REPORTAGEM
MODERNO A REINVENÇÃO DO
Em um período marcado por transformações modernizadoras no cenário urbano, mas ainda na periferia dos grandes acontecimentos das vanguardas do início do século 20, Maceió viu surgir nos bares e cafés do Centro um vigoroso movimento intelectual. Ali, na área da Rua do Comércio conhecida por Ponto Central, conviveram alguns dos principais agentes da renovação no panorama da literatura brasileira durante a fase posterior ao Modernismo de 22. É um capítulo único, decisivo, e de influência inesgotável na história da cidade TEXTO: LUÍS
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GUSTAVO MELO
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m 1930, o inconformismo e o espírito de urgência que nortearam os caminhos do que se convencionou chamar de romance nordestino rondavam as ruas e becos do centro de Maceió. Naquele tempo, quem atravessasse a Rua do Comércio rumo à esquina do cruzamento com a Rua do Livramento, veria um imponente relógio à frente de um café conhecido na época por Bar do Cupertino, no térreo de um antigo sobrado do Ponto Central. Era nesse local, onde atualmente funciona uma ótica, que se reuniam as mais destacadas figuras da sociedade, das letras e da política na capital alagoana. Era ali que o escritor Graciliano Ramos costumava tomar café preto e fumar o seu Selma, acompanhado por um grupo mais ou menos constante de jovens escritores e jornalistas que começavam a agitar uma pequena mas muito ativa cena cultural. Como que regidos por uma inspiradíssima convergência astral, fatores circunstanciais levaram a provinciana Maceió dos anos 30 a se tornar foco de um dos mais celebrados movimentos da literatura brasileira, ao reunir entre seus moradores futuras personalidades de incontestável influência para a cultura nacional – a exemplo dos alagoanos Graciliano Ramos, Jorge de Lima e Aurélio Buarque de Holanda; da cearense Rachel de Queiroz
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e dos paraibanos José Lins do Rego e Tomás Santa Rosa Junior, entre outros. O ambiente dos encontros desse pessoal no café do Manoel Cupertino foi por muito tempo cenário de instigantes bate-papos sobre política e literatura. No entanto, as noites de boemia no estabelecimento que, naquele momento, era o centro etílico-literário da jovem intelectualidade maceioense, por vezes se estendiam a outros pontos – na direção do bairro do Jaraguá ou a visitas à residência de José Lins do Rego. Mas esse, claro, é um mundo que, física e culturalmente falando, não existe mais em Maceió. O ciclo regionalista engendrado por alguns desses escritores que fizeram parte da roda literária do Ponto Central foi responsável por criar uma via paralela ao modernismo de 1922, através de obras próximas do documentário social e fixadas na realidade das regiões mais sacrificadas
Os anos de 1930 representam um momento singular no cenário cultural em Maceió: a renovação na literatura nacional passava por aqui
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pela desigualdade gerada pelo modelo de desenvolvimento em implantação no país, durante as primeiras décadas do século 20. Por essa razão, até para tentarmos visualizar o cenário da Maceió da época em que os autores de algumas dessas obras viveram aqui, precisamos fazer um breve recuo, para melhor contextualizar o momento histórico. Em meados do século 19, as principais vias urbanas de Maceió eram a Rua do Comércio, a Rua Boa Vista e a Rua do Sol. Em direção ao sul, dois arruados também já se pronunciavam, a exemplo da hoje Rua do Livramento e da Rua Nova, atual Barão de Penedo, que ligavam respectivamente a Rua do Comércio e a Boca de Maceió ao Largo da Cotinguiba, hoje Praça Deodoro. Na condição de via mais movimentada, a Rua do Comércio logo se tornou a área onde se concentravam as principais lojas e escritórios de serviços e, com o avanço das primeiras décadas do século 20, de forma gradativa a capital assumia traços de cidade moderna, se consolidando definitivamente como centro político, econômico e administrativo do estado. “O centro irradiador da modernização do ambiente urbano de Maceió foi o Largo do Pelourinho, por abrigar os equipamentos mais importantes da administração
Felipe Brasil
pública e a maior referência religiosa da cidade, a catedral de Maceió. Os investimentos estruturais na cidade foram acontecendo para solução direta de problemas que afetavam a atividade econômica ou para apresentar Maceió como um lugar moderno e desenvolvido, capaz de atrair investimentos”, diz o jornalista e pesquisador Edberto Ticianeli. “A hoje Rua do Comércio, por exemplo, era a continuação da Estrada de Bebedouro em direção ao porto de Jaraguá, utilizada para o transporte de mercadorias. O comércio no seu entorno aconteceu naturalmente. Foi uma via que recebeu investimentos à época”, conta Ticianeli. Refletindo a situação nacional nos meados dos anos 20 e 30 do século passado, Maceió viveu uma fase de grande inquietação social, política, econômica e cultural. De acordo com o historiador Douglas Apratto Tenório, no contexto social, a agitação daquele período emergiu com as greves operárias e a influência das ideias socialistas em foco a partir da Revolução Russa de 1917. Na face política, a época registrou muitas mortes nas ruas das cidades interioranas e, no plano econômico, a crise do pós-guerra refletiu na indústria do açúcar e afetou negócios com outros produtos cultivados no estado.
