Entrevista Laurentino Gomes

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Consagrada nos EUA, na Europa e no Japão, Rosa Passos interpreta canções de Djavan em show em Maceió. B4

DIVULGAÇÃO

HISTÓRIA. Tema de grande importância para a compreensão dos caminhos que nosso país tomou na tentativa (em andamento) de se organizar como nação, o cenário sócio-político brasileiro do século 19 é o objeto de investigação do jornalista e escritor Laurentino Gomes, que há cerca de uma década se dedica ao estudo do período. Autor dos best-sellers 1808 e 1822, sobre a fuga da corte portuguesa para o Rio de Janeiro e a Independência do Brasil, o respectivamente, o pesquisador acaba de fechar a trilogia com a publicação de 1889, dedicado a um dos mais contraditórios episódios de nossa história, a Proclamação da República. Em entrevista à Gazeta, ele fala da obra – e de suas revelações surpreendentes. Não dá para perderr ALEXANDRE BATTIBUGLI/DIVULGAÇÃO

Para Laurentino, 1889, o último livro da trilogia sobre a trajetória política e social do país no século 19, é o melhor e mais bem acabado dos três volumes

Domingo 13/10/2013

UM PAÍS EM CONSTRUÇÃO LUÍS GUSTAVO MELO REPÓRTER

Não é raro a história ser contada a partir de mitos e heróis apresentados como exemplos de nobreza para as futuras gerações. Nesses casos, a realidade é a última a aparecer. Mas poucos episódios são tão contraditórios e cheios de detalhes (deprimentes) quanto a queda da monarquia e os primeiros anos da república no país. Um dos eventos mais controversos e conturbados da história brasileira, a Proclamação da República é o tema de 1889 – Como um Imperador Cansado, um Marechal Vaidoso e um Professor Injustiçado Contribuíram para o Fim da Monarquia e a Proclamação da República no Brasil, livro do jornalista e escritor Laurentino Gomes que fecha a trilogia sobre a conturbada trajetória política e social do país, iniciada com 1808, que relata a fuga da corte portuguesa de Dom João VI para o Rio de Janeiro, e continuada com a publicação de 1822, que trata da Independência do Brasil. “Muitas das características do país atual, seus defeitos e virtudes, aí incluindo o regime de toma-lá-dá-cá em Brasília, a corrupção, a desigualdade social e a ineficiência do governo, têm raízes fincadas nesse período”, escreveu o autor, que argumenta ser quase impossível compreender o Brasil de hoje sem estudar as três datas abordadas na trilogia, cujos desdobramentos reverberam até os nossos dias.

MERGULHO Com a mesma linguagem e usando também a fórmula editorial que caracterizou os dois best-sellers anteriores – estão lá o recurso do subtítulo longo e chamativo e o bom humor representado por inúmeros detalhes pitorescos e surpreendentes sobre os personagens e acontecimentos do período –, o livro propõe ao leitor um novo mergulho em uma grande reportagem. Resul-

tado de três anos de pesquisas, nos quais o autor vasculhou o vasto acervo da Biblioteca Oliveira Lima, em Washington, onde estão arquivados mais de 40.000 documentos relacionados ao império e aos anos iniciais da República, 1889 aborda ainda fatos históricos importantes como a Guerra do Paraguai e o movimento abolicionista, onde muitos dos republicanos se engajaram. Equilibrando análises aprofundadas a uma linguagem leve e acessível, típica do melhor texto jornalístico, a partir de um esmerado trabalho de pesquisa Laurentino Gomes traça um perfil da sociedade brasileira daquela época, jogando luz sobre acontecimentos obscuros dos bastidores da Proclamação da República, além de apresentar personagens até então praticamente desconhecidos, mas de grande relevância para o entendimento das motivações, inseguranças e ações intempestivas de figuras por muito tempo apresentadas em livros didáticos como heróis. Numa entrevista no mínimo esclarecedora, o escritor falou à Gazeta sobre seu novo livro e, claro, sobre nossas duas “grandes contribuições” para a política nacional: os marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. É o que você lê a seguir. Não perca.

