identidade cultural do povo brasileiro, o forró carecia de um livro que contasse sua história. Foi a partir dessa constatação que os jornalistas paraibanos Carlos Marcelo e Rosualdo Rodrigues resolveram se debruçar
PROGRAME-SE Russian State Ballet traz O Lago dos Cisnes a Maceió. B3
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MÚSICA. Gênero de importância fundamental para a formação da
sobre o tema para realizar a pesquisa que resultou no livro O Fole Roncou! – Uma História do Forró, que reconstitui os passos da música popular nordestina por meio de episódios marcantes da vida e da trajetória artística de nomes como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Marinês, Trio Nordestino, Genival Lacerda e muitos outros. Em entrevista à Gazeta, Carlos Marcelo esclarece detalhes importantes desse universo, de sua origem até a atualidade, e conta um pouco das surpreendentes histórias de alguns de seus mais influentes personagens. Às vésperas da festa mais esperada do Nordeste, vale a pena revisitar lances dessa
Domingo 19/05/2013
odisseia, que tanto revela acerca do nosso próprio percurso
SANFONA, SUOR E CHAMEGO LUÍS GUSTAVO MELO
IMAGENS: REPRODUÇÃO
REPÓRTER
No começo havia valsas, tangos e foxtrotes, aqueles gêneros bem populares que embalavam a vida noturna nos grandes centros uns bons tempos atrás. Mas quando a turma boêmia do sudeste do país presenciou o aparecimento de uma nova música cheia de calor e alegria, executada por aquele rapaz humilde vindo do interior de Pernambuco, a audiência se viu irremediavelmente atingida pelo calor e pela pegada irresistível do forró. Nascia ali o mito de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, personagem de importância primordial na história do estilo musical que ele próprio formatou quase que por intuição e que tomou o Brasil de assalto com sua poderosa alquimia de ritmos. Primeiro grande artista pop brasileiro, ao apresentar às plateias do Rio de Janeiro o que havia aprendido nos terreiros do sertão pernambucano Gonzagão entrou para a história de nossa música como o maior divulgador dos valores da cultura popular nordestina. Isolando em uma nova roupagem o baião, o xaxado, o coco, o xote e o arrasta-pé, o Velho Lua abriu espaço para ele e para vários outros artistas igualmente talentosos que levaram aos conterrâneos radicados no Sul um pouco das lembranças das boas coisas do Norte. Detalhes de O Forró Sertanejo, xilo de J. Borges que ilustra a capa do livro
Figuras fundamentais como Jackson do Pandeiro, Marinês, Abdias, Pedro Sertanejo, Elino Julião, Genival Lacerda, Dominguinhos e Antonio Barros, entre muitos outros e cada um à sua maneira, ajudaram a construir a trajetória do gênero. É esse rico universo, povoado por personagens e histórias fascinantes ora bem-humoradas, ora dramáticas e envoltas em passagens sombrias, que os jornalistas Carlos Marcelo e Rosualdo Rodrigues buscaram reconstituir no livro O Fole Roncou! – Uma História do Forró, publicado com projeto gráfico caprichado pela editora Zahar. Por meio de depoimentos reunidos em mais de 80 entrevistas, documentos inéditos e análises argutas do fenômeno, os autores puderam compor um amplo panorama do estilo, revelando as glórias, as alegrias, os trancos, os barrancos e todo o resto em sete décadas de história. Na entrevista esclarecedora que concedeu à Gazeta no início da semana, Carlos Marcelo falou da importância de nomes atualmente pouco lembrados, mas fundamentais para a cristalização do gênero, destrinchou detalhes e fatos curiosos da história do forró e expôs sua visão sobre algumas das polêmicas surgidas em relação ao gênero ao longo dos anos. É o que você confere nas páginas a seguir. ‡ Continua nas págs. B2 e B6
