Domingo 25/08/2013
POLÍTICA CULTURAL. Nas últimas semanas, a rede de produção cultural Fora do Eixo protagonizou um embate (por vezes) violento com alguns formadores de opinião do país. Alvo de críticas e análises superficiais que são consequência direta do modo nebuloso com o qual o grupo lida com sua prestação de contas, a mais recente controvérsia em torno do gestor Pablo Capilé se deu a partir da entrevista que ele e o jornalista Bruno Torturra deram no programa Roda Viva, da TV Cultura. A participação de Capilé na atração reacendeu questões contraditórias relacionadas às práticas adotadas pela rede e serviu de estopim para desencadear uma onda de denúncias e acusações. Para jogar luz sobre as questões surgidas no rastro da polêmica, a Gazeta conversou com Felipe Altenfelder, um dos gestores do Fora do Eixo e da Mídia Ninja, e com o produtor cultural Nando Magalhães, do coletivo alagoano Popfuzz, além de ouvir nomes da cena local acerca das contendas. É o que você confere nesta edição
NO EIXO DA POLÊMICA REPÓRTER
Em entrevista publicada aqui no Caderno B em julho do ano passado, o compositor paulista Marco Butcher, ícone do cenário alternativo dos anos 1990 e um dos mais contundentes críticos da cena musical independente no país, disparou: “A noção de independência é equivocada aqui. Ser independente no Brasil, para muitos, é um estágio onde você se encontra enquanto não pode mamar nas tetas do mainstream”. Diante da atual controvérsia envolvendo a rede Fora do Eixo, que nas últimas semanas foi alvo de acusações graves relacionadas (entre outras coisas) à aplicação de recursos públicos, a observação incisiva de Butcher nos faz pensar o quão estranha é a ideia de independência dessa turma. No universo de possibilidades infinitas propostas pelo Fora do Eixo no espectro da realidade virtual, os conceitos aplicados no mundo real (como a própria noção de independência, por exemplo) parecem assumir contornos tortuosos, e se um indivíduo não é capaz de entender a lógica organizacional da rede de modo a não se conectar a ela, está por fora. É um analógico. Como se não houvesse outros caminhos possíveis... Uma concepção no mínimo questionável e que, em última análise, conspira contra o espírito democrático e independente de qualquer cenário cultural. Entretanto, uma coisa é você não se identificar com a postura e o modelo operacional propostos pelo coletivo; outra é discordar a ponto de manifestar a mesma ira descontrolada que inflama julgamentos direcionados ao grupo pelas redes sociais, com base em informações distorcidas e disseminadas no nível da fofoca e de achismos. Ironicamente, a mesma tecnologia que possibilita o fluxo de informações e viabiliza a expansão do circuito criado pelo Fora do Eixo os atinge com voracidade igualmente instantânea. Sim, amigos, estamos vivendo uma época particularmente estranha e muito, mas muito assustadora. A urgência com que a internet potencializa a produção e a troca imediata de conteúdo a todo
instante também pode elevar a níveis terrivelmente nefastos o espírito inquisidor de seus usuários nas redes sociais. Em plataformas como o Facebook, por exemplo, ao menor sinal de deslize você corre o risco de se meter numa bruta enrascada e ter de prestar contas a um tribunal exaltadíssimo, composto por milhares de almas puras e dispostas a te julgar, condenar e executar tal qual uma rameira na Idade Média.
LINCHAMENTO É justamente nessa situação que se encontra o produtor cultural Pablo Capilé, um dos fundadores da rede Fora do Eixo e principal alvo da explosão de acusações contra o grupo desde que ele, ao lado do jornalista Bruno Torturra, participou do programa Roda Viva, da TV Cultura, para falar sobre o coletivo jornalístico Mídia Ninja. Deflagrada num primeiro momento por um depoimento da cineasta Beatriz Seigner, que num curtíssimo espaço de tempo foi encampado por denúncias de outros ex-colaboradores do grupo, a enxurrada de comentários e compartilhamentos nas redes sociais nos levou a testemunhar o mais rápido julgamento de que se tem notícia em toda história do linchamento em praça pública. Reportagens de veículos editorialmente antagônicos, a exemplo das revistas Veja e Carta Capital, compartilharam o mesmo foco ao descreverem Capilé como um ditador que manipula jovens mentes indefesas, apropria-se de seus bens e explora sua força de trabalho. O agitador cultural é ainda apontado como sexista e estelionatário. Mas o mais espantoso nesse episódio talvez seja o fato de a opinião pública ter comprado tão facilmente a ideia de que ainda exista nesse mundo gente ingênua e palerma o suficiente a ponto de se deixar enganar por uma suposta seita de espertalhões. Uma questão que mereceria ser discutida, mas que ao que tudo indica não desperta muito interesse, é o fato de o Fora do Eixo dar prioridade à articulação política em detrimento da preocupação com a qualidade artística das bandas que reúne e promove.