Gazeta. 1889 fecha uma trilogia na qual o senhor se debruçou sobre três episódios marcantes da história do Brasil. Como surgiu o interesse de investigar o ambiente social e político do país no século 19? A ideia de uma trilogia era algo que o senhor pretendia desde o momento em que elaborou 1808? Laurentino Gomes. O plano de fazer uma trilogia foi surgindo ao longo do caminho. Seis anos atrás lancei primeiro o livro 1808, sobre a chegada da corte portuguesa de D. João. A repercussão foi enorme. Nunca imaginei que um livro de História do Brasil tivesse tamanha

acolhida entre os leitores. Isso me animou a escrever o segundo volume, 1822, sobre a Independência do Brasil, consequência direta da fuga da corte para o Rio de Janeiro. Em seguida, os próprios leitores começaram a me pedir que escrevesse sobre 1889 e a Proclamação da República. Era uma escolha óbvia. Essas três datas explicam a construção do Estado brasileiro ao longo do século. Funcionam como o nosso código genético do ponto de vista institucional, burocrático e administrativo porque explicam a forma como nós, brasileiros, nos organizamos como nação independente e soberana ao romper os nossos vínculos com Portugal. Portanto, para entender o Brasil de hoje é preciso estudá-las.

Durante a elaboração de 1889, você se sentiu pressionado no sentido de repetir o êxito editorial dos livros anteriores? O segundo livro, 1822, sobre a Independência, foi o mais difícil de fazer. Depois de lançar 1808 na Bienal do Livro do Rio de Janeiro de 2007, fui pego de surpresa pela enorme repercussão da obra que, até agora, já vendeu mais de um milhão de exemplares. O sucesso dessa primeira obra, de certa forma, pesou sobre os meus ombros na hora de pesquisar e escrever a segunda. Tive até de recorrer a um processo de terapia que, ao longo de três anos, me ajudou a assumir, definitivamente, a minha vocação de escritor. Hoje sinto-me mais leve e livre para continuar escrevendo. E acredito que isso também se reflete nesse terceiro livro, 1889, para mim o melhor e mais bem acabado dos três. Ao longo do estudo que resultou neste livro sobre a Proclamação da República, quais aspectos mais o surpreenderam? Um aspecto que me surpreendeu bastante durante as pesquisas foi o descolamento entre as promessas e a prática republicanas. Antes de 1889, propagan-

distas republicanos como Quintino Bocaiúva, Saldanha Marinho e Rui Barbosa defendiam liberdades civis, ampliação do direito do voto e outras promessas que não se cumpriram. No ano da Proclamação da República, cerca de 80% dos brasileiros eram pobres e analfabetos. Os escravos, libertados no ano anterior pela Lei Áurea, tinham sido abandonados à própria sorte. E assim continuaram no regime republicano. Os mesmos cafeicultores, fazendeiros e coronéis que mandavam na política do Segundo Império continuaram a dar as cartas nos primeiros anos da República, pelo menos até 1930. A fraude eleitoral, responsável pelo chamado voto de cabresto, era uma das principais características do Brasil monárquico e continuou impávida no Brasil republicano. O regime só mudou de nome, mas a estrutura política se manteve intacta. Como resultado disso, a república se impôs como fato consumado no Brasil mais pela inércia do império do que pela força dos ideais republicanos.

Em diferentes gradações, os três volumes da trilogia relatam a presença de personagens femininas em meio a momentos cruciais da história do país. Em 1889, o senhor traz à luz a figura de uma baronesa que, indiretamente, pode ter sido a causadora do fim da monarquia no Brasil. Quem foi essa mulher? A gaúcha Maria Adelaide Andrade Neves Meireles, conhecida como a Baronesa de Triunfo, era filha do general Andrade Neves. Ela foi pivô de um caso de amor e ciúmes envolvendo o marechal Deodoro da Fonseca e o senador Gaspar da Silveira Martins, líder do Partido Liberal no Rio Grande do Sul. Em 1883, quando era presidente da Província, Deodoro perdeu para Silveira Martins a disputa pelo coração da baronesa que, segundo testemunhas da época, seria uma viúva bonita, quarentona e fazen-