Testemunhos & relatos Para contar a história do forró, Carlos Marcelo e Rosualdo Rodrigues realizaram mais de 80 entrevistas com vários dos nomes que ajudaram a pavimentar a estrada percorrida pelo gênero ao longo das últimas sete décadas. A Gazeta selecionou trechos do livro O Fole Roncou! – Uma História do Forró, obra essencial não somente para quem aprecia o estilo, mas para quem se interessa por música – e pelos lances que constituem sua mágica “Lá no sertão a gente não dava muita importância à composição. Eu era um inventador danado, quando quis me lembrar das coisas que eu havia tocado quando era menino, tive alguma dificuldade. Lembrei da asa-branca, do pé de serra, do juazeiro... Só tinha conhecimento que isso tinha dono, e que quando fazia era nosso mesmo, foi aqui no Rio de Janeiro. Aí eu sabia que determinada melodia nascia com a gente. Nós éramos os autores e tínhamos direito sobre ela” LUIZ GONZAGA “Esse negócio de que a palavra forró veio de for all é frescura. Vem de forrobodó, forrobodança... Significa festa, fuzarca, pagode... Forró é um local onde se canta tudo. Forró é tudo. Não é ritmo, nunca foi” BILIU DE CAMPINA, cantor e compostor paraibano “Jackson tinha um problema com a Jovem Guarda: achava que ela ia destruir a música popular brasileira. Dizia que as músicas da Jovem Guarda eram americanizadas e que aquilo estava desempregando todos os artistas que tinham a batida brasileira no coração. Então, ao nos ver de cabeleira grande e tal, ele nos confundiu, porque pensou que a gente era roqueiro” ALCEU VALENÇA “Eu tive muitos problemas no começo, e eu digo: ‘Rapaz, não vai botar, não. A Mastruz anda com 26 pessoas, não vou botar dançarina’. Os cabras querem comer as dançarinas; e bota veado, os veados fazem muita confusão... É muita putaria. Em banda que tem dançarina, a putaria é grande” EMANOEL GURGEL, empresário da banda Mastruz com Leite
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CONTINUAÇÃO DA PÁG. B1. “O forró é tão brasileiro quanto o samba, tão brasileiro quanto a bossa nova”, ressalta Carlos Marcelo ao avaliar a forma como a indústria fonográfica trabalhou o estilo. “A não ser que seja estritamente para indicar a região de origem da música. Sendo nesse sentido, tudo bem” DIVULGAÇÃO
Em O Fole Roncou!, Rosualdo Rodrigues e Carlos Marcelo (à dir.) deram voz a figuras importantes, mas pouco lembradas nos registros oficiais
RÓTULO DE ‘MÚSICA REGIONAL’ IMPÔS LIMITES AO GÊNERO Estratégia de mercado de gravadoras acabou por prejudicar a carreira de muitos talentos musicais, a exemplo da cantora alagoana Clemilda LUÍS GUSTAVO MELO REPÓRTER
Gazeta. O xote, o baião, o xaxado e vários outros ritmos fazem parte da cultura popular do Nordeste há tempos, mas chegaram ao conhecimento do restante do Brasil como uma espécie de sensação em meados dos anos 1940. Poderíamos considerar o baião defendido por Luiz Gonzaga como um fenômeno pop daquela época? Carlos Marcelo. Ah, com certeza. Acho que Luiz Gonzaga foi talvez o primeiro grande artista pop brasileiro. Especialmente porque a gente tem que entender pop muito mais do que um fenômeno musical; também como um fenômeno estético, e aí toda a indumentária que o Luiz Gonzaga utilizava propositalmente chamava atenção, ela era estilizada – ele usava as vestes de um cangaceiro, mas de forma estilizada – e o comportamento também, não é? Toda a questão comportamental, porque na verdade Luiz Gonzaga apresentou o Nordeste ao Brasil. No meio dessa visão mais pop, ele fez essa ponte. Ele estabeleceu a ponte entre uma região ainda pouco desenvolvida do país, que era o nordeste com o sul, digamos assim, porque tudo abaixo da Bahia era chamado de sul. Então ele praticamente construiu essa ponte e, sem dúvida, o baião, nesse sentido, pelas características das músicas que são de fácil assimilação e até pelo caráter didático de algumas delas, como a própria Baião (de Gonzaga e Humberto Teixeira), elas tinham esse caráter pop, mesmo. Então realmente Luiz Gonzaga talvez tenha sido o grande artista pop; e Jackson do Pandeiro também, um pouco depois, mas Jackson também faz esse papel, ainda fazendo um flerte com o jazz e misturando com o samba. Antes da música nordestina conquistar o Brasil com Luiz Gonzaga, o cantor alagoano Augusto Calheiros já havia vivido seus dias de glória no Rio de Janeiro. Ele foi inclusive uma forte referência para o próprio Gonzagão. Onde você situ-