ARTE: SANDRO OLIVEIRA
LUÍS GUSTAVO MELO
MÉTODOS Em atividade desde 2005, o Fora do Eixo é uma rede integrada de coletivos espalhados por todo o país, que procura desenvolver métodos alternativos de viabilizar a produção cultural em um circuito que funcione à margem do mercado convencional. Ao longo dos anos, a organização foi conquistando cada vez mais espaço no cenário independente, ao administrar uma série de projetos e promover inúmeros festivais pelo Brasil, alguns deles apoiados pela Petrobras e com incentivo do Ministério da Cultura. Mas, segundo Pablo Capilé, os valores originários de editais correspondem a apenas 7% dos recursos do Fora do Eixo. Como moeda complementar, a moçada criou o cubo card, que é utilizado na troca de serviços entre parceiros do grupo. Um universo realmente curioso e cheio de particularidades que, por isso mesmo, suscita dúvidas, estranhamentos e desconfianças em quem está de fora. Mas, a bem da verdade, uma coisa tem de ser dita: entra quem quer. Ninguém é abduzido, catado ou cooptado. ‡ Continua na pág. B2
Política Reportagens de veículos editorialmente antagônicos, a exemplo das revistas Veja e Carta Capital, compartilharam o mesmo foco ao descreverem Capilé como um ditador que manipula jovens mentes indefesas, apropria-se de seus bens e explora sua força de trabalho. O agitador cultural é ainda apontado como sexista e estelionatário. Mas o mais espantoso nesse episódio talvez seja o fato de a opinião pública ter comprado tão facilmente a ideia de que ainda exista nesse mundo gente ingênua e palerma o suficiente a ponto de se deixar enganar por uma suposta seita de espertalhões. Uma questão que mereceria ser discutida, mas que ao que tudo indica não desperta muito interesse, é o fato de o Fora do Eixo dar prioridade à articulação política em detrimento da preocupação com a qualidade artística das bandas que reúne e promove
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GAZETA DE ALAGOAS, 25 de agosto de 2013, Domingo
CONTINUAÇÃO DA PÁG. B1. Criado em 2005, coletivo responsável pela produção do Festival Maionese integra a rede surgida em Cuiabá desde 2009; relação seria baseada no compartilhamento de tecnologias sociais construídas colaborativamente
POPFUZZ É ‘BRAÇO’ DO FORA DO EIXO EM ALAGOAS Segundo o produtor Nando Magalhães, trânsito de experiências potencializou ações desenvolvidas pelo grupo em Alagoas LUÍS GUSTAVO MELO REPÓRTER
Coletivo que representa o Fora do Eixo em Alagoas, o Popfuzz, que integra a rede desde meados de 2009, começou sua jornada na produção cultural independente em 2005, com a primeira edição do Festival Maionese, realizado anualmente em Maceió. Segundo o produtor Nando Magalhães, cada coletivo possui suas particularidades e os procedimentos adotados pelo Fora do Eixo são adaptados de acordo com a realidade de cada região e aprimorados de forma empírica. “Existe uma confusão sobre o que efetivamente é uma rede. Muitas vezes confundem com uma rede empresarial que adota procedimentos e parâmetros padrão para assegurar a ‘qualidade’ do produto em suas diversas filiais”, explica Nando. “O Fora do Eixo é uma rede descentralizada, o que quer dizer que não existe uma fonte única, uma matriz que estabelece os procedimentos e encaminha para todos executarem. O que existe de fato são tecnologias sociais que são construídas colaborativamente, ‘laboratoriadas’ no cotidiano dos coletivos e, por consequência do intenso convívio entre os coletivos conectados, há o compartilhamento dessas soluções entre esses coletivos”. Integralmente comprometido com o Fora do Eixo, Nando diz que desde
FOTOS: DIVULGAÇÃO
que o Popfuzz passou a integrar a rede a turma obteve uma série de experiências que potencializaram as ações realizadas pelo coletivo em Alagoas. “Assimilamos tecnologias de gestão financeira, de construção de projetos, de organização interna, de produção, de comunicação e uma série de princípios de vida. Isso acontece de maneira muito diversa na rede, cada coletivo tem um perfil diferente, assimila e constrói horizontes diversos. É justamente esse processo de compartilhamento e a diversidade dos territórios que possibilita o desenvolvimento dessas tecnologias que vivem em constante mutação”, explica ele.