deira na região de Rio Pardo. Desse episódio surgiu uma rivalidade que teria desdobramentos na Proclamação da República. Como explico no livro, em momento algum do dia 15 de Novembro de 1889 Deodoro proclamou a república. Apenas liderou o golpe militar que derrubou o gabinete do Visconde de Ouro Preto, acusado pelo marechal de perseguir o exército e seus oficiais. Deodoro só mudou de posição e concordou com a troca de regime na madrugada do dia 16 ao saber que o imperador Pedro II chamara para compor um novo ministério o senador Silveira Martins. A república teria em Maria Adelaide, portanto, uma madrinha secreta, cuja existência raramente aparece nos livros da História oficial.

Qual a origem das desavenças entre Deodoro e o concelheiro do Império Gaspar Silveira Martins? O suposto romance com Maria Adelaide foi um fator apenas secundário nessa rivalidade. Deodoro da Fonseca e Silveira Martins eram, na verdade, inimigos irreconciliáveis na política gaúcha. No final de 1888, Deodoro estava em Mato Grosso, praticamente desterrado pelo governo imperial, que o queria longe do Rio de Janeiro, quando recebeu a notícia de que Silveira Martins acabara de ser nomeado para a presidência da província do Rio Grande do Sul. Foi a gota d’água em um pote que já transbordava de mágoa. Irritado com o que julgava ser uma afronta direta aos seus brios pessoais, o marechal abandonou o posto matogrossense sem antes pedir autorização e tomou um navio de volta ao Rio de Janeiro, onde proclamaria a república na madrugada de 16 de novembro de 1889 ao saber que o imperador Pedro II chamara o mesmo Silveira Martins para compor um novo ministério no lugar do Visconde de Ouro Preto, que Deodoro derrubara na manhã do dia anterior. ‡ Continua na pág. B2

Os desafios da trilogia “A maior dificuldade foi tentar separar mito de fatos e personagens reais. Muitos acontecimentos da História do Brasil permanecem cercados de grande controvérsia que, muitas vezes, se reflete na forma contraditória com que são narrados ou interpretados nos livros. A Proclamação da República é um exemplo disso. Na bibliografia sobre o tema há visões, depoimentos e interpretações que frequentemente se contradizem, algumas favoráveis à monarquia e a Dom Pedro II e outras contra o império e a favor dos líderes republicanos. Em razão dessas disputas, a própria versão dos acontecimentos de 1889 é confusa. Alguns relatos dizem que, antes de entrar na sala do Visconde de Ouro Preto e destituir o ministério, na manhã de 15 de novembro, o marechal Deodoro teria dado um ‘viva’ ao imperador. Outros negam essa saudação. Alguns livros afirmam que, antes de partir para o exílio, o imperador teria aceitado do governo republicano uma milionária ajuda financeira. Outros, que teria recusado (o que, de fato, fez de forma oficial ao chegar à Europa). Como não consegui esclarecer todas as dúvidas, no meu livro eu me limito a citar as duas versões e suas respectivas fontes.”

Título: 1889 – Como um Imperador Cansado, um Marechal Vaidoso e um Professor Injustiçado Contribuíram para o Fim da Monarquia e a Proclamação da República no Brasil Autor: Laurentino Gomes Editora: Globo Livros Preço: R$ 44,90 (416 págs.)


B 2 Caderno B

GAZETA DE ALAGOAS, 13 de outubro de 2013, Domingo

CONTINUAÇÃO DA PÁG. B1. Personagem central do golpe que derrubou o Império em 15 de novembro, Deodoro da Fonseca, embora genioso, era incapaz de aceitar vantagens pessoais em troca de favores ou prestígio político: “Sua participação se deveu mais a mágoas e desavenças pessoais do que a convicções políticas”, frisa Laurentino Gomes