aria a influência de Augusto Calheiros sobre os artistas que despontariam a partir da década de 1940 com o forró? Olha, eu acho que Augusto Calheiros tem uma importância muito grande, especialmente para os artistas que começaram a despontar – como você falou – até os anos 1950. O próprio Luiz Gonzaga admitia em entrevistas que a forma de cantar de Augusto Calheiros foi muito marcante e o influenciou muito. Outros cantores e compositores, como por exemplo Antonio Barros, que vive até hoje, também reconhecem a influência de Augusto Calheiros. Infelizmente a história dele não é tão bem documentada como deveria ser. Eu acho que ainda há uma grande lacuna na bibliografia brasileira em relação a essa história sensacional do Augusto Calheiros, e acho que o Brasil ainda tem uma dívida muito grande com ele. O pioneirismo dele deveria ser mais estudado, mais conhecido por quem quer acompanhar a trajetória da música brasileira. O papel dele é crucial na formação dessa primeira metade do século 20. Em entrevista concedida à Gazeta por ocasião do lançamento do livro Jacinto Silva – As Canções, o pesquisador Luciano José atribuiu o fato de o cantor alagoano Jacinto Silva não ter obtido maior visibilidade e não ser muito lembrado hoje em dia à não ida dele para o Sudeste. Você concorda com essa visão? Haveria outros fatores? Eu acho que sim. Certamente essa é uma das razões. Ele não ter se fixado no Sudeste certamente faz uma grande diferença. Mas a gente tem que lembrar que a música de Jacinto, apesar de não ter conquistado o Brasil da mesma forma que, por exemplo, a música de Jackson do Pandeiro, até hoje ressoa e é muito influente. Nas novas gerações ela encontrou um considerável espaço. O próprio material dos compositores mais jovens assume influências de Jacinto Silva, e isso foi muito interessante nesse trabalho que a gente fez no li-
vro, porque o nome dele surgiu naturalmente em várias conversas, tanto com cantores veteranos como Genival Lacerda, como com o pessoal da turma mais jovem como Silvério Pessoa, além de outros mais recentes que também assumem essa influência de Jacinto. Ele é um dos grandes nomes da música nordestina, sem dúvida alguma.
Para você, qual a importância da cantora Marinês, no sentido de cristalizar a figura da mulher no forró? Ah, total... A Marinês, como dizia Luiz Gonzaga, é a Rainha do Xaxado. Então, o que a gente de certa forma mostra em O Fole Roncou!, é que há, digamos, uma santíssima trindade no forró: Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, Jackson do Pandeiro, como a pessoa que mistura o chiclete com banana, como ele fala, e Marinês, que poderia ser mais valorizada pelo país. Ela foi a primeira grande voz feminina a surgir da região nordeste, a surgir com destaque no Nordeste e conquistar o país. Marinês tem ainda uma trajetória pouco conhecida pelo brasileiro, e na verdade ela quebrou vários paradigmas. Ela foi uma mulher muito à frente do seu tempo, quando ela percorria o sertão fazendo shows, cantando e fazendo músicas com Luiz Gonzaga... Ela tem um papel pioneiro fundamental e que poderia ser mais reconhecido, até porque, além de tudo, ela era uma intérprete inconfundível e inigualável. Então, sua influência é percebida até hoje, em cantoras como, por exemplo, Elba Ramalho. A Clemilda emplacou alguns sucessos de intensa veiculação, mas não é muito lembrada hoje. Você acha que isso seria um reflexo das sucessivas mudanças no mercado fonográfico, sempre ávido por explorar novos filões? Sim, exatamente. Infelizmente o forró foi, de certa forma, submetido às regras do mercado. Então ele teve uma onda, mas não permaneceu nessa onda, digamos assim. E isso acabou tendo um preço. Hoje eu acho que o forró