TRANSPARÊNCIA Em relação à forma como a moçada lida com as dívidas decorrentes de possíveis prejuízos, o produtor diz que esse é um risco com o qual eles têm de aprender a conviver, tendo em vista o processo de desenvolvimento das ações. “Nós administramos as nossas dívidas com honestidade e transparência. Toda vez que por algum motivo ficamos devendo algo a algum fornecedor, conversamos, explicamos a situação de forma transparente e negociamos os prazos de pagamento. Dessa forma é muito mais simples. É fundamental garantirmos a confiança dos nossos parceiros; de outra maneira, simplesmente não é pos-
ARTICULAÇÃO No alto, o registro fotográfico da edição 2012 do festival itinerante Grito Rock em Arapiraca. Ao lado, o produtor Nando Magalhães, um dos responsáveis pelas ações culturais do coletivo Popfuzz em Alagoas
Autonomia Segundo o produtor Nando Magalhães, cada coletivo possui suas particularidades e os procedimentos adotados pelo Fora do Eixo são adaptados de acordo com a realidade de cada região e aprimorados de forma empírica
sível atuar no setor cultural alagoano ou brasileiro. Conforme o recurso vai entrando, das diversas ações que encaminhamos, vamos pagando conforme os prazos estabelecidos”. Com a polêmica em torno do FdE alcançando esferas capazes de gerar antipatia até em quem jamais havia ouvido falar na rede e em quem nunca saiu de casa para ver um show que não fosse do Chiclete com Banana, o Popfuzz
garante que o episódio não comprometeu a imagem do coletivo em Alagoas. “Até agora não sentimos nenhuma desconfiança causada especificamente pelo ‘buzz’ atual do Fora do Eixo. Desde algum tempo atrás já existia uma minoria que nos acusava de questões relativas a conflitos que por acaso vieram à tona em outros coletivos da rede; são basicamente essas pessoas que hoje continuam tentando nos
acusar de algo. No entanto, nossos parceiros não reconhecem na nossa forma de trabalho essas acusações que estão sendo colocadas contra do Fora do Eixo. O máximo que acontece é alguém chegar e perguntar algum ponto específico e a gente esclarecer com tranquilidade. Felizmente, a grande maioria das pessoas já conhece nosso trabalho e nossas intenções nesse processo”, pontua Nando.
REPRESENTANTE DA REDE EXPLICA ATUAÇÃO
Para tentar esclarecer definitivamente o que é o Fora do Eixo, o modus operandi da rede e, principalmente, ouvir o que o principal alvo de toda essa rebordosa tem a dizer a respeito das acusações, a Gazeta entrou em contato com Pablo Capilé que, num primeiro momento, aceitou falar com a reportagem. Mas, depois, por alguma razão, estabelecer qualquer comunicação com o rapaz se tornou uma tarefa muito complicada. Por telefone, Felipe Altenfelder, um dos gestores do coletivo jornalístico Mídia Ninja, se comprometeu a responder às perguntas da Gazeta no lugar de Capilé. Bacharel em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos, Altenfelder se filiou ao grupo em 2007, e atua na Rede Brasil de Festivais e no festival integrado Grito Rock. Numa entrevista pontuada por contratempos que por pouco não se concretiza, o produtor esclareceu alguns dos tópicos mais significativos da polêmica bombardeada na internet. É o que você confere no pingue-pongue a seguir.