“UM HOMEM VAIDOSO, INTEMPESTIVO, RANCOROSO E DE GÊNIO DIFÍCIL” LUÍS GUSTAVO MELO REPÓRTER

Gazeta. 1889 descreve que naquele momento pré-revolução, além de fracos eleitoralmente, os republicanos estavam divididos. No calor da urgência em derrubar o regime vigente, o golpe militar era a única forma de destituir o poder do monarca? Laurentino Gomes. A chamada Questão Militar foi o fator mais decisivo para a queda da monarquia e a proclamação da república no Brasil. Nos últimos anos do reinado de Pedro II, o Exército estava em confronto com o governo imperial. Ao final da Guerra do Paraguai, em 1870, os militares perderam prestígio na cena política brasileira. Os soldados foram congelados e os efetivos, diminuídos. Alguns pequenos incidentes regionais, como uma auditoria nas contas de um quartel no Piauí, contribuíram para atear lenha à fogueira. Os republicanos, que até então estavam divididos e não tinham votos, aproveitaram-se da crise para atiçar ainda mais os militares contra o governo. Por fim, embarcaram na canoa golpista do marechal Deodoro da Fonseca. Em meio às pressões e à insegurança quanto ao peso da decisão que tinha de tomar naquele momento em que se daria a mudança de regime político, qual era o estado de espírito do marechal Deodoro? Na história oficial, o marechal Deodoro da Fonseca é o herói que proclamou a república. É assim que ele aparece no famoso quadro do pintor Henrique Bernardelli, a mais conhecida imagem da Proclamação da República, reproduzida em quase todos os livros didáticos. Mas essa é só a versão oficial dos acontecimentos. Na verdade, Deodoro foi mais um instrumento do movimento republicano, onde despontavam outros dois personagens mais importantes do que ele, o jornalista Quintino Bocaiúva e o tenente-coronel Benjamin Constant. Dos dois, Benjamin é o mais injustiçado pela história oficial. Foi ele o cérebro da revolução de 1889, “o catequista, o apóstolo, o evangelizador, o doutrinador, a cabeça pensante, o preceptor, o mestre, o ídolo da juventude militar”, na definição do historiador José Murilo de Carvalho. A Deodoro caberia um papel simbólico importante, o de catalisador das energias do meio militar. Mas sem a prévia ação doutrinadora de Benjamin, porém, é possível que Deodoro sequer tivesse tropas a comandar naquele dia. Na escola, a gente aprende que os agentes da Proclamação da República foram grandes heróis, figuras que protagonizaram nobres conquistas. A que o senhor atribui essa deturpação, em favor da criação de mitos que não correspondem à realidade? É importante levar em conta que a História não é uma ciência exata, como a Matemática. Perso-

nagens e fatos históricos foram reais e, em princípio, não deveriam mudar porque estão congelados no passado. Ainda assim, a história deles muda o tempo todo pela forma como nós, das gerações futuras, olhamos o passado. É um fenômeno semelhante ao da Geologia, em que novas camadas de solo vão se sobrepondo às anteriores até alterar por completo, ao longo de muitos anos, a superfície do planeta. Assim também é a história, alvo de uma eterna gama de mitos que vão sobrepondo os anteriores. Ou seja, a forma como nós observamos o passado alterar o próprio passado. Isso ocorre porque a história é uma ferramenta de construção de identidade. Nós estudamos e interpretamos o passado em busca de explicações para o que nós somos hoje. Então, ao ensinar história para crianças e adolescentes, é fundamental explicar os mitos que se criaram a respeito dos personagens e acontecimentos ao longo do tempo. E também porque esses mitos foram criados. Geralmente, eles refletem aspirações, valores e necessidades das sucessivas gerações de brasileiros enquanto buscavam construir sua própria identidade nacional.

