em museu da Bahia até 1969, quando, finalmente foram enterradas. Antes, foram exibidas em várias cidades
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armas, de alimentos e de dinheiro se tornou uma grande preocupação do Rei do Cangaço e seus asseclas”. Em meio às intensas perseguições empreendidas pelas forças volantes de Alagoas, Lampião chegou em seu esconderijo, na grota do Angico, no sábado do dia 23 de julho de 1938, com sua companheira Maria Bonita e mais 13 cangaceiros. De acordo com o que o pesquisador Jairo Oliveira contou a nossa reportagem, já na segundafeira, dia 25, um outro subgrupo comandado por José Ribeiro, o Zé Sereno, chegou em Angico com sua esposa Sila e mais 19 cangaceiros. A permanência do grupo se deu até o dia do massacre. O chamado Coito de Angico era um lugar considerado seguro. Situado nas terras de Pedro Rodrigues Rosa, conhecido por Pedro de Cândido (coiteiro de Lampião desde o início da década de 1930), o lugar ficava bem ali no estado de Sergipe, que na época era governado pelo interventor federal Eronildes de Carvalho, capitão médico do Exército e filho de um dos homens mais ricos do Baixo São Francisco sergipano: Antonio Carvalho – conhecido como Coronel Antonio Caixeiro. “Essa sensação de segurança acabou fazendo Lampião abrir mão de medidas que geralmente tomava para salvaguardar os seus
esconderijos”, explica Jairo. “Na terça-feira do dia 26 de junho, o capitão Lampião ordenou ao coiteiro Pedro de Cândido que fosse no dia seguinte fazer compras na feira livre de Piranhas, para suprir o bando principalmente com gêneros alimentícios. Ao chegar na feira
de três canoas as volantes do tenente Bezerra, do aspirante Francisco Ferreira de Melo e do sargento Aniceto, perfazendo um contingente de 48 policiais muito bem armados e municiados, conforme explica Jairo: “A primeira parada é na Fazenda Remanso, na margem
Embora seja algo raro, ainda hoje há quem acredite que Lampião escapou do cerco em Angico – ele estaria vivo nos dias atuais livre na quarta-feira, Pedro de Cândido segue tranquilo fazendo as compras para Lampião, e nem desconfia que seus passos estavam sendo observados pelo vaqueiro João Almeida Santos, Joca Bernardes, que de imediato passa a informação para o Sargento Aniceto Rodrigues, único oficial de polícia presente em Piranhas naquele dia”. Parte então do sargento Aniceto Rodrigues o telegrama codificado para o tenente João Bezerra, informando que Lampião estava por perto. No conteúdo do telegrama enviado de Piranhas para o tenente Bezerra que se encontrava em Pedra, hoje Delmiro Gouveia, a seguinte mensagem: “Ten João Bezerra. Tudo certo. Boi no pasto. Venha urgente. Assina Sgt Aniceto Rodrigues. Piranhas/AL, 27/07/1938” Na noite de 27 de julho, partem de Piranhas a bordo
alagoana do São Francisco; de imediato ao chegar à fazenda, o Tenente Bezerra ordena que dois soldados sigam até o Distrito de Entremontes e tragam o coiteiro Pedro de Cândido até a presença da força policial. Pedro e seu irmão Durval de Cândido são torturados e obrigados a confessarem que Lampião estava ainda na Grota de Angico”. “No dia 28 de julho, por volta das cinco da manhã, num ataque que durou cerca de 10 minutos, foram mortos Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros”, relata o historiador. “Apenas um soldado por nome de Adrião Pedro de Sousa faleceu no combate. As cabeças dos cangaceiros foram degoladas e levadas para exposição em Piranhas, Delmiro Gouveia, Santana do Ipanema e Maceió, depois indo a Aracaju, chegando
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finalmente em Salvador, onde ficaram expostas até 1969 no Instituto Nina Rodrigues para visitação pública, sendo as cabeças enterradas no cemitério Quinta dos Lázaros”. “De madrugada, cercaram os cangaceiros no Coito de Angico, com duas metralhadoras, armas modernas às quais eles não tinham acesso. Na refrega, Lampião morreu sem lutar e também foram mortos Maria Bonita e outros nove cangaceiros, um deles uma mulher. Outros 30 escaparam. A versão mais aceita, e correta, é de que Lampião e sua mulher morreram no combate. Há gente que diz que Lampião teria escapado e passado a viver distante dali ou de que o bando havia sido envenenado pelo coiteiro. Nada mais incorreto, eles morreram mesmo e não foram vítimas de envenenamento. Lampião, naquele dia, se descuidou da segurança, que sempre foi uma das marcas do bando”, afirma o jornalista Moacir Assunção. Alguns dos objetos que estavam com os cangaceiros mortos em Sergipe se encontram atualmente no museu do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, em Maceió. Peças de inestimável valor histórico, entre os quais fazem parte do acervo óculos, chapéu, punhal, cantil, cartucheira, mochilas, alpercata, colchas, entre outras peças. A doação desses