Fachada de prédio histórico no centro de Maceió, onde ficava o ponto de encontro de escritores e intelectuais
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nossa capital até muito tempo depois”, diz Ticianeli. “Para se ter uma ideia, o ensino superior de Alagoas tinha sede em Pernambuco até 1931, quando foi criada a Faculdade de Direito de Alagoas”. Ticianeli vê mais um aspecto decisivo na origem da cidade: “Outro problema que atrasou na formação da nossa capital foi uma disputa entre a Vila de Santa Maria Madalena da Lagoa do Sul e o Povoado de Maceió pela primazia de hospedar a estrutura administrativa da província. De Melo e Póvoas, em 1819, até Agostinho da Silva Neves, em 1838, Alagoas viveu um impasse sobre a sua capital, que envolveu levantes e provocou algumas mortes. Essa disputa pela capital escondia, na verdade, os primeiros enfrentamentos das oligarquias alagoanas em busca do poder. A forma violenta de se resolver os desencontros entre os detentores do poder econômico em Alagoas continuou até recentemente. Os golpes e contragolpes foram marcas da política alagoana até a Revolução de 30, que, com um golpe, enquadrou por algum tempo parte das oligarquias. Assim, de 1930 a 1945, Alagoas conseguiu planejar alguma coisa para acelerar o seu desenvolvimento e consolidar a urbanização da capital”. Mesmo com tais iniciativas de modernização, Maceió manteve até os anos 60 características
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Nas primeiras décadas do século 20 a capital alagoana via sua paisagem mudar com a consolidação do perfil urbano sobre a tradição rural Reprodução
No cenário cultural, no fim dos anos 20 e início da década de 1930, temos a criação da Academia Alagoana de Letras e de grêmios que atendiam às inquietações dos jovens literatos. Nesse contexto, foram fundadas agremiações como o Cenáculo Alagoano de Letras, a Academia dos Dez Unidos e o Grêmio Literário Guimarães Passos. “No centro de Maceió, leia-se na Rua do Comércio, aconteciam as coisas”, afirma Apratto. “Fervilhavam ideias, conversas e boatos, interpretavam-se os anseios da população e discutiam-se os destinos do estado. Cafés, bares, lojas com as últimas novidades e as rodas de conversas em frente ao Ponto Central. A modernidade tardia chegava e se impunha numa sociedade conservadora, agrária, rural, senhorial e retrógrada”, diz o historiador. Os traços de modernidade verificados em Maceió ao longo das primeiras décadas do século anterior chegaram, de fato, um tanto tardiamente; e a lentidão desse processo de modernização no cenário urbano da capital está diretamente associada ao fato de a economia canavieira ter resistido por muito tempo ao avanço da industrialização em curso no país. “É preciso considerar que, na emancipação política de 1817, a capital da capitania era Recife, que continuou sendo
de uma cidade provinciana, com hábitos conservadores ditados por uma elite econômica predominantemente inculta. A consolidação do perfil urbano sobre o rural nos meados da década de 1930, claro, não deu conta de solucionar problemas antigos da capital, como o precário sistema educacional e os deficientes serviços de saúde
pública, abastecimento de água e fornecimento de luz elétrica; sem mencionar o caótico mosaico de edificações mal planejadas que pululavam na cidade. “A alfabetização no Brasil, e particularmente em Alagoas, ainda hoje apresenta grave deficiência” afirma Susana Souto, professora e pesquisadora de literatura
brasileira, do curso de Letras da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). “Na década de 30, uma parcela muito pequena da população do país e do estado sabia ler e escrever. O acesso à educação era restrito a poucos. Não saberia traçar um quadro da relação entre alfabetização e romance regionalista, mas é interessante notar como o letramento
Região da praia da Avenida (em obras) e os carros da época: a capital alagoana no início do século 20