Gazeta. O Fora do Eixo já atua no cenário independente do país há cerca de uma década e ganhou mai-
or notoriedade nos últimos tempos devido a algumas polêmicas, mas continua sendo algo distante do público em geral. Desse modo, como você poderia esclarecer definitivamente o que é o Fora do Eixo? Felipe Altenfelder. O Fora do Eixo é uma rede de produção cultural, uma rede que se estruturou através dos princípios da economia solidária, e que é formada hoje por coletivos. Esses coletivos são grupos com atuação no setor cultural que estão presentes em cerca de 200 cidades no Brasil inteiro. A gente começou muito forte na música, produzindo festivais, organizando turnês, distribuindo discos. Num segundo momento, a gente entendeu que esse trabalho na música poderia ser levado para outras linguagens como o audiovisual, artes cênicas ou design. Em outro momento, a partir de 2011, mais ou menos, a gente entendeu que um outro circuito dessa rede toda tinha amadurecido e conseguido trabalhar uma lógica de movimento social que milita pela causa das políticas culturais. E além disso tudo a comunicação sempre foi uma característica nossa, é algo que a gente usa desde o começo para se traduzir, para se divulgar, e foi o acúmulo dessa ex-
periência que possibilitou o surgimento de ideias como a da Mídia Ninja.
Quantas pessoas trabalham em período integral na rede Fora do Eixo? Ao todo, na rede, é uma conta que fica um pouco difícil de fazer. Porque tirando as casas nos coletivos do interior, a galera se organiza com bastante colaborador. Então se a gente considerar seis casas regionais, com dez pessoas em média por casa nos demais coletivos, você tem 150 pessoas que trabalham integralmente. Segundo Pablo Capilé, o Fora do Eixo conta com 91 coletivos, possui 18 casas, lida com mais de 600 coletivos parceiros espalhados por todo o país, contabiliza 130 festivais associados à Rede Brasil de Festivais, 80 eventos durante a Semana do Audiovisual (Seda) e atua em 300 cidades. Com tantos eventos, festivais e artistas circulando, vocês conseguem estabelecer um nível de qualidade satisfatório dos produtos culturais que oferecem? Eu acho que sim. E eu acho que a gente tem que considerar que o nosso trabalho também é de estruturação da cena independente. Então se a gente for contar de quando começamos, em 2005, hoje já te-
FELIPE ALTENFELDER PRODUTOR CULTURAL
“A gente soltou nota oficial sobre o episódio. E a primeira coisa que precisa ser esclarecida nesse caso é de que a gente mantém contato com esses fornecedores até hoje. Inclusive o do restaurante recebeu uma parcela nesse semestre”
mos produtos muito mais satisfatórios tanto na qualidade técnica dos palcos quanto das próprias bandas que se apresentam. Mas é um processo dinâmico. Ele está em curso e em permanente melhoria. Mas se for comparar com o início, tem uma crescente de qualidade bastante clara.
Nas últimas semanas, o Fora do Eixo foi bombardeada por uma série de acusações levantadas por diversos veículos de comunicação do país. Uma das mais recentes, publicada pela Folha de S.Paulo no domingo passado, diz que em 2006 o FdE deixou uma dívida de R$ 21 mil em um restauran-
te no centro de Cuiabá. A matéria revela que 2.000 refeições foram pagas com cubo cards. O que você poderia esclarecer acerca desse episódio? A gente soltou nota oficial sobre o episódio. E a primeira coisa que precisa ser esclarecida nesse caso é de que a gente mantém contato com esses fornecedores até hoje. Inclusive o do restaurante; ele recebeu uma parcela nesse semestre. Então isso mostra, da nossa parte, o compromisso com o acerto daquela dívida. E isso mostra que não é um calote. Calote significa que você não tem a intenção de pagar. E a nossa intenção foi de pagar. Então essa manchete foi praticamente uma calúnia. O que você tem é uma dívida que está parcelada e que está com contato em dia com esse fornecedor, negociando o pagamento. No caso do hotel, que ela afirma não ter recebido nada, isso é uma mentira. Ela fez uma solicitação de bloqueio de conta, e na época esse bloqueio rendeu para o hotel um pouco mais de R$ 6 mil, que era praticamente o valor inteiro da dívida, e o que resta agora são os juros das correções monetárias, mas que são passíveis de contestação. E a forma como a gente está conduzindo o caso.