CARLOS MARCELO JORNALISTA, PESQUISADOR E ESCRITOR
“O próprio Luiz Gonzaga admitia em entrevistas que a forma de cantar de Augusto Calheiros foi muito marcante e o influenciou muito. Outros cantores e compositores, como por exemplo Antonio Barros, que vive até hoje, também reconhecem a influência de Augusto Calheiros. Infelizmente a história dele não é tão bem documentada como deveria ser. Eu acho que ainda há uma grande lacuna na bibliografia brasileira em relação a essa história sensacional do Augusto Calheiros, e acho que o Brasil ainda tem uma dívida muito grande com ele. O pioneirismo dele deveria ser mais estudado, mais conhecido por quem quer acompanhar a trajetória da música brasileira. O papel dele é crucial na formação dessa primeira metade do século 20”
também pagou um preço muito alto por ter sido estigmatizado como música regional. E forró, na minha visão, não é música regional nordestina – a não ser que você considere o samba uma música regional carioca, né? O forró é tão brasileiro quanto o samba, tão brasileiro quanto a bossa nova. Então, assim, a gente tem que valorizar mais e tentar escapar desse conceito de ‘música regional’, de música regionalista. Porque isso é limitador e acaba de certa forma depreciando também a música. A não ser que seja estritamente para indicar a região de origem da música. Sendo nesse sentido, tudo bem, mas você rotular o forró como música regional é, de certa forma, depreciativo e você acaba tendo uma visão limitadora, porque o forró é muito maior do que isso. Infelizmente o mercado fonográfico não trabalha dessa forma. Durante quase todo o tempo que a indústria deu as car-
tas no Brasil – porque agora não existe mais isso –, ela tratou o forró como música regional; música de nordestino e para nordestino. E eu acho que isso fez muito mal ao forró.
A década de 1960 representou um momento em que o forró obteve uma grande aceitação popular. Nesse contexto, poderíamos considerar a casa de shows Forró do Pedro Sertanejo como um componente importante no sentido de estabelecer o gênero como fenômeno de massa e elo entre o povo nordestino e os artistas da região que foram tentar a vida no Sudeste? Certamente. Especialmente para São Paulo, não é? Foi uma referência paulista e um ponto de convergência dos nordestinos que tinham se mudado para São Paulo. Isso não chega a ultrapassar esses limites da origem do povo, mas foi um ponto de resistência, digamos assim, do forró em São Paulo, a casa de Pedro Sertanejo. E não só isso: o trabalho dele como radialista que tocava os artistas da região. Pedro Sertanejo é um dos nomes mais importantes da trajetória do forró e também muito pouco conhecido. O trabalho que ele fez em São Paulo é exemplar e os discos que ele gravou também são igualmente imperdíveis. Eu acredito que o trabalho dele teve uma grande importância para a cidade de São Paulo e para as cidades do ABC; como alguns outros forrós também desempenharam o mesmo papel no Rio de Janeiro, por exemplo. Ele plantou uma semente que até hoje pode ser observada e apreciada na capital paulista. O forró é um gênero bastante conservador. Seus maiores guardiões, digamos assim, não são muito favoráveis a ‘modernidades’. No entanto, quando artistas como Fagner, Elba Ramalho e Alceu Valença surgiram nos anos 1970, trazendo informações do pop contemporâneo, conseguiram conquistar a simpatia da velha guarda da música nordestina e até formaram parcerias com Luiz Gonzaga. A que você atribui essa identificação? Eu acho que é porque esses artistas que surgiram nos anos 1970 carregavam essas músicas no DNA. Eles cresceram ou-