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ou a ausência dele tem um espaço em alguns romances de Graciliano. Em Vidas Secas, é contínua a reflexão entre narrativa e linguagem, entre conhecimento e violência, entre educação e miséria”, explica a professora. “A mim, comove particularmente o processo de alfabetização de Paulo Honório, narrador protagonista de São Bernardo. Esse processo é narrado em poucas linhas, no terceiro capítulo do romance. Paulo Honório, muito pobre, submetido a terríveis condições de trabalho no espaço rural, só consegue tempo para se alfabetizar quando está na prisão, por ter surrado Germana e esfaqueado João Fagundes: ‘Então o delegado de polícia me prendeu, levei uma surra de cipó de boi, tomei cabacinho e estive de molho, pubo, três anos, nove meses e quinze dias na cadeia, onde aprendi leitura com o Joaquim sapateiro, que tinha uma bíblia miúda, dos protestantes’. Veja que terrível: você só ter tempo para aprender a ler quando está preso, fora das condições insuportáveis de trabalho que, ainda hoje, excluem os mais pobres da escola”, observa Susana. TEMPOS DE CONVERGÊNCIA
Apesar de todos esses problemas, floresceu durante
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O vigor do ambiente intelectual visto entre as décadas de 20 e 30 do século passado é marcante na história de Maceió esse período, em Maceió, um dos mais expressivos movimentos literários registrados na história do país. As raízes dessa agitação emanada do circuito das rodas intelectuais no centro da cidade remetem ao início dos anos 20, quando explodia no Sudeste a Semana de Arte Moderna – realizada em fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo –, com seu projeto de redescoberta do Brasil, através de uma visão muito particular da cultura. No Nordeste, o Modernismo encontrou resistência no Centro Regionalista, fundado no Recife por Gilberto Freyre, com seu irredutível plano de preservação das tradições e valores regionais. Não é difícil presumir que as ideias dessas duas correntes antagônicas fossem bastante discutidas e assimiladas em níveis diversos pelos jovens literatos residentes na capital alagoana. “Muitos deles já se conheciam, em especial pela identificação com o Movimento Regionalista, liderado por Freyre, cujo manifesto foi publicado na década de 20 e teve adesão de vários escritores nordestinos”, conta Susana. “José Lins escolhe vir morar
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em Maceió, onde trabalha como fiscal de bancos e logo se torna amigo de Jorge de Lima. Também nessa época estão na cidade Aurélio Buarque de Holanda, Théo Brandão, Aloísio Branco, Pontes de Miranda. Mário de Andrade passou algum tempo aqui, nesse período, e escreveu relatos sobre a cena cultural da época”. Assim, no final dos anos 20 e durante boa parte da agitada década de 30, Maceió viu surgir no Centro um raro momento de efervescência cultural, no qual a feliz casualidade permitiu reunir, num fluxo de idas e vindas, os futuros romancistas José Lins do Rego e Graciliano Ramos, o poeta Jorge de Lima, o filólogo Aurélio Buarque de Holanda, a escritora Rachel de Queiroz, o escritor e antropólogo Manuel Diégues Júnior, além dos jornalistas Valdemar Cavalcanti, Alberto Passos Guimarães, Raul Lima e o pintor e artista gráfico Santa Rosa. Outras figuras associadas ao movimento foram Emílio Maia, Mendonça Júnior, Aristeu Bulhões, Freitas Cavalcante, Arnon de Mello e Abelardo Duarte. Recém-saído da prefeitura de Palmeira dos Índios, Graciliano Ramos já tinha 39 anos quando,
Reprodução Grupo de escritores que morava em Maceió posa para foto no Centro
a convite do então governador de Alagoas, Álvaro Paes, assumiu o cargo de diretor da Imprensa Oficial do Estado, órgão que administrou por 18 meses. Em 1931, quando passou a participar dos encontros literários no centro da capital, o alagoano de Passo do Camaragibe Aurélio Buarque de Holanda ainda era estudante. Naquela época, o rapaz escrevia poemas e colaborava numa publicação cultural chamada Novidade. Criada por Valdemar Cavalcanti e Alberto Passos Guimarães, durante o período de publicação de suas 24 edições semanais, essa histórica revista ilustrada dissecou ideias, discutiu política e literatura, e comentou com acuidade o panorama
das expressões artísticas da época, com um expediente que reunia nomes como Graciliano Ramos, Jorge de Lima, José Lins do Rego, Aurélio Buarque de Holanda, Willy Lewin e Santa Rosa, responsável pela diagramação do semanário. “A revista Novidade foi um importante veículo de difusão de ideias. Serviu, principalmente, para agregar os escritores desse período. Manteve uma continuidade rara para uma revista literária, em um contexto de poucos leitores e poucas editoras. Além de textos literários, apresentava resenhas de livros recentes e traduções”, conta Susana. Em O Velho Graça: Uma Biografia de Graciliano Ramos, o autor Dênis de Moraes descreveu o cenário da época