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objetos ao Instituto Histórico de Alagoas foi possível por conta de uma ordem do interventor Osman Loureiro (1895-1979), por meio do ofício nº 1521, datado de 29 de novembro de 1938, em Maceió, assinado por José Maria Correia das Neves (1886-1953), então secretário do Interior, Educação e Saúde do Estado de Alagoas. CANGAÇO PÓS-LAMPIÃO
Quase uma semana após o massacre em Angico, Corisco, que não estava presente com seu grupo durante o incidente, saiu como louco em busca de vingança rumo à Fazenda Patos, no município de Piranhas. Era dia 2 de agosto de 1938, quando o bandido matou brutalmente um pobre coiteiro inocente e mais cinco pessoas de sua família, imaginando ser ele o responsável pela denúncia do esconderijo de Lampião. “Essa chacina foi comandada por Corisco; quase todos da família do vaqueiro Domingos Ventura tiveram suas vidas ceifadas por degola. No outro dia, uma quarta-feira, as cabeças foram enviadas para Piranhas com um bilhete desaforado de Corisco
Corisco comandou uma chacina para vingar a morte do companheiro Lampião, abatido em julho de 1938 na grota do Angico, perto de Piranhas
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Cortesia de Sílvio Hermano Bulhões
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Depois da morte de Lampião e Maria Bonita, o cangaço cai em decadência. 1940 marca o fim desse ciclo nordestino mandando que o Prefeito da cidade, João Correia Britto, e o delegado da cidade, tenente João Bezerra da Silva, fizessem uma buchada com as cabeças da família Ventura para comemorarem a morte de Lampião”, relata Jairo Oliveira. Com a morte do Capitão Virgulino Ferreira, o bando ficou meio perdido e apenas dois grupos continuaram por pouco tempo de forma mambembe, aquém da expertise e da genialidade do antigo líder: os grupos comandados por Ângelo Roque, o Labareda, e o de Corisco, que foi morto pelo tenente Zé Rufino, no dia 25 de maio de 1940. Alguns cangaceiros passaram uns tempos na prisão e depois foram reintegrados à sociedade. Boa parte refez a vida nos estados do Sudeste e permaneceu por lá até o fim de seus dias. “Aos poucos outros cangaceiros foram se entregando, entre os quais Labareda, também líder de grupo, entre outros. Corisco
ainda ficou mais dois anos vivo, fazendo, eventualmente, alguma ação, mas com força muito reduzida”, diz Moacir. “Alguns deles se tornaram perseguidores dos antigos companheiros e outros foram presos, se regeneraram e migraram para São Paulo, casos de Zé Sereno e de sua mulher, Sila, com quem convivi muitos anos até sua morte.” “Com o fim do cangaço, lá por 1940, começava a temporada de grandes obras de infraestrutura em São Paulo, e os imigrantes estrangeiros não vinham mais porque a Europa estava em guerra. Daí, os nordestinos é que passaram a se deslocar para capital paulista, substituindo a mão de obra dos imigrantes europeus. Conheci, por exemplo, o volante Marancó, do grupo de Zé Rufino, que foi um dos trabalhadores pioneiros na construção da rodovia Anchieta, em São Paulo. Cangaceiros, volantes e coiteiros se reuniram novamente na capital paulista e até se tornaram amigos, como o caso do volante Cigano, que morreu grande amigo do cangaceiro Zé Sereno. Eles chegaram a lutar várias vezes e se reencontraram em São Paulo”, conta o jornalista. Com o fim inglório de Corisco, morria também o cangaço, após o ciclo de 170 anos de sofrimentos, mortes e muito sangue. Sua influência cultural e seu imenso legado não podem
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ser medidos. A história e a arte que surgiram desse universo tão rico permanecem para sempre como elementos vivos do imaginário nordestino e na fibra do povo sertanejo. “O Cangaço está presente na história e na cultura brasileira por sua importância como fenômeno social que durante 170 anos (de 1770 a 1940) esteve presente na formação do povo nordestino sertanejo. No cangaço surgiram elementos culturais presentes até hoje em nossas vidas, seja na música – com xaxado –, seja na literatura de cordel, na gastronomia, no modo de viver. O Cangaço representa não só um momento de nossa história, representa uma forma de viver de nosso povo, uma parcela do nosso povo esquecido pelos governantes, uma parcela de nosso povo que convive com os desmandos do Estado desde que foi o Estado Brasileiro; que convive com a seca e a fome como se fosse parte de sua vida. Ou seja, o cangaço é parte da formação de nosso povo nordestino; se o cangaço foi forjado na violência da faca e do mosquetão, foi porque eram verdadeiramente as únicas armas que o povo sertanejo faminto e esquecido possuía para lutar”, defende o pesquisador do cangaço e turismólogo residente em Piranhas Jairo Luiz Oliveira.
