Gazeta de Alagoas
B NOITE PRETA
| DOMINGO, 17 DE ABRIL DE 2011 |
A pauta exigia argúcia e bom senso de observação. Trainèe de espírito resoluto, o aspirante a repórter Luís Gustavo Melo cumpria os requisitos e ainda tinha a vantagem de conhecer bem o terreno. Encarregado de escrever um retrato sobre o Kfofo, a casa de shows que virou reduto dos headbangers em Maceió, Guga – como nós o chamamos aqui na Redação – encampou a missão e marcou presença numa chuvosa noite de sábado no famoso QG do metal. Na ativa até as quatro horas da manhã, ele registrou tudo o que aconteceu por lá durante o tributo realizado em homenagem a Chuck Schuldiner, líder do grupo americano Death e um dos ícones do death metal morto em decorrência de um câncer cerebral, há dez anos. Nesta edição a Gazeta publica seu relato, desde já imperdível. Confira Músico garante a pancadaria do metal nos amplificadores do Kfofo, em Jaraguá
NAS PÁGS. B2 E B5
Marcelo Albuquerque
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CADERNO B
DOMINGO, 17 DE ABRIL DE 2011
Gazeta de Alagoas Marcelo Albuquerque
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SOM E FÚRIA
No melhor estilo ‘meninos eu vi’, o relato honesto e um tanto ácido de uma noite alucinante no pequeno e badalado Kfofo | LUÍS GUSTAVO MELO Estagiário
A indústria cultural é mesmo cheia de caprichos. Tem a estranha mania de criar heróis e elevá-los à condição de gênios, sepultando-os depois com igual voracidade – e sem o menor sentimento de culpa. Dentro de uma perspectiva voltada para o universo musical, os menos aptos a encarar o implacável rigor dessa seleção darwinista não raro são varridos da existência. No rock ou em qualquer outro segmento do vastíssimo espectro da cultura pop, os gêneros, modismos e movimentos sempre vieram em ciclos. No geral surgem chutando a porta, promovem mudanças (algumas perenes) e em seguida começam a dar sinais de desgaste. Superados, são substituídos por uma ‘nova onda’, ressurgindo anos mais tarde sob a forma de revivals. Em meio à mecânica cruel desse sistema, o heavy metal, coitado, há tempos anda meio em baixa. Estilo cujas principais características sempre foram a fidelidade e o tradicionalismo extremo de seu público, o gênero surgiu em meados de 1967, a partir de uma matriz calcada no som mega-amplificado de grupos americanos como Blue Cheer e Vanilla Fudge e em formações britânicas setentistas como Led Zeppelin, Black Sabbath e Deep Purple. Consolidou-se como estilo e reinou absoluto durante praticamente toda a década de 80, dividiu-se em inúmeros subgêneros (speed/thrash metal, black metal, death metal, doom metal, etc.) e entrou em declínio no início dos anos 90, com o estouro do então chamado rock alternativo, época na qual a inevitabilidade de sua morte foi várias vezes anunciada.