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da seguinte forma: “Maceió, com cem mil habitantes, reunia um grupo de jovens movidos a agitação cultural. A vaga renovadora do Modernismo fornecia-lhes o oxigênio, embora não houvesse fãs incondicionais do movimento de 22. Jornalistas, poetas, romancistas e professores, quase todos seguiriam carreira literária: Aurélio Buarque de Holanda, Alberto Passos Guimarães, Valdemar Cavalcanti, Jorge de Lima, Aloísio Branco, Carlos Paurílio, Manuel Diégues Júnior, Mário Brandão, Rui Palmeira, Raul Lima, Théo Brandão, José Auto. Sem falar em José Lins do Rego, que viera trabalhar em Alagoas, e Santa Rosa”. Em geral, esse pessoal costumava se reunir nos fins de tarde no Bar do Cupertino, também conhecido por Bar Central, situado num ponto bem movimentado na Rua do Comércio, em frente ao Relógio Oficial. “As discussões sobre literatura e política estendiamse até a noite, regadas a café e cigarros. Graciliano, porém, não desprezava a cachaça ou o conhaque. Das conversas resultariam projetos
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O prédio do Ponto Central, local da convivência entre escritores, tem origem incerta e acabou não sendo preservado 34
comuns, como a Liga contra o Empréstimo de Livros e a primeira exposição individual de Santa Rosa”, escreveu Dênis de Moraes. Situado na esquina do cruzamento da Rua do Comércio com a Rua do Livramento, em épocas mais remotas, quando pertenceu ao comerciante português Francisco José da Graça, o prédio do qual esse distinto estabelecimento fazia parte em meados da década de 1930 era um sobrado colonial, e foi a primeira sede do Governo de Alagoas. “No mapa de Carlos de Mornay, de 1841, ‘Planta da Villa de Maceió’ (feito a partir de um original de 1820 que se perdeu), a edificação que se situa no lugar onde está o Ponto Central está indicada com a letra ‘a’ e assinalada em vermelho, o que significa, pelo ‘a’, que ali funcionava o Palácio do Governo e, pelo vermelho, que a construção existe ali desde pelo menos 1820”, esclarece Maria de Fátima Campello, professora-associada aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Ufal. Segundo ela, numa fotografia provavelmente registrada no fim do século 19, a edificação assinalada no mapa mostra características arquitetônicas que a vincula ao período colonial: implantada ao rés do chão, sem recuos, sem ornamentos, arcos abatidos nas
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janelas e portas, beirais (sem platibanda). Pela fotografia se vê que no pavimento térreo funcionava a Loja Iracema, com os dizeres escritos no topo de cada uma das seis portas que abrem diretamente para a rua: “Chapeos, perfumarias, phantazias, punhos e colarinhos, brins e casimiras”. No pavimento superior, seis janelas que se alinham com as portas. Ao publicar essa mesma fotografia em seu livro Maceió, João Craveiro Costa (18741934) comenta: “Sobrado que pertenceu ao português Francisco José da Graça, um dos povoadores de Maceió. Esquina da rua do Commercio com a do Livramento, onde hoje está o Ponto Central. Nêle instalouse a presidência, a secretaria do governo e a tesouraria provincial, quando da mudança da capital. Foi residência dos governadores Melo e Póvoas e Manuel Felizardo. Francisco José da Graça veio para Maceió mais ou menos em 1814, sendo casado com D. Maria da Assumpção Ferreira da Graça”. Em meados de 1922, quando foi instalado o Relógio Oficial ali em frente, e já após algumas mudanças em sua estrutura, o térreo do prédio foi ocupado pela Chapelaria Lisboa. “Comparando essa fotografia com outra imagem dos primeiros anos do século 20, que mostra exatamente essa esquina da Rua do Comércio
Reprodução Rua do Comércio, 1905: o Café Colombo reunia intelectuais em Maceió
com a Rua do Livramento, vemos não mais a Loja Iracema, mas a Chapelaria Lisboa, que toma seu lugar. Nessa fotografia capturada por Luiz Lavenère, não conseguimos identificar nenhum traço da antiga edificação na edificação nova. Identificamos apenas os mesmos arcos abatidos das janelas, mas não na edificação nova, e sim na edificação vizinha. Mesmo assim o número de janelas na edificação vizinha não é o mesmo que existe na loja Iracema. Seria essa uma edificação nova construída conquistando terreno da esquina? Ou a antiga edificação foi completamente reformada ou mesmo demolida para dar lugar à nova? Não sabemos. Um estudo aprofundado precisaria ser feito para se chegar a alguma conclusão”, afirma a professora.