se vê nos livros sobre a Proclamação da República. A facilidade com que se derrubou um regime e se proclamou outro na manhã de 15 de novembro, sem reação popular, sem troca de tiros, sem protestos, parecia confirmar, uma vez mais, um mito de que as transformações políticas brasileiras se processam sempre de forma pacífica. Essa imagem, no entanto, se desfoca por completo quando se avança um pouco no calendário. Derrubada a monarquia, o sonho de liberdade e ampliação dos direitos rapidamente se dissipou. Em alguns anos, o país estava mergulhado na ditadura sob o comando de Floriano Peixoto, a quem ainda hoje se atribui o papel de salvador da república. Exemplo disso foi a chamada Revolução Federalista, guerra civil travada no sul do país entre 1893 e 1895, mesma época da Revolta da Armada, na qual morreram cerca de 12 mil pessoas. Em seguida, o país testemunhou a terrível Guerra de Canudos, na qual o Exército brasileiro se viu humilhado pelos jagunços de Antônio Conselheiro. Ou seja, o sangue que deixou de correr em 1889 jorrou com profusão nos dez anos seguintes.

Como o senhor descreveria a atuação de Deodoro da Fonseca no comando da República? Foi desastrosa. Durante o primeiro ano do governo provisório republicano, a rotatividade nos governos estaduais foi altíssima. Havia dificuldades de toda a natureza pela frente, a começar pela falta de quadros republicanos para ocupar os postos chaves da administração e a pouca experiência dos novos governantes. O Rio Grande do Norte teve dez administrações. Minas Gerais, 13; Paraná, 11; Pernambuco, oito; e Sergipe, sete. Habituado à vida na caserna e desconfiado das reais intenções dos civis, que ele conhecia pouco, Deodoro preferiu de início delegar esses cargos aos seus companheiros de armas. Por essa razão, os militares dominaram por completo a cena política brasileira. Uma reforma financeira e bancária decretada por Rui Barbosa, então ministro da Fazenda, gerou a primeira grande corrida especulativa no Brasil, chamada Encilhamento. A inflação atingiu níveis altíssimos. Muitos ministros pediram demissão. Em meio ao nervosismo, Deodoro chegou a desafiar Benjamin Constant para um duelo durante uma reunião ministerial. O resultado de todo esse bate-cabeça foi o fechamento do Congresso e a renúncia de Deodoro em novembro de 1891.

No capítulo O Caboclo do Norte, o senhor escreveu que o marechal Floriano Peixoto sempre foi um enigma para historiadores, jornalistas, biógrafos e cronistas. Que perfil traçaria do “Marechal de Ferro”? Floriano Peixoto é o personagem mais enigmático de toda a história da Proclamação da República. Ao contrário de Benjamin Constant e do próprio Deodoro da Fonseca, Floriano nunca chegou a conspirar abertamente contra o governo imperial durante a chamada Questão Militar. O tempo todo se manteve em cima do muro, hora dando a entender que defenderia a monarquia contra os revoltosos, ora sinalizando aos militares que poderiam contar com seu apoio – ou, pelo menos, com a sua omissão – no caso de um golpe republicano. O Visconde de Ouro Preto o acusou de traição devido às atitudes dúbias que adotou no dia 15 de novembro de 1889. Depois da renúncia de Deodoro, em 1891, Floriano conduziu o governo mais tenso e violento dos primeiros anos da República. Ao assumir o cargo, encontrou pela frente, entre outros obstáculos, uma crise financeira sem precedentes, profundas divergências entre as lideranças republicanas, a oposição da Marinha, ameaçando bombardear a capital, e uma crise política no Rio Grande do Sul que logo se converteria em guerra civil. Enfrentou todos esses problemas de forma obstinada, subjugando implacavelmente a todos os que ousaram atravessar-lhe o caminho. Por isso, passou para a História como “Marechal de Ferro”. Acredito que Floriano encarnou como ninguém um mito recorrente na história brasileira – o do salvador da pá-

No livro, temos o relato de que a transição do regime monárquico para o republicano representou apenas uma mudança de nomenclatura. Qual o balanço da primeira década da República e o quão traumática foi essa transição? Um passeio militar é a descrição mais comum que

REPRODUÇÃO

Em 1889, o jornalista e escritor desvenda a personalidade do marechal que marcou para sempre a história do Brasil

PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA, POR HENRIQUE BERNARDELLI

CIRCUNSTANCIAL “Acredito que Deodoro da Fonseca foi um refém das circunstâncias da História. Os republicanos civis estavam divididos, não tinham votos e não viam perspectivas de chegar ao poder pelas urnas”, diz o autor de 1889, ao falar sobre o papel do marechal que ‘proclamou a República’