vindo Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, ouvindo a própria Marinês. Esses eram os artistas que tocavam nas rádios e nas casas deles. Só que eles também tiveram uma outra informação, eles foram para a universidade, ouviram outros sons, tiveram formação teatral, como no caso da Elba Ramalho, tiveram formação universitária, como no caso de Alceu Valença. Passaram por outros lugares do Brasil, como no caso do Fagner, que chegou a morar em Brasília por algum tempo... Então essa trajetória deles, digamos assim, mais ampla do que a dos artistas pioneiros, fez com que eles pudessem naturalmente estabelecer uma nova geração, estabelecer uma nova sonoridade, onde eram preservados alguns dos elementos da primeira geração, mas também se adicionava novos instrumentos e se trazia uma nova roupagem para as músicas tradicionais. Isso é muito nítido no trabalho de Alceu Valença, por exemplo, em músicas em que ele chegou a dividir com Jackson do Pandeiro, como Coração Bobo, e do próprio Luiz Gonzaga com Fagner, no disco Luiz Gonzaga & Fagner e, claro, nos trabalhos de Gilberto Gil com Dominguinhos, e no trabalho de Elba, que também acabou produzindo um disco para Marinês. Então, de certa forma, todos esses artistas prestaram os seus tributos aos artistas pioneiros. E nisso eles foram muito felizes, porque mostraram que a música deles tinha origem muito forte e cabia a eles, também, divulgá-la. ‡
Serviço Título: O Fole Roncou! – Uma História do Forró Autor(es): Carlos Marcelo e Rosualdo Rodrigues Editora: Zahar Preço: R$ 49,90 (504 págs.)
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CONTINUAÇÃO DA PÁG. B1. “O mais importante é que todos possam tocar forró em todas as suas variantes, em todas as suas acepções, em todas as suas transformações, porque tocar forró é tocar o Brasil”, diz Carlos Marcelo
VARIAÇÕES DE UM MESMO GÊNERO, ONTEM E HOJE
ACERVO DA FAMÍLIA CALIXTO
LUÍS GUSTAVO MELO REPÓRTER
Gazeta. Artistas como Dominguinhos, Alcymar Monteiro, Biliu de Campina e muitos outros rechaçam veementemente o forró eletrônico. Por que a aceitação por esses grupos modernos não se deu da mesma forma que com os artistas nordestinos dos anos 1970 que foram influenciados pelo rock? Carlos Marcelo. Eu acho que porque a música adquiriu um caráter muito comercial, muito mercantilista. Infelizmente, nove entre dez desses grupos atuais têm uma forma muito padronizada para fazer shows e gravar discos, não é? Não há um investimento muito grande na questão da composição, e sim na produção industrial. Ou seja, é quase que um modelo de negócio, e muito menos uma indústria criativa. E eu acho que isso é que faz a diferença, por isso que apesar de serem muito bem-sucedidos – e são, porque eles arrastam multidões não só pelo Nordeste, mas também em outras regiões –, eles acabam não repercutindo tanto como esses primeiros artistas, por conta dessa coisa de cair numa fórmula, uma fórmula comercial que é bem-sucedida, tem muito êxito, é uma fórmula lançada pelo Emanuel Gurgel, do Ceará, com as bandas de forró eletrônico (que se chamou depois de ‘oxente music’), mas isso depois acabou caindo numa certa repetição, tudo acabou ficando muito parecido. E essas semelhanças entre as bandas, essa fórmula, faz mal, porque acaba não provocando a fagulha criativa. Você tem ali uma coisa muito padronizada, um modelo já estabelecido. Em meados dos anos 1960, no auge comercial do forró, o sanfoneiro Abdias desempenhou um papel importante como produtor musical e diretor artístico da divisão nordestina da gravadora CBS. Com o poder de decisão e o tino comercial que ele possuía, seria possível traçar um paralelo entre o poder de Abdias naquela época e o ‘reinado’ do empresário Emanuel Gurgel, que nos anos 90 construiu um império com suas bandas de forró estilizadas no Ceará? Mais ou menos. Do ponto de vista da trajetória pessoal, sim. Porque estamos falando de duas pessoas que não tiveram formação, não é? Então, assim, eles fizeram tudo muito na base da intuição e do talento mesmo para o negócio. Só que o Abdias era músico, e isso faz toda diferença. Abdias sempre foi músico, sempre gravou seus discos... Foi um exímio sanfoneiro de oito baixos. E o Emanuel Gurgel não é músico, nem nunca foi. O Emanuel Gurgel sempre teve muito mais um tino empresarial do que musical. Essa é