Em seu livro A Construção Coletiva da Imagem de Maceió: Cartões-postais 1903/1934, Fátima Campello anotou o seguinte: “O edifício novo está construído, mas nele ainda não se instalou o Ponto Central. Nesses primeiros anos do século 20, o ponto de encontro no centro de Maceió é o Café Colombo, que se torna cartãopostal da cidade através de fotografia de Luiz Lavenère em série editada pela Livraria Fonseca em 1907”. A consolidação do espaço nessa área específica do centro da cidade como ponto de encontro dos intelectuais só aconteceu a partir de um período bem próximo à década de 30, quando o lugar recebeu o bar do Manoel Cupertino. “O Ponto Central não era só um prédio. Era toda uma área da Rua do Comércio onde as
pessoas se encontravam, jogavam bilhar e sinuca, bebericavam, namoravam, trocavam livros, compravam entrada de teatro e cinema, falavam de tudo e de todos, inclusive de literatura”, relata o historiador Douglas Apratto. E como falavam. Nas palavras do jornalista José Franklin Casado de Lima (1921-2001), aquela parte da Rua do Comércio onde ficava o Relógio Oficial – ponto de encontro não apenas de intelectuais, mas também de advogados, médicos, desembargadores, usineiro e políticos – tornouse “o centro nervoso da cidade”. “Era ali que surgiam as futricarias, os comentários, os disse-me-disse e os acontecimentos importantes”. Naquele tempo, trafegavam pela Rua do Comércio os bondes, cujo itinerário cobria
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o bairro do Bebedouro a Jaraguá, subia o Farol, rumava até Mangabeiras, ao Poço, ao Trapiche da Barra, passando pela Ponta Grossa. Próximo ao prédio do Ponto Central ficava o Capitólio, o maior e mais duradouro de todos os cinemas do Centro, espaço hoje ocupado por uma loja de eletrodomésticos. Quando surgiu, em 1913, o cinema se chamava Cinetheatro Floriano. Era época do cinema mudo e, portanto, seus administradores buscavam os serviços de uma orquestra que executava peças musicais ao vivo, para que os filmes não ficassem monótonos para a audiência. Passada a fase da década de 30 como
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Capitólio, em meados de 1941 os negócios foram assumidos por uma empresa recifense que o rebatizou de Cine-arte. Em 1957, o cinema fechou e reabriu somente dois anos depois, quando passou a ser administrado pelo Grupo Severiano Ribeiro, como São Luiz. Além dos bondes elétricos que compunham parte do cenário cotidiano de Maceió desde 1914 – e que aqui permaneceram até meados de 1956, quando foram definitivamente substituídos pelos ônibus –, trafegavam pelo centro os carrões da elite financeira. Naquela época, poucos veículos circulavam pela capital. Definitivamente, aquilo era um luxo para poucos. O número era tão reduzido
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que as pessoas na rua sabiam distinguir de quem era cada um dos automóveis. Segundo Franklin Casado, assim eram identificados os veículos: “Aquele era o Lincoln do governador Osman Loureiro; aquele outro, era o Oldmobile da família Leão; ali, o Chevrolet do Comendador Alexandre Nobre ou do chefe de polícia, Dr. Artur Jucá; mais adiante, o carro do Dr. Neves Pinto, ou do Dr. João Vasconcelos, ou ainda o Fiat, com direção à direita, do Dr. Álvaro Dória; enfim, conhecia-se de longe o V-8 do Gaspar Ferrari, as baratas do Crispim Rocha e do Carlos Lobo. Qualquer viatura era logo indicado o dono, desde a moto do cônego Tobias à ‘fobica’ do Charles Cox”. No Ponto Central, o assunto dominante das rodas era o declínio do Modernismo.
Os ecos da Semana de 22 esvaíam-se no tempo. “A geração de 22, apesar da ruidosa abertura estética, não lograra produzir um conjunto expressivo de ficção. Pior: esfacelara-se no tiroteio entre suas várias correntes (Antropofagia, Anta, VerdeAmarela). ‘O Modernismo intencional gorou’, proclamaria o crítico Tristão de Athayde, pressentindo que estávamos ‘na véspera de qualquer coisa’”, escreveu Dênis de Moraes, na biografia de Graciliano Ramos. Décadas depois, o jornalista Valdemar Cavalcanti recordou aquele período de acaloradas discussões e intensa ebulição cultural: “Éramos todos curiosidade e perplexidade. Queríamos ver o que estava acontecendo e o que iria acontecer, não em Maceió, nem em Alagoas, mas no
Brasil e no mundo. Não só na literatura, nem na arte, nem nas ciências diversas, mas na vida. Em meio às discussões mais acesas, Graciliano era sereno, tomando a sua xícara de café e fumando o seu Selma, um cigarro após o outro. Podíamos discordar de suas ideias, mas o respeitávamos como a ninguém”, relatou o intelectual, falecido em 1982. Daquela época em que frequentavam o Ponto Central, Raul Lima lembra fatos prosaicos, como a mania de Graciliano de derramar açúcar no mármore da mesa e incinerá-lo com o cigarro aceso, “disso resultando um cheiro gostoso de engenho”. Em 1935, a roda literária de Maceió acolheria Rachel de Queiroz, jovem romancista cearense que se mudara para nossa pequena capital depois de se casar com o poeta