Mas o que levou efetivamente ao acúmulo dessas dívidas em Cuiabá? A gente não vai entender a natureza dessas dívidas se quiser olhar para elas só como dívidas do Fora do Eixo. O setor cultural no Brasil é deficitário. Todo mundo que trabalha com produção cultural, com orçamento e com projeto aprovado costuma receber, na maioria das vezes, os recursos após a realização do evento. Então o setor cultural no Brasil se organizou baseado no crédito que tem na praça. Então os fornecedores estão acostumados a trabalhar dessa forma em várias cidades e os produtores estão trabalhando e batalhando para conseguir sempre otimizar e diminuir o máximo esse tempo de acerto. No caso do episódio de Cuiabá, o que aconteceu na época nessa edição do festival é que um dos recursos que se contava para o festival, que era da Secretaria Estadual de Cultura, não só teve seu pagamento atrasado como houve uma diminuição no valor, de última hora. E a gente, se organizando para lidar com essa nova realidade, acabou deixando essas dívidas. Mas não se trata de um calote. Estamos pagando e estamos em contato com esses fornecedores até hoje. LGM ‡
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CONTINUAÇÃO DA PÁG. B1. Segundo Felipe Altenfelder, rede estabeleceu relações com políticos com o propósito de garantir a implementação de políticas públicas, e não para debater projetos específicos do coletivo
“O FORA DO EIXO NÃO TEM MEDO DO ESTADO”, AVISA INTEGRANTE ACERVO PESSOAL
Um dos gestores da agremiação jornalística Mídia Ninja, Altenfelder diz que transparência sempre foi um objetivo do grupo LUÍS GUSTAVO MELO REPÓRTER
Gazeta. O cubo card, como moeda alternativa que serve a uma esfera restrita aos parceiros e colaboradores da rede FdE, pode ser utilizada em estabelecimentos comerciais? Você poderia explicar como é estabelecido o valor dessa moeda e como se dá seu uso? Felipe Altenfelder. A primeira coisa que tem que ficar clara é que o cubo card nunca foi prometido para ninguém que trabalha no Fora do Eixo como salário. Ele não é uma ferramente de remuneração. O cubo card na verdade é uma representação da força de trabalho sistematizada envolvida numa produção. Dando um exemplo bem prático, vamos imaginar uma troca entre dois músicos: um deles tem um amplificador que vale determinado valor em real, o outro, além de músico, é designer. Se o primeiro cara empresta o amplificador dele para o segundo, e em troca o segundo faz a capa do disco do primeiro, você teria aí o valor de R$ 500 da diária do aluguel do amplificador e R$ 1 mil pelo serviço do designer. Nessa troca os dois serviços foram prestados sem que ninguém tivesse que pôr a mão no bolso para sacar esses R$ 1.500. Mas existiu essa transação através do serviço que foi prestado. É essa a ideia que representa o cubo card. Em Cuiabá, num primeiro momento, quando a gente ainda estava desenvolvendo a tecnologia, a gente entendia que o card valia R$ 1, e aquelas moedas que foram impressas eram uma forma de ajudar essa visualização. Então o que você tinha ali eram parceiros do espaço Cubo, que estavam recebendo aqueles cards por serviços prestados, e também parceiros na inciativa privada, que aceitavam esse card. Mas para essa troca funcionar com a iniciativa privada a gente sabia que depois te-
ríamos que acertar isso em real. Então aquele restaurante tem aqueles dois mil reais que sobraram até hoje em card, mas ele já recebeu também um valor bastante significativo em reais por outras trocas que ele aceitou.