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Renata Baracho
ENTREVISTA
NA TRILHA DO CANGAÇO Tema fascinante e de abrangência excepcional no âmbito histórico e cultural, o cangaço possui uma série de elementos cuja mítica parece despertar eterno interesse nas pessoas. Prova disso é que, de uns tempos para cá, turistas vindos de várias regiões do país, e até do exterior, chegam às centenas no Sertão alagoano para conhecer mais sobre seu inestimável legado. É na cidade de Piranhas, tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 2004, que hoje floresce um promissor mercado para o turismo local. De acordo com Jeanine Pires, da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Turismo de Alagoas, o fluxo turístico vem aumentando
Vista do município de Piranhas, às margens do rio São Francisco, região que hoje é explorada pelo turismo: por aqui, os últimos passos de Lampião
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significativamente no interior de Alagoas. “A região se destaca em sua diversidade nos segmentos turísticos cultural, aventura e ecoturismo. A beleza exuberante dos atrativos naturais somados à cultura deslumbram os turistas que visitam nosso estado. No início, existia uma demanda de aproximadamente 820 pessoas. Hoje em dia, atendemos aproximadamente 35 mil pessoas anualmente e com qualidade”, afirma ela. “A história do cangaço é recheada de fatos que atraem a atenção de pessoas de todas as classes sociais, de todos os credos, de todas as partes do mundo”, defende o turismólogo e pesquisador do cangaço Jairo Luiz Oliveira. “O estado de Alagoas ainda não despertou
para a história do cangaço como elemento indutor do turismo. A exceção é a cidade de Piranhas, que, desde 1997, vem trabalhando o turismo voltado para o conhecimento do cangaço. Quando cito Piranhas, não me refiro à gestão municipal, e sim a alguns pequenos empresários e profissionais da área de turismo que começaram de forma tímida a explorar esse nicho de mercado.” A partir da ideia de investir na atividade turística com ênfase em sua história estreitamente ligada às andanças de Lampião e seu bando pela região, surgiu o projeto Rota do Cangaço, como explica Jairo: “A verdadeira Rota do Cangaço teve início em 1997, quando foi criado um roteiro que levava
os turistas a conhecerem os últimos dias de Lampião com visita à Grota de Angico, a partir de Piranhas. Hoje, tanto Alagoas como Sergipe se utilizam institucionalmente da Rota do Cangaço em seu portfólio de destinos turísticos comercializados. A verdadeira Rota do Cangaço contribui sensivelmente para a formação cultural das pessoas devido à experiência de viver e reviver momentos de nossa história recente, onde os elementos culturais estão presentes.” A saída do passeio no cais de Piranhas conduz os turistas em catamarãs que seguem em meio à beleza imponente dos cânions do São Francisco, rumo ao município de Poço Redondo, em Sergipe. No trajeto até a Grota
de Angico, guias relatam os acontecimentos que se deram no local, seguindo cada passo do percurso originalmente traçado pela volante do tenente João Bezerra até o esconderijo dos cangaceiros. Após a trilha, o itinerário leva os visitantes até o restaurante local, que oferece um cardápio variado de iguarias sertanejas, a exemplo da geleia de xique-xique e da famosa farofa cangaceira. Em Piranhas, vale uma visita ao Museu do Sertão. Localizado no antigo prédio da Estação Ferroviária, construída em 1881 e desativada em meados de 1964, em suas três salas o museu conserva o charme original de seu estilo neoclássico e possui um acervo de significativa relevância, mas sua maior
importância se deve ao caráter histórico do lugar, que remete ao visitante a nítida impressão de que o tempo não passou. “A existência dos elementos representativos do cangaço na cultura popular dos ribeirinhos é uma realidade que a todo tempo se mostra presente em seu dia a dia. Pois, o Sertão tem uma história rica, e a Rota do Cangaço é de suma importância, que vem fortalecendo a autoestima do povo que, hoje, se orgulha em dizer que são nordestinos e, principalmente, piranhenses, com sentimento de pertencimento”, pontua a secretária de turismo Jeanine Pires.
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