uma das diferenças; a outra é que o Emanuel Gurgel praticamente teve uma autonomia que o Abdias nunca teve: o Abdias, apesar de ser o chefe do departamento regional da gravadora CBS, nunca teve autonomia total na gravadora, uma vez que ele tinha que responder à presidência da gravadora – ele fazia parte de uma estrutura. Emanuel Gurgel, não. Ele praticamente implodiu isso e foi um dos pioneiros do sistema de distribuição independente no Brasil, uma vez que ele mesmo fabricava os CDs e repassava para as rádios, comprava espaços em rádio para tocar as músicas dele, para que ficassem conhecidas para quem ia ao show... Então, nesse ponto, ele pôde ser mais ousado do que o Abdias. Mas são duas pessoas com trajetórias muito particulares, muito importantes. Dois nordestinos que souberam quebrar barreiras e trabalhar, cada um à sua maneira, o melhor do potencial dos seus artistas.
Qual a sua posição em relação ao fenômeno do forró eletrônico? Para você, a proliferação desses conjuntos modernos é tão danosa à tradicional música do Nordeste quanto seus detratores apontam? Não, eu não vejo assim... Eu acho que se trata de um fenômeno do nosso tempo. Ele é muito mais um sintoma do que uma doença. Claro que isso não faz parte, por exemplo, do meu gosto pessoal. Não é o tipo de som que eu gosto de ouvir: prefiro as músicas do forró mais tradicional. Mas isso é absolutamente irrelevante; meu gosto pessoal, nesse ponto, é irrelevante. Porque de certa forma eles estão produzindo música, estão gerando emprego e fazendo disso um negócio que sustenta milhares de pessoas. Desse ponto de vista, eu acho extremamente válido. Agora, do ponto de vista da relevância artística, acho que só o tempo vai poder responder. Acho que é um fenômeno ainda relativamente recente para que a gente possa ser tão incisivo em relação à qualidade ou a ausência disso. Eu só acho que o forró eletrônico é muito mais um sintoma dos nossos tempos do que uma doença, e cabe sim aos pesquisadores, especialistas e críticos de música, com o passar do tempo, irem analisando o que representou esse fenômeno para a música brasileira. Assim como, por exemplo, o sertanejo universitário é decorrente da música caipira. Então, também é outro sintoma do nosso tempo. São sintomas de uma nova época, de parâmetros de um Brasil que mudou. Se a mudança foi para melhor ou para pior, eu acho que cada um deve procurar a resposta. Eu tenho a minha resposta, mas tenho certeza que outros terão uma diferente da minha.
Como na indústria do forró eletrônico os músicos são meros contratados, você concorda que o gênero descarta a figura do artista como ídolo popular, alguém que sirva de referência como os grandes nomes do estilo? Não, eu acho que alguns deles têm um carisma próprio e conseguem se estabelecer como ídolos. Em relação aos músicos contratados, ok. Mas, assim, grandes artistas também utilizam músicos contratados. A própria Elba Ramalho tem sua banda, e ela é a estrela do show. Acho que não há nenhum demérito nisso. Alguns músicos trabalham com músicos contratados e outros não. E acho que é possível, sim, que apareçam estrelas. A gente não pode negar, por exemplo – falando um pouco de um gênero assemelhado, que naturalmente não é a mesma coisa –, o carisma da dupla Joelma e Chimbinha, do Calypso. Eles têm um carisma próprio, por isso fazem tanto sucesso. Assim como outros artistas realmente populares. Então acho que seria muito preconceituoso da nossa parte julgar quem está nessa apenas por dinheiro ou quem está nessa por talento. Acho que nisso o público sempre será o mais qualificado para responder – muito mais até do que os próprios