O Fora do Eixo estabeleceu relações com partidos políticos de todas as orientações ideológicas. Qual é a essência dessas negociações? Como se dá essa aproximação e como os políticos costumam colaborar com o coletivo? A primeira coisa que a gente coloca é que não tem por que nenhum coletivo brasileiro temer o Estado. O Fora do Eixo não tem medo do Estado. Eu acho que o Estado é uma rede a serviço do comum. Então é um direito nosso se relacionar com o Estado, mas a gente entende que essa interação se dá num nível das políticas públicas, ela não se dá num nível de debater projetos específicos do Fora do Eixo. E é isso que inclusive nos dá autonomia para negociar com políticos de diferentes partidos. Mas se a gente tivesse conversando sobre acordos específicos para nossa organização, esse trânsito partidário ficaria inviabilizado. Então a gente consegue se relacionar com diferentes partidos porque, quando a gente faz essas agendas, as discussões nunca são produtos ou processos específicos do Fora do Eixo. São oportunidades que a gente tem de sensibilizar os gestores públicos sobre as políticas públicas que a gente acredita que sejam pertinentes não só para a cultura, mas para a comunicação, juventude, direitos humanos, segurança pública, para o meio ambiente, etc. Alguns jornalistas tendem a crer que se hipoteticamente o Fora do Eixo viesse a apoiar a candidatura de Marina Silva para presidente, e se ela conseguisse se eleger, a rede teria o poder de indicar o ministro da Cultura do próximo governo. Como você encara essas especulações e a que você atribui essas ideias? Como o nome já diz, é uma especulação, isso não tem base de verdade nenhuma. A Marina ainda nem sabe se vai poder ser
Altenfelder se associou ao Fora do Eixo em 2007
FELIPE ALTENFELDER PRODUTOR CULTURAL
“É um direito nosso se relacionar com o Estado, mas a gente entende que essa interação se dá num nível das políticas públicas, ela não se dá num nível de debater projetos específicos do Fora do Eixo”
candidata a presidente e, caso seja candidata, vai ter que ganhar, e caso ela ganhe, quem vai escolher os ministros dela é ela. O Fora do Eixo não terá nenhuma ingerência e possibilidade de indicação de qualquer ministério da Marina Silva.
Na rede Fora do Eixo, as ações de ordem operacional e econômica são conduzidas por uma entidade que vocês batizaram como Banco Fora do Eixo. Você poderia explicar o que é o Banco e como ele funciona? O banco é um núcleo de trabalho que lida com a mediação dos recursos que a rede recebe, tanto em serviços quanto em reais. Então ele difere de uma instituição bancária convencional porque ele não faz parte do sistema ligado ao Banco Central, é só uma forma que a gente teve para se organizar, para dar suporte em contabilidade, prestação de contas, entre os coletivos. O Pablo Capilé afirma que o Fora do Eixo possui um vasto sistema de produção, com centenas de comunicadores e designers. Com todas as acusações e as constantes dúvidas existentes em relação a como o coletivo se financia e a como o dinheiro dos editais é ou não espalhado nominalmente na rede, vocês pensaram em pedir para esses profissionais produzirem vídeos ou plataformas que expliquem de forma simples e didática como tudo funciona? Com certeza, essa é umas das coisas que serão feitas. O próprio Portal Transparência do Fora do Eixo é algo que ainda não está pronto, está em permanente atualização, mas é algo que a gente fez questão de colocar no ar para conseguir sofisticar essa transparência. Mas é al-
go em que a gente sempre trabalhou. O Fora do Eixo é a organização que mais abre planilha, que mais se esforça para ter essa transparência. Mas entendemos que nesse momento de repercussão, com a temperatura mais alta, precisamos de uma transparência ainda mais sofisticada. Por isso estamos com uma equipe trabalhando bastante para isso, lançando diariamente novidades em relação a essa sistematização.