É bem verdade que o gênero perdeu espaço na mídia, que a indústria já não investe mais tanto no estilo e que atualmente alguns medalhões só conseguem vender shows de arena em países subdesenvolvidos, mas esse vício nefasto de alguns veículos que insistem em decretar o fim desta ou daquela corrente musical parece coisa de quem se diverte vendo desastres de automóvel. E se o heavy metal realmente está morto, alguém esqueceu de avisar ao pessoal vestido de preto que se concentrava em frente a uma pequena casa de shows na rua Barão de Jaraguá, numa chuvosa noite de sábado. Apesar da garoa, que caía sem dar sinais de trégua, um número razoável de adolescentes dos 15 aos 40 anos tomava conta do lugar. Essa era uma noite especial para os headbangers que frequentam com assiduidade o Kfofo – a casa que se tornou uma espécie de reduto dos fãs de metal da cidade. A programação trazia um show em homenagem a Chuck Schuldiner, líder e fundador do grupo norte-americano Death e um dos ícones do death metal morto em decorrência de um câncer cerebral, há dez anos. Segundo a divulgação, o evento teria início às 21h daquele 09 de abril – eram quase 23h, e a primeira banda ainda estava passando o som. Enquanto isso, do lado de fora, o público promovia um fabuloso espetáculo à parte. As meninas – em sua maioria adolescentes entre 15 e 20 anos – chegavam impecavelmente produzidas com indumentárias que pareciam saídas do guarda-roupa de um antigo filme de terror da Universal. Delineadores, botas, correntes e muitas caras e bocas. Havia também aquele pessoal da velha guarda que ainda encontra
O clima parece com o de uma grande confraria. São rostos familiares, todos se conhecem e estão habituados a bater ponto no local disposição para frequentar esses ambientes, com suas camisetas de bandas old school e jaquetas jeans repletas de patches de cima abaixo, igualzinho como se usava nos anos 80, além de uns cabeludos mais almofadinhas vestindo camisetas do Dream Theater. Era um verdadeiro desfile. Finalmente o trio anfitrião da noite assume suas posições, e ao som dos primeiros acordes um pequeno contingente se arrasta para dentro do local. Ainda que timidamente, o público começa a se formar. A maioria ainda meio dispersa, alguns em pequenos grupos. Olhares perdidos, expressões melancólicas – não se sabe ao certo o porquê de tanta tristeza. Talvez até hoje sofram inconformados pelo dia em que o Slayer lançou o disco Diabolus in Musica. O certo é que no palco o Goreslave seguia firme em seu set, rasgando dos amplificadores uma pancadaria aterradora, como uma terrível vingança saída da Bíblia. A banda se matava no palco, despejando em cima de uma plateia ainda apática uma avalanche de músicas acumuladas ao longo de 12 anos de estrada, mas foi apenas na cover de Pleasure to Kill, do Kreator, que a meninada começou a manifestar alguma reação. Lá fora, um carro adaptado para uma abordagem emi-
nentemente roqueira servia de apoio àquele costume clássico dos playboys de levantar a tampa da mala do carrão do papai e mandar ver na artilharia sonora, que desta feita consistia no som do metal pesado. Até então muita gente permanecia na rua, e somente ao fim da apresentação do Goreslave o espaço ficou realmente cheio – o que no Kfofo significa abrigar algo em torno de umas 250 pessoas. O lugar é aquilo que qualquer frequentador do Maikai chamaria de espelunca, mas tem lá seu charme e, segundo alguns músicos de fora, não fica nada atrás das bibocas undergrounds mais famosas do Rio. Trata-se de um velho galpão com duas escadas laterais que conduzem a um primeiro andar ao qual o acesso é proibido – e cuja restrição foi burlada por um casalzinho em busca de privacidade. O pequeno palco, em que não cabem mais de quatro pessoas, é decorado ao fundo com uma espécie de mosaico feito com ladrilhos hidráulicos, que garantem um efeito interessante quando expostos às luzes. Entre o final da apresentação da primeira banda e o set de covers do Death, executado pelos meninos do Goreslave ao lado de convidados, o clima ficou tenso. Vibrações realmente muito ruins. Ainda que seja previsível, não é aceitável que num ambiente escuro e apertado como aquele, abarrotado de adolescentes dispostos a extravasar a agressividade, ocorra algum tipo de distúrbio. E quando a roda começou a crescer e os participantes distribuíram as primeiras cotoveladas, alguns cidadãos começaram a se estranhar. “Toda vez que esse grandalhão vem a esses shows aqui (no Kfofo) é sempre a mesma coisa”,