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alagoano José Auto. A presença dela no grupo de escritores do Bar Central chocaria o conservadorismo. “Era muito escandaloso, porque naquela época mulher não ia a bar. E olha que eu só tinha 24 anos e estava sempre acompanhada de meu marido”, disse a escritora anos mais tarde. Em entrevista concedida ao jornalista Dênis de Moraes, Rachel de Queiroz contou que guardava de Graciliano Ramos a lembrança de “um amigo impecável, muito bom companheiro, de grande lealdade e gentil”. Disse ao biógrafo que, ao primeiro contato, o autor de Caetés pareceu-lhe fechado e solene. Até jogando pôquer, em casa de José Lins do Rego, com Gilberto Freyre e Olívio Montenegro, ambos a passeio em Maceió, volta e meia Graciliano não
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Maceió nos primeiros anos do século passado: linhas do bonde na Rua do Comércio, o relógio e o futuro Ponto Central
dispensava um tratamento cerimonioso: “Vossa Excelência quer cartas?”. Mas a impressão de rigidez no trato seria desfeita nos bate-papos com os intelectuais. “O Graciliano retraído se soltava quando ficava meio alto após alguns copos de cachaça. Os amigos provocavam e ele desatava a falar, principalmente de literatura. Com uma ponta de pessimismo, encerrava a discussão exclamando: ‘Isso tudo é uma palha!’”, relatou Dênis de Moraes, em seu livro. DIAS DE TURBULÊNCIA
No Bar Central, a crise política era outro assunto obrigatório. O grupo de literatos era praticamente todo antifascista e antigetulista. Apenas três
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pessoas tinham vínculos com o comunismo: Alberto Passos Guimarães, secretário regional do PCB; Rachel de Queiroz, que havia rompido com o partido e se aproximado dos trotskistas, e seu marido, José Auto. Os demais, segundo Rachel, “eram quase todos cor-de-rosa, isto é, esquerdizantes que não chegavam a ser vermelhos”. Mas nem Alberto apoiava a luta armada contra Vargas, embora tivesse que acatar a linha oficial. Graciliano encarava a Aliança Nacional Libertadora (ANL) com um misto de simpatia pela mobilização antifascista e profundas reservas quanto à sua prática política, como relataria em Memórias do Cárcere: “A Aliança Nacional Libertadora surgia, tinha uma vida efêmera em comícios,
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vacilava e apagava-se. Estaria essa política direita? Assaltavam-me dúvidas. Muito pequeno-burguês se inflamara, julgando a vitória assegurada, depois recuara”. Graciliano Ramos também desconfiava da coligação de interesses divergentes numa frente única (“isso me parecia um jogo perigoso”) e não acreditava no êxito de uma rebelião para a tomada do poder: “Em geral a revolução era olhada com medo ou indiferença. (...) Muitos anos seriam precisos para despertar essas massas enganadas e sonolentas”. VISITAS Na seleta confraria do Ponto Central, os laços de amizade que se firmavam em meio ao burburinho dos encontros
etílico-literários também atraíam visitantes de outras comarcas. Caso do então jovem romancista Jorge Amado que, após ler os originais de Caetés, de Graciliano Ramos, em posse do editor Augusto Frederico Schmidt, no Rio de Janeiro, ficou tão fascinado com a obra que resolveu viajar até Maceió para conhecer o autor.
Em livro de memórias, Navegação de Cabotagem, o baiano escreveu: “Em meados de 1933 embarquei num paquete do Lloyd Brasileiro, do tamanho de uma caixa de fósforos, o Conde de Baependi, arribando do porto do Rio de Janeiro para o porto fluvial da cidade de Penedo, no rio São Francisco, no então distante
Estado de Alagoas. Levava-me o objetivo único de conhecer pessoalmente o romancista Graciliano Ramos, nome àquela data sem qualquer ressonância junto aos leitores e aos críticos: ainda não havia editado nenhum livro. Acontecerame ler, porém, os originais de Caetés, tomara-me de tamanho entusiasmo que decidi viajar
Uma legião nordestina
Aurélio Buarque de Hollanda
Graciliano Ramos
Jorge de Lima
1910-1989
1892-1953
1893-1953
José Lins do Rego
Manuel Diégues Júnior
Rachel de Queiroz
1901-1957
1912-1991
1910-2003
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até Alagoas para comunicar ao autor minha admiração, de viva voz. Tinha eu vinte e um anos incompletos e acabara de publicar Cacau”. Ao partir do Rio de Janeiro no pequeno navio Baependi rumo a Maceió, Jorge Amado ainda faria uma escala em Aracaju, para ver uma namorada, antes de desembarcar no porto fluvial de Penedo, onde um carro conseguido pelo escritor e jornalista Valdemar Cavalcanti o conduziria à capital. Sobre aquela tarde em que visitou Maceió pela primeira vez, Jorge Amado relatou como foi a aventura. “Andando em bonde-de-burro, que ainda
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circulavam na Penedo de 1933, esperei o automóvel que Valdemar Cavalvanti, com coluna de livros em gazeta de Maceió, que o sobrinho do prefeito, enviou para me buscar. A viagem, em estrada de terra e buracos, durou o dia inteiro, cheguei a Maceió no fim da tarde, coberto de poeira, no hotel tomei um banho, saí em busca do romancista, fui encontrá-lo num bar, bebia café negro em xícara grande, cercado pelos intelectuais da terra – todos eles reconheciam a ascendência do autor ainda inédito, era o centro da roda. Ficamos amigos na mesma hora”.