O Fora do Eixo surgiu com o propósito de criar e viabilizar alternativas de produção cultural por meio de uma rede que atua de forma colaborativa e que faz circular centenas de artistas em eventos espalhados por todo o país. Mas para além desse viés no campo organizacional, qual seria o legado cultural/artístico/estético do grupo? De repente essa pergunta se aplicaria melhor a uma gravadora, por exemplo. O objetivo do Fora do Eixo também nunca foi lançar novos artistas. Isso acabou surgindo como consequência de um processo de estruturação do novo mapa da música brasileira que a gente protagonizou. O legado é esse novo mapa. De como grupos do Amapá, do Acre, de Alagoas, enfim, de qualquer estado, podem ter a possibilidade de estar inseridos num mapa seja da nova música brasileira ou do novo audiovisual, de um novo design. Então eu acho que o principal é o mapa cultural que está no Brasil inteiro e, quando a gente começou, ele de fato não existia. Sempre há uma preocupação com a qualidade estética, mas a autonomia dos produtores locais sempre foi um princípio muito forte. Você não dá nenhum tipo de orientação para que eles escolham os nomes que devem circular. Cada produtor entende o momento que a sua cena está passando, e faz as suas escolhas de curadoria em cima disso. É um processo dinâmico. A gente não trabalha com um grupo fechado de artistas que vão circular mais ou menos que outros. E aí cada um vai entendendo o que quer apresentar para sua cidade. A rede de contatos se ajuda para viabilizar essas negociações. Mas não há nenhum tipo de diretriz. ‡
Analisando a polêmica Artistas e produtores falam sobre a controvérsia envolvendo a rede Fora do Eixo “O que tenho percebido no recente debate sobre o Fora do Eixo é pouca isenção: tanto acusadores quanto defensores estão envolvidos no processo e os discursos mostram sombras de causas pessoais. Não estou dentro ou fora do eixo, não tenho como avaliar o modelo na prática diária do coletivo, mas não se pode negar que o FdE possibilitou uma agitação importante na cena de diversas cidades, inclusive Maceió. Claro que é necessário se questionar a transparência sobre recursos públicos em projetos do FdE e a filosofia de pagamento de cachês para artistas, assim como os créditos da produção de conteúdo dentro do coletivo. Creio que isso faz parte do processo e será aprimorado com o tempo, do contrário o futuro da rede está comprometido. Minha experiência direta com o FdE foi quando a Eek tocou em alguns projetos organizados pelo Popfuzz e sempre foi uma experiência válida para a gente.” DIOGO BRAZ Jornalista e músico “Não concordo com trabalho não remunerado. Das vezes em que trabalhei com o Fora do Eixo fiz questão de deixar isso claro e fui remunerado como combinado previamente. A chancela funciona como uma franquia para a molecada, mas cria uma força política desproporcional para os cabeças da ‘franquia’. Acho que, se existem distorções, elas devem ser auditadas.” WADO SCHLICKMANN Músico e compositor “Acho que o momento agora é bem propício para pensarmos o nosso próprio modelo produtivo da música independente. O modelo do Fora do Eixo não se mostrou efetivo para a música independente brasileira como um todo. Temos que entender que houve, sim, uma turma que cresceu nesse contexto, mas o cenário brasileiro não se resume a essas bandas. É preciso reconhecer que em um país tão desigual economicamente como o Brasil nem tudo que se aplicar a um lugar, num determinado momento histórico para certa parcela da cadeia produtiva da música, irá ser a futura lógica produtiva da música independente no país. Independente de hospedagens solidárias, pagamento de cachê e cubo card, devemos pensar em ferramentas e estratégias que possam apontar para uma sustentabilidade real. O público já tem respondido a algumas dessas perguntas. O crowdfounding tem apontado alguns caminhos...” VICTOR DE ALMEIDA Produtor cultural e professor universitário “Tenho acompanhado sim, o que torna mais difícil ainda avaliar por conta da quantidade de depoimentos de todos os lados. Minha opinião extremamente pessoal é: 1) Ficar analisando as inter-relações psicológicas do grupo para mim é quase igual a discutir e analisar as relações no Big Brother. Tolice. 2) A questão é: se existem desvios de verba, é roubo e isso tem que ser investigado e fiscalizado como tudo que envolve dinheiro público. 3) Se adequa ao modelo de produção quem quer e vê nisso alguma vantagem. Quando achei conveniente fiz, já em outra ocasião não fiz. Não sei dizer se é válido ou não. Justamente tem variáveis. 4) Calotes: que sejam investigados; se provados, que sejam punidos. 