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CINEMA. Ao lançar um olhar sobre o universo do amor e das
Cinema de ação tenta recuperar espaço nas salas. B5
dolorosas consequências de um ‘par de chifres’, em seu segundo longa-metragem a documentarista Ana Rieper se propõe a investigar o imaginário romântico, erótico e afetivo no Brasil. O resultado desse ‘exame’ é Vou Rifar Meu Coração, filme que se debruça sobre o tema a partir de um coro de vozes composto por depoimentos de celebridades da música popular romântica como Wando e Amado Batista e pelo testemunho de pessoas comuns – que revelam como as canções bregas acabam por servir de válvula de escape, aliviando seu sofrimento
Quarta-feira 08/08/2012
ESTUDANDO
O BREGA LUÍS GUSTAVO MELO REPÓRTER
Pare um minuto só, e pense. O que seria música brega para você? No momento em que o ser humano se vê às voltas com a angústia existencial (aparentemente) irremediável causada por um ‘par de chifres’, o sofrimento de um vendedor de tapioca é diferente do de um proeminente executivo da indústria alimentícia? E por que é bacana ouvir Eu e a Brisa, de Johnny Alf, e o fim da picada remoer as feridas ao som de Amado Batista? Em tese, o que se convencionou chamar de ‘música brega’ nada mais é do que uma degeneração das canções de motel do Rei Roberto Carlos de meados da década de 1970, compostas por um pessoal que carrega um pouco mais nas tintas. Até mesmo Tim Maia foi chamado de brega quando gravou composições da famigerada dupla de hitmakers Sullivan & Massadas, na década de 80. Em cartaz no Cine Sesi, no documentário Vou Rifar Meu Coração, da carioca Ana Rieper, essas questões não chegam a ser necessariamente o foco da produção. O que interessa à realizadora é ‘apenas’ investigar a forma com a qual o brasileiro comum se relaciona com as canções populares ditas ‘românticas’. Logo nos primeiros minutos do filme, o cantor Wando (19452012) aparece tentando explicar o conceito de ‘mau gosto’ atribuído ao gênero. “Imagine uma pessoa que nunca deu flores para outra pessoa. Alguém que não sabe nem que tipo de buquê comprar. Essa pessoa é capaz de chegar com um buquê de flores e dedicar a quem está apaixonado. Uma pessoa quando está apaixonada fica ridícula”. Bem recebido em sua passagem pelo circuito de festivais, Vou Rifar Meu Coração não é nenhum ‘estudo’ profundo sobre a música brega, mas vai tão fundo quanto possível em sua proposta de revelar um Brasil que muitos preferem não (re)conhecer – aquele dos inferninhos com as meninas cheirando a Leite de Rosas e dos botequins mais podres que você possa imaginar. Para isso, percorreu os grotões de Sergipe, Alagoas, Pernambuco e outras localidades do país, tudo para chegar ao cerne periférico da alma brasileira. “Esse negócio de paixão é a coisa mais brega do mundo. Ela consome o ser humano”, diz uma das personagens entrevistadas no documentário, e sua frase sintetiza com perfeição o espírito do projeto.
DINÂMICA Tendo na montagem uma de suas grandes virtudes, o filme de Ana Rieper alterna com boa dinâmica depoimentos de artistas como Odair José, Amado Ba-
tista, Nelson Ned e Agnaldo Timóteo com falas de anônimos encontrados pela equipe de produção a partir de uma (imagina-se) cuidadosa pesquisa. Os compositores falam de sua relação com esse folclórico universo, ponderam sobre seu lugar na história da música popular brasileira e revelam seus interesses e inspirações na hora de criar canções. Autor da música que dá nome ao longa-metragem, o cantor Lindomar Castilho também participa da produção, relatando suas impressões sobre o amor e as reações patológicas de quem leva esse sentimento ao extremo. Contudo, em momento algum o episódio do assassinato de sua segunda esposa é mencionado. Em relação a isso, a diretora explicou que, embora tenha tentado extrair um depoimento mais objetivo de Lindomar durante duas horas de conversa, não obteve sucesso. Na realidade, tal omissão se deve a uma condição imposta por Lindomar para dar seu depoimento: a de que o assunto não fosse abordado. Agnaldo Timóteo surge com sua conhecida delicadeza, rechaçando o adjetivo ‘brega’ atribuído à música popular romântica. “A mim não chamam de brega. Porque quando eu pego um microfone eu sou um monstro! Você não tem ideia do que é esse crioulo no palco. Eu sou de fácil interação, sou alegre, comunicativo e canto muito! No palco ninguém percebe que sou preto, feio e de cabelo duro, porque eu canto muito. Quando Nelson Gonçalves gravou Negue, era cafona. Quando Maria Bethânia gravou, virou luxo”, esbraveja.
‘FUNDO DO POÇO’ Mas é ao dar voz a figuras populares que o documentário tem seus momentos mais interessantes, ainda que a reiteração do discurso torne a coisa um tanto quanto repetitiva. “Essas músicas muito badaladas não são o meu lema”, afirma uma dona de casa. “Eu gosto é de músicas que vão até o fundo do poço”. Os tipos apresentados, em geral, são de gente simples que não vê problema algum em expor suas misérias em relatos ora comoventes, ora involuntariamente cômicos. Temos uma senhora desiludida com as coisas do amor que confessa a Ana Rieper reconhecer lances da própria vida sempre que escuta uma música da cantora Roberta Miranda; o frentista traído e abandonado pela esposa que se identifica com a música Folha Seca, de Amado Batista; a história de um rapaz que se casou com uma prostituta ao visitar um bordel; o drama da mulher do prefeito de uma cidadezinha do interior sergipano que há mais de 30 anos leva uma vida conjugal dupla. Ainda que o resultado final acabe por soar involuntariamente cômico (para o deleite do olhar ‘superior’ da classe média, público que o registro fatalmente atinge), Vou Rifar Meu Coração é uma obra que cumpre bem a proposta de investigar e apresentar à audiência o íntimo da relação que as pessoas têm com todas essas canções. E se após a projeção o leitor tiver interesse em buscar outras referências e conhecer um pouco mais sobre esse universo, vale procurar o livro Eu não Sou Cachorro não, de Paulo César de Araújo (Record, 2002), um olhar aprofundado sobre as origens, os desdobramentos e os vários artistas desse segmento da música popular no Brasil. ‡
Modéstia Agnaldo Timóteo surge com sua conhecida delicadeza, rechaçando o adjetivo ‘brega’ atribuído à música popular romântica. “A mim não chamam de brega. Porque quando eu pego um microfone eu sou um monstro! Você não tem ideia do que é esse crioulo no palco. Eu sou de fácil interação, sou alegre, comunicativo e canto muito! No palco ninguém percebe que sou preto, feio e de cabelo duro, porque eu canto muito”
Sinopse Vou Rifar Meu Coração é um filme que trata do imaginário romântico, erótico e afetivo brasileiro a partir da obra dos principais nomes da música popular romântica, também conhecida como brega. Letras de músicas de artistas como Agnaldo Timóteo, Waldick Soriano, Nelson Ned, Amado Batista, Peninha, Walter de Afogados e Wando, entre outros, formam verdadeiras crônicas dos dramas da vida a dois. No documentário, os temas dessas músicas se relacionam com as histórias da vida amorosa de pessoas comuns. Trata-se da intimidade de pessoas reais, em situações reais.
Serviço DESTAQUE DOS CINEMAS Filme: Vou Rifar Meu Coração (Idem, BRA, 2012) Direção: Ana Rieper Onde e quando: veja a programação dos cinemas na pág. B3 Classificação: 12 anos