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Em meio aos encontros com o pessoal que “batia ponto” nos bares e cafés do centro de Maceió, Jorge rapidamente se entrosou com os jovens escritores alagoanos, comeu sururu até enjoar e, segundo dizem, conheceu nas noites de boemia, com Aurélio Buarque de Holanda como guia turístico, uma jovem que inspiraria uma das personagens de Jubiabá. “Jorge Amado não só conheceu os escritores e intelectuais reunidos em Maceió à época – esse espantoso grupo de jovens, alguns dos quais se tornariam dos melhores ficcionistas, críticos literários e intelectuais
do Brasil –, como muitos deles se fizeram amigos dele ao longo de toda a vida. É o caso, entre outros, de José Lins do Rego, cuja interferência junto ao governo de Getúlio foi fundamental para a libertação de Graciliano da prisão da Ilha Grande, onde o escritor fora jogado sem qualquer acusação específica, experiência que relatou em Memórias do Cárcere; de Valdemar Cavalcanti, Aurélio Buarque de Holanda, Manuel Diégues Júnior, Alberto Passos Guimarães...”, disse à nossa reportagem a escritora e historiadora Janaína Amado, sobrinha do romancista baiano. Em relação às impressões que Jorge Amado teve de Maceió, quando de sua primeira visita à cidade, o repórter quis saber de Janaína se o seu tio, alguma vez, comentou algo a respeito. “Não me lembro de ele ter citado Maceió no contexto dessa primeira visita à cidade, para se encontrar com Graciliano, pois era um fato muito recuado
Obras de impacto na literatura brasileira foram publicadas naquela época pelo grupo de escritores que residia em Maceió
no tempo. Mas sei que gostava muito da cidade – disse-me isso algumas vezes –, da beleza das praias, da hospitalidade da gente. Jorge retornou várias vezes a Maceió, algumas justamente para homenagear Graciliano, seu grande amigo e grande admiração literária. Jorge se tornou também muito amigo de Heloísa, mulher e depois viúva do velho Graça. Conforme o escritor relatou, as duas famílias se tornaram depois parentes entre si. Em Maceió, Jorge continuou a fazer ótimas amizades, gente como Anilda Leão e Carlos Moliterno, Théo Brandão, Solange e Pierre Chalita, entre outros”, disse a escritora. O ROMANCE DE 30
No clima inspirador da época, um conjunto respeitável de títulos identificados com o que se convencionou chamar de romance regionalista foi apresentado aos leitores. São desse período: Menino de Engenho, de José Lins do Rego; Caetés, de Graciliano Ramos; João Miguel, de Rachel de Queiroz; A Bagaceira, de José Américo de Almeida; O País do Carnaval e Cacau, de Jorge Amado; Os Corumbas, de Amando Fontes, e CasaGrande e Senzala, de Gilberto Freyre, entre outros. Algumas dessas obras foram escritas quando seus autores viviam em
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Alagoas naquele período, em meados dos anos 20 e 30. Os escritores da chamada Geração de 30, apesar de compartilharem ideias em comum, não constituíram um círculo voltado para um único projeto literário politicamente consolidado. Cada um deles seguiu seu próprio caminho, com estilos narrativos e achados poéticos muito particulares. Como escreveu o jornalista Dênis de Moraes, em análise precisa que ilustra bem o fato, “Graciliano Ramos, na sua singularidade, acrescentará ao regionalismo o estilo requintado, a expressividade da linguagem, o vigor crítico do realismo e a densidade psicológica”. Por esse mesmo caminho, deve-se combater a simplificação quanto ao universo temático e aos estilos individuais. “Mesmo a adesão ao regionalismo é algo bastante diverso. Há mais diferenças do que semelhanças nos textos de José Lins do Rego e Graciliano Ramos. A classificação da obra de Graciliano como regionalista é bastante controversa, uma vez que seus temas não estão restritos ao espaço rural do Nordeste e a seus problemas. Como muitos críticos já destacaram, o regional é espaço para abordagem de questões que são universais, como a desigualdade, o poder, a reflexão acerca da linguagem, entre outros”, analisa Susana.