afirmou Marlus Roberto, guitarrista da banda cover do Iron Maiden Powerslave, referindo-se a um jovem que aparentemente tem o costume de sair de casa para arrumar confusão. Ele continua: “Eu só tenho uma coisa a dizer: se o sujeito não quer levar pancada, fica longe da roda!”. Os amigos de alguns desses encrenqueiros arrastam a turma para um canto próximo ao lado direito do balcão do bar e logo começa uma discussão entre eles. O velho Chuck não ficaria nada feliz com isso... Em geral o pessoal é bem tranquilo. São apenas garotos que saem à noite para ouvir os amigos tocando os sons que eles cresceram ouvindo em casa. O clima em volta parece com o de uma grande confraria. São rostos familiares, todos aparentemente se conhecem e já estão mais do que habituados a bater ponto no estabelecimento. Quando alguém de fora do círculo aparece, inevitavelmente é olhado de cima a baixo, mas sem jamais ser importunado. O grupinho que foi ao show a fim de arrumar briga permaneceu empenhado em seu propósito de estragar a festa até o momento em que a polícia apareceu, conduzindo alguns até a rua. A banda cover do Iron Maiden, escalada para integrar a programação apenas um dia antes, subiu ao palco por volta das três horas do domingo, quando parte da garotada já havia debandado. Após um longo tempo gasto em ajustes técnicos, o grupo finalmente deu início à apresentação, comprovando que o público quer mesmo é consumir o que já é consagrado. O povo se empolgou. Braços erguidos, refrões cantados em uníssono e muita gente batendo cabeça e tocando guitarras e baterias ima-
ginárias. A celebração ao velho Maiden durou bem mais tempo do que seria recomendado numa programação que já se arrastava até aquela hora da madrugada. Mesmo assim, o público respondia bem e parecia disposto a extrair energia vital do fundo da alma. A banda Abismo foi quem recebeu a missão ingrata de fechar a noite, tocando para uma plateia para lá de combalida. Enquanto os caras se empenhavam para entregar uma performance minimamente vigorosa em meio ao evidente cansaço de cada um deles, muitos se recolhiam em algum canto para dormir. Os que conseguiam se aguentar em pé pareciam com um desses figurantes de filmes de zumbi do George Romero. Perto do final da apresentação, o grupo atendeu aos pedidos dos sobreviventes e despachou uma sucessão de covers que ia de Cowboys From Hell, do Pantera, a Raining Blood, do Slayer. Um microcosmo tão cheio de particularidades como esse já mereceria um estudo ou talvez um interessantíssimo documentário. A atmosfera do lugar e a forma como os headbangers se relacionam com o ambiente às vezes remetem o observador à ideia de que um vírus foi isolado naquele local. A garotada, de um modo geral, parece não se importar nem um pouco com o fato de vestir o estereótipo que lhes cabe e é bastante nítida a sensação de que aquela típica necessidade adolescente de fazer parte de algo grita em desespero – instintivamente, talvez eles saibam que é bom aproveitar enquanto é tempo, pois como já diziam os meninos irlandeses do Undertones num de seus rasgos de genialidade, “nunca é tarde para curtir diversão estúpida”.
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CENAS DO KFOFO A tarefa de traduzir apresentações musicais em imagens não é sempre igual, como muitos acertadamente devem supor. Experiente na área – de Chau do Pife a Tom Zé, ele captou momentos distintos da carreira de músicos de origens e escolas variadas –, o repórter fotográfico Marcelo Albuquerque conta que se sentiu bastante à vontade em meio aos headbangers que circulavam pelo Kfofo na noite em que nosso bravo estagiário desenvolvia sua pesquisa de campo. Se o metal contamina o olhar de um modo particular, especial? Para Marcelo, sim. Há uma certa tensão no ar, uma certa adrenalina que surge junto com o peso, com a música, que acabam por se fazer presentes nas fotos – como o leitor poderá perceber nas imagens reunidas nesta página. No ‘cineminha’ que Marcelão produziu no reduto dos fãs de heavy metal de Maceió, cenas que mostram o quanto essa turma curte o som e o estilo headbanger de ser.
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