“Muito do que ocorre hoje no Brasil, incluindo as manifestações de rua, tem raízes na distância entre as promessas e os sonhos republicanos. Por quase um século nós convivemos com uma república de prática monárquica, na qual o povo foi sistematicamente mantido à margem de qualquer possibilidade de participação. A construção e a organização das instituições nacionais nesse período se deram sempre de cima para baixo, como nos tempos do império. Era sempre um ditador ou um líder forte, como Getúlio Vargas, ou um general, como os presidentes do regime de 1964, que se encarregava de organizar as coisas. O brasileiro participou pouco da construção do Estado nacional. Por isso, essa sensação de estranheza entre Estado e sociedade que se observa hoje”

tria. Apresentava-se como o guerreiro forte, austero e solitário, que, imbuído de bons propósitos, conseguia resgatar a pátria de suas mais profundas atribulações. Isso talvez explique a surpreendente popularidade que alcançou ao final da vida, apesar do seu notório desprezo pela opinião pública. Como sucessor de Deodoro, recusou a residência oficial e continuou a morar na mesma casa modesta de subúrbio, onde viveria até morrer.

Após investigar a história do panorama político e social brasileiro do século 19 ao longo de uma extensa pesquisa, em que aspectos o senhor diria que os acontecimentos e práticas administrativas daquele período influenciam e atingem o Brasil atual? Muito do que ocorre hoje no Brasil, incluindo as manifestações de rua, tem raízes na distância entre as promessas e os sonhos republicanos. Por quase um século nós convivemos com uma república de prática monárquica, na qual o povo foi sistematicamente mantido à margem de qualquer possibilidade de participação. A construção e a organização das instituições nacionais nesse período se deram sempre de cima para baixo, como nos tempos do império. Era sempre um ditador ou um líder forte, como Getúlio Vargas, ou um general, como os presidentes do regime de 1964, que se encarregava de organizar as coisas. O brasileiro participou pouco da construção do Estado nacional. Por isso, essa sensação de estranheza entre Estado e sociedade que se observa hoje. Os brasileiros não se reconhecem no que está em Brasília. Querem um país melhor, mais eficiente, mais ético e menos corrupto. Acredito que isso seja também resultado de uma experiência inédita na nossa história, que são os quase 30 anos de

democracia, sem rupturas, desde a campanha das Diretas Já, em 1984. As manifestações de rua fazem parte dessa nova equação política em que o povo brasileiro reivindica, finalmente, o direito de participar ativamente da organização do futuro. É uma jornada difícil e tortuosa, às vezes até assustadora, mas não existe outra forma de construir um país no qual todos os seus cidadãos se reconheçam.

Por fim, poderíamos dizer que o marechal Deodoro foi, na linguagem popular, um ‘traíra’? Acredito que Deodoro da Fonseca foi um refém das circunstâncias da História. Os republicanos civis estavam divididos, não tinham votos e não viam perspectivas de chegar ao poder pelas urnas. A mocidade militar de Benjamin Constant era ardorosa, mas não tinha capacidade de mobilizar as forças armadas contra o Império. Por isso, todos viam em Deodoro a única figura com autoridade moral para assumir a liderança do golpe. Deodoro era um “tarimbeiro”, como eram chamados os militares veteranos da Guerra do Paraguai, com escassa formação intelectual, mas grande experiência nos campos de batalha e nas dificuldades da vida na caserna. Era um homem vaidoso, intempestivo, rancoroso e de gênio difícil. Até as vésperas da Proclamação da República era monarquista convicto e dizia-se amigo do imperador Pedro II. Em 1888, numa troca de cartas com um sobrinho, também militar, afirmou que a república no Brasil seria uma tragédia. Sua participação no golpe de 15 de novembro se deveu mais a mágoas e desavenças pessoais do que a convicções políticas. Mas tudo indica que era também um homem honesto, íntegro, incapaz de aceitar vantagens pessoais em troca de favores ou prestígio político. ‡


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