ano VIII / nº 25 / 2015
REPORTAGEM
Desde o primeiro momento em que o chamado Ciclo do Romance Nordestino se pronunciou, Graciliano Ramos demonstrou publicamente sua admiração por autores como José Lins do Rego, Jorge Amado e Manuel Bandeira, entre outros. Como verdadeiro entusiasta, ele analisou e divulgou o movimento de maneira sóbria, mas contundente. Em artigo veiculado pelo Diario de Pernambuco, em 10 de março de 1935, sob o título “O Romance do Nordeste”, o alagoano elogiou os romancistas por terem recusado importar “retalhos de coisas velhas e novas da França, da Inglaterra e da Rússia”, e optado por vivenciar os problemas da terra e transpô-los literariamente. “Era indispensável que os nossos romances não fossem escritos no Rio, por pessoas bem-intencionadas, sem dúvida, mas que nos desconheciam inteiramente. Hoje desapareceram os processos de pura criação literária. Em todos os livros do Nordeste, nota-se que os autores tiveram o cuidado de tornar a narrativa, não absolutamente verdadeira, mas verossímil. Ninguém se afasta do ambiente, ninguém confia demasiado na imaginação (...) Esses escritores são políticos, são revolucionários, mas não deram a ideias nomes de
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1939 marca o fim de um ciclo: acaba a “Roda de Maceió”, como era conhecido a turma que convivia entre as mesas do lendário Ponto Central pessoas: os seus personagens mexem-se, pensam como nós, sentem como nós, preparam as suas safras de açúcar, bebem cachaça, matam gente e vão para a cadeia, passam fome nos quartos sujos duma hospedaria”. Em seguida, Graciliano profetiza: “Estamos ainda no começo, mas um excelente começo que nos dá grande quantidade de volumes todos os anos. (...) O que é certo é que o romance do Nordeste existe e vai para diante”. O MOMENTO DA DIÁSPORA
Após quase uma década de inspiradora socialização nos encontros boêmios, o movimento começou a se dispersar sob a pressão dos terríveis anos da Revolução de 30. Mas não só por essa razão; também por outros motivos, como a própria aridez alagoana à atividade intelectual. Afinal, não deve ter sido nada fácil para esse pessoal articular seus
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projetos, publicar seus livros e ainda encontrar espaço para trabalhar nos jornais, num lugar com poucos veículos de imprensa e uma população tão numerosa de analfabetos. É a tal “diáspora caeté”. “No geral, os movimentos literários eram restritos a uma pequena parcela da população, já que tínhamos muitos analfabetos e também precárias condições de circulação de livros na cidade, o que levou muitos dos escritores a migrar para o Rio de Janeiro, onde estavam os grandes jornais e as principais editoras”, aponta Susana. No final dos anos 30, quase todos aqueles escritores se encontraram novamente na então capital da República, levados por motivos políticos, pessoais e profissionais. O ano de 1939 marcou em definitivo o fim do movimento literário da capital, em torno da chamada “Roda de Maceió”. Com o esvaziamento da cena literária protagonizada pelos escritores e poetas que frequentaram o Ponto Central, nunca mais surgiu na cidade outra mobilização cultural urgente e engajada. A movimentação literária, claro, continuou com novos autores, alguns deles certamente muito bons. Mas não era a mesma coisa. E mesmo um ou outro desses talentos surgidos nos anos 40 acabaram migrando da mesma forma para o Rio de Janeiro. Para alguns, o
Pouco movimento e pedestres alinhados nas ruas do Centro – um dos cenários mais representativos da cidade
cenário literário da capital entrou em decadência em meados da década de 1950, e a efervescência experimentada no círculo intelectual da Geração de 30 não mais se repetiu – o que talvez possa provocar uma velha pergunta: por que hoje não existe agitação cultural de alcance semelhante em Maceió? Ou melhor, tal pergunta faz mesmo algum sentido? Provavelmente, não. “Não vivemos mais em uma época de movimentos literários articulados, com escritores que se identifiquem como um grupo, com programas e manifestos”, explica Susana Souto. “Há, hoje, o convívio de diversas, e, não raro, conflitantes, noções de literatura, de arte. A noção de literatura se ampliou bastante, alargou seus limites, bem como seus procedimentos de difusão e recepção; vivemos um contexto de ‘extensão
e incerteza da noção de literatura’ (para citar um título da pesquisadora Règine Robin), que dificulta ou mesmo impede a criação de grupos com visões estáveis e programas definidos”. E para além da ausência de movimentação de uma cena literária, por que hoje não aparecem autores que apresentem algo com brilho e relevância à altura da Geração de 30? “Não sei se de fato a reunião desses escritores em Maceió, nas décadas de 20 e 30, tinha relevância para a cidade como um todo. Atingia um grupo muito específico, os leitores e leitoras daquele período, a parcela que tinha acesso ao texto literário”, pondera Susana. “Era circunstancial, tanto que não resultou na criação de editoras, de muitas livrarias, de um amplo processo de publicação de autores locais. Muitos que
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pretendiam continuar suas carreiras literárias foram para o Rio. Graciliano, como todos sabem, foi preso e decidiu nunca mais voltar a Alagoas, o que de fato cumpriu”. Há muitos anos completamente desfigurado, o prédio do histórico Ponto Central em nada lembra a arquitetura que abrigou o formidável grupo de intelectuais e que testemunhou um período singular nesses 200 anos de Maceió. Tudo mudou naqueles arredores. Ou quase tudo. Mesmo com a região perdendo relevância comercial após os shoppings, a energia urbana do fervilhar de gente continua dando vida à Rua do Comércio, à Rua Boa Vista, à Praça Deodoro... Caminhar pelo Centro, demorar-se em seus becos, esquinas e recantos afia nossa sensibilidade, revira a memória e aguça a imaginação.
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