5) Acho que esse debate todo deveria ser mais objetivo, menos emocional, menos psicológico. Estão enchendo muito a linguiça. O assunto é jurídico, se está fora da lei, prende. Se está dentro da lei, se mete com maluco quem quer.” CRIS BRAUN Cantora e compositora “Com certeza tenho acompanhado toda a polêmica. Assisti a algumas entrevistas e li alguns textos, tanto de defesa quanto de ataque ao FdE. Eu acredito que qualquer modelo de produção deve ter como premissa a valorização de todos os envolvidos, independente de qual função ou papel seja desempenhado. Tudo deve estar muito claro, inclusive a razão de um grupo ou alguém ser privilegiado. Outro ponto importante é que o fato de as pessoas se unirem em torno de um objetivo comum não significa a
inexistência de debates, diálogo e questionamentos. Já temos inúmeras estruturas baseadas nessa premissa que comprovam o quanto essa postura é danosa. De positivo existe a demonstração de que é possível se mobilizar para construir alternativas, promover eventos e debates que ajudem a movimentar culturalmente um bairro, uma cidade ou uma cena. Eu particularmente não concordo com algumas posturas, acredito que muito do que está sendo colocado contra o FdE possui um fundo de verdade. Eu espero que desse debate/embate algo novo possa surgir. Se você não concorda com a forma como as coisas estão sendo feitas, deve fazer algo diferente. Muito mais do que criticar é importante sair da nossa zona de conforto construindo alternativas para a realidade que nos cerca. O bom e velho faça você mesmo continua sendo um caminho válido.” SANDNEY FARIAS Analista de desenvolvimento, professor e músico
“Acredito que problemas de gestão não invalidam um modelo. Vejo com bons olhos quando o pessoal busca alternativas aos padrões vigentes para produzir e difundir cultura, alternativas ao modelo do mercado convencional, todo o pensamento do faça você mesmo. É um processo novo e em construção, portanto pode e deve ser discutido e melhorado. Sou a favor do cachê para o artista, a favor da qualidade artística antes da articulação política, no que diz respeito à seleção dos trabalhos para palcos e turnês, sou a favor do questionamento constante, dentro e fora de qualquer movimento. Tive boas experiências trabalhando com o Coletivo Fórceps, de Minas Gerais, por exemplo, durante a Turnê Da Vida e do Mundo, e com o Coletivo Popfuzz em Alagoas. Mas também tivemos experiências mais, digamos, precárias, e menos profissionais com coletivos em outros estados. Enfim, é um país grande, certo? Com o Coletivo Popfuzz, por exemplo, tenho uma ótima experiência com a venda e distribuição dos meus discos na Banquinha Popfuzz, que vende pra caramba, aliás. Com o MC+20, com exceção do lançamento do disco no Espaço Linda Mascarenhas, todos os outros shows da banda foram produzidos pelo Coletivo Popfuzz, com cachê, ou porcentagem honesta de bilheteria. Agora, em nível nacional, se existe dúvida sobre a aplicação correta de recursos públicos por parte dos proponentes em editais, que se acione o Ministério Público e demais entidades competentes, assim se esclarece isso. Seria mais eficiente que um exaustivo debate entre prós e contras no Facebook. Seja como for, não invalida os editais, e não invalida os modelos alternativos, e coletivos, de construção da cultura e do novo cenário da música no país. É como dizer que, se um determinado presidente errou durante sua gestão, isso invalida a democracia.” MARCELO CABRAL Compositor e jornalista
“Tivemos nos últimos anos o crescimento de um modelo de produção baseado no que se convencionou chamar de economia solidária, baseado em princípios como o coletivismo, o trabalho em rede e uma nova relação de trabalho, em que desaparecem as figuras do patrão e do empregado. Esse modelo foi além das atividades econômicas clássicas, chegando ao campo cultural, onde destacase a rede Fora do Eixo. Particularmente conheço o trabalho do Coletivo Popfuzz (Rede Fora do Eixo em Alagoas) e sei da integridade e do compromisso de seus membros, e de como sua atuação tem beneficiado não só grupos musicais, mas aberto espaços de diálogo com as diversas manifestações culturais em Maceió. O ataque por parte da mídia tradicional decorre de que o avanço de práticas coletivistas e de uma imprensa livre, sem amarras com os interesses de grupos econômicos poderosos, assusta setores conservadores. Parafraseando Marx. diria que um espectro ronda o Brasil: uma nova forma de produzir econômica, cultural e midiática, livre e coletivista. Isto é revolucionário.” MARCOS SAMPAIO Produtor cultural