Gazeta de Alagoas
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| TERÇA-FEIRA, 15 DE MARÇO DE 2011 | Reprodução
Malcolm McDowell como Alex DeLarge numa cena de Laranja Mecânica: atuação memorável
CRIME E CASTIGO Bombástico, eletrizante, violento, engraçado. Não faltam adjetivos para definir Laranja Mecânica, talvez o mais cultuado trabalho do cineasta norteamericano Stanley Kubrick (1928-1999), que completa agora 40 anos de seu lançamento. Ambientado numa Londres decadente na qual o governo autoritário perdeu o controle sobre o exercício da violência individual, o filme aborda temas incômodos ao traçar um perfil pouco simpático da natureza humana. Com seu visual arrebatador e acompanhado da trilha sonora magnífica de Walter Carlos, Laranja Mecânica é uma experiência cinematográfica sem igual. No ano em que o longa completa quatro décadas, a Gazeta passa a produção em revista, mostrando como ela continua absolutamente atual. Confira
| LUÍS GUSTAVO MELO Estagiário
Há 40 anos Laranja Mecânica chegava aos cinemas, causando furor no Reino Unido. O mais famoso e controvertido projeto do cineasta Stanley Kubrick, uma ousada adaptação do romance distópico de Anthony Burgess (1917-1993), fez enorme sucesso na época de seu lançamento, a despeito da opinião dos distribuidores – que o viam como um produto difícil e naturalmente hostil ao público. Este, em contrapartida, lotava as salas de exibição: enquanto alguns saíam fascinados com o virtuosismo da obra, outros findavam a sessão horrorizados com as cenas de estupro e violência. Aos primeiros segundos de projeção, um vermelho intenso explodia na tela, ao som da música eletrônica de Walter (Wendy) Carlos. Corte rápido para o close no rosto do protagonista, Alex DeLarge (Malcolm McDowell, no maior papel de sua carreira). A câmera afasta-se lentamente, apresentando o cenário estilizado da Leiteria Korova e os três drugues de Alex, Pete, Georgie e Dim; eis o bando perverso que aterroriza a decadente cidade de Londres num futuro não muito distante, espancando mendigos, travando embates com gangues rivais e assaltando luxuosas residências suburbanas. Inquietante e sempre arrebatador, Laranja Mecânica é uma experiência cinematográfica sem igual. Engenhosa, sua montagem apresenta uma soberba integração entre som e imagens, que ‘colam’ na memória do espectador. A mise-en-scène é extraordinária e os movimentos dos atores são minuciosamente controlados, tudo para se obter o melhor enquadramento. Tamanho esmero só podia vir mesmo do perfeccionismo obsessivo de Kubrick, um sujeito que era capaz de trabalhar
vinte horas por dia, meses a fio, quase sem comer ou dormir. Na sequência em que o personagem de Malcolm McDowell e sua gangue atacam um escritor e sua esposa, por exemplo, é o próprio Stanley Kubrick quem opera a câmera, manualmente. Ao final do dia, quando por lei era obrigado a dispensar os atores, o cineasta permanecia sozinho no estúdio, onde passava a noite reescrevendo cenas. Numa de suas biografias, o autor Vincent LoBrutto chegou a insinuar que o realizador não era muito chegado a banho e que passava meses filmando sem trocar de roupa (!). “Ele é obsessivo”, escreveu LoBrutto. “Nada o desconcentrava do trabalho, nem um quebraquebra na esquina, quanto mais um chuveiro quente”. Após um longo e extenuante período de filmagens – no qual o ator Malcolm McDowell quebrou algumas costelas, quase ficou cego e chegou bem perto de morrer afogado –, o longa-metragem enfim estreou nos cinemas, em dezembro de 1971, fazendo uma bela carreira ao longo de 61 semanas de salas lotadas. Em 1972, porém, uma polêmica sobre se Laranja Mecânica seria capaz de estimular jovens a formar gangues assassinas começou a correr. Kubrick, claro, defendeu seu trabalho, negando tal possibilidade. Só não foi muito legal quando, em meados de 1974, alguns punks e skinheads vestidos como Alex começaram a agredir paquistaneses em Londres. O diretor foi acusado de incitar a violência e a coisa ficou feia de verdade. Kubrick chegou, inclusive, a receber cartas com ameaças de morte. Temendo pela integridade física de sua família, pediu à Warner que retirasse o filme de circulação no Reino Unido. “O ataque a Laranja Mecânica foi feroz na Inglaterra. Era inacreditável”, lembra Christiane Kubrick, viúva do realizador.
“O ataque a Laranja Mecânica foi feroz na Inglaterra. Era inacreditável”, lembra a viúva do realizador “Ele foi acusado diretamente por assassinato e desordem. Na época, todo crime na Inglaterra era causado por Laranja Mecânica. Ele pediu à Warner: ‘Por favor, me ajudem. Não posso morar aqui se isso continuar. Tenho medo de mandar as crianças para a escola. Minha casa está sitiada. Não sei o que fazer. Quero tirar o filme de circulação’”, disse ela no documentário Stanley Kubrick: a Life in Pictures. A Warner, que na época faturava alto com o filme e não tinha nenhuma obrigação de fazer o que Kubrick pedia, atendeu-o. O que só comprova o assombroso poder e prestígio que o cineasta possuía em Hollywood naquela época. “Para nós era uma questão de querer continuar a trabalhar com um mestre, de querer fazer os filmes de Stanley Kubrick”, justificou o então executivo da Warner, Terry Semel. “Para mim, isso era prioridade absoluta e nós nos concentrávamos em continuar a alimentar e melhorar esse relacionamento”, ressaltou ele. O curioso é que, quando Laranja Mecânica foi exibido no Brasil, já com grande atraso, por volta de 1978, os censores da ditadura militar não deram tanta importância à tão comentada violência, preferindo concentrar seus nobres esforços na criativa tarefa de pintar bolinhas pretas sobre as genitálias das atrizes que apareciam nuas. Segundo relatos de quem viu o resultado de tamanha estupidez, sempre que as moças se moviam em cena, as bolas pretas pulavam co-
micamente na tela, o que fazia a audiência explodir em gargalhadas histéricas. Detalhe: o filme era censura 18 anos. Como toda grande realização artística, Laranja Mecânica resistiu ao tempo e suas premissas e questionamentos permanecem assustadoramente atuais. O brilhante roteiro assinado pelo próprio Kubrick é um monumento de humor negro e sarcasmo. Uma sátira perversa aos desequilíbrios da sociedade moderna e ao que o comportamento humano tem de mais mesquinho e abjeto. Em linhas gerais, a história é contada em off por Alex, um jovem cujas principais inclinações são violência, sexo e música, mais especificamente Beethoven. Após barbarizar a sociedade noite após noite ao lado de seus comparsas, o protagonista é finalmente pego pelas autoridades ao fim de uma armação arquitetada por seus antigos drugues. Após cumprir dois anos de prisão, Alex se oferece como voluntário para um experimento do governo no qual será condicionado a jamais cometer qualquer ato de violência ou brutalidade sexual, transformando-se num joguete para fins políticos. A crueldade manifestada pelo poder constituído na punição a Alex e o aterrador tratamento de reabilitação que o transforma num ser sem vontade própria são tão brutais quanto os crimes cometidos por ele e seus drugues no início do filme. A sutileza da visão crítica de Kubrick em Laranja Mecânica, contudo, não se restringe a uma análise da opressão da sociedade, da violência desenfreada e da crítica ao hedonismo tão em voga naquela época. O autor traz à tona um dos problemas fundamentais da condição humana: a escolha. E esta talvez seja a questão fundamental da obra – a fragilidade dos direitos individuais quando estes não entram em acordo com as determinações do Estado.
TRECHO DA OBRA Parte Um 1
ONDE ENCONTRAR O FILME 100% VÍDEO Endereço: av. Dep. José Lages, 729, Ponta Verde Horário de funcionamento: de segunda a sábado, das 10h às 23h Informações: 3327-5795 CM VÍDEO Endereço: av. Fernandes Lima, 1785, Farol Horário de funcionamento: de segunda a sábado, das 10h às 20h30 Informações: 3241-0500
PARA LER O LIVRO Título: Laranja Mecânica Autor: Anthony Burgess Tradução: Fábio Fernandes Editora: Aleph Preço: R$ 36 (224 págs.) Onde encontrar: www.livraria cultura.com.br
– Então, o que é que vai ser, hein? Éramos eu, ou seja, Alex, e meus três druguis, ou seja, Pete, Georgie e Tosko, Tosko porque ele era muito tosco, e estávamos no Lactobar Korova botando nossas rassudoks pra funcionar e ver o que fazer naquela noite de inverno sem vergonha, fria, escura e miserável, embora seca. O Lactobar Korova era um mesto de leite-com, e possa ser, Ó, meus irmãos, que tenhais esquecido de como eram esses mestos, pois as coisas mudam tão skorre hoje em dia e todo mundo esquece tão depressa, porque também quase não se lê mais os jornais mesmo. Bom, o que vendiam ali era leite-com-tudo-emais-alguma-coisa. Eles não tinham autorização para vender álcool, mas ainda não havia leis contra prodar algumas das novas veshkas que costumavam colocar no bom e velho moloko, então você podia pitar com velocet, sintemesc, drencrom ou alguma outra veshka que lhe daria uns belos de uns quinze minutos muito horrorshow só ali, admirando Bog e Todos os Seus Anjos e Santos no seu sapato esquerdo com luzes espocando por cima da sua mosga. Ou você podia pitar leite com faca dentro, como a gente costumava dizer, e isso te aguçava e te deixava pronto para um vintecontra-um do cacete, e era isso o que estávamos pitando naquela noite com a qual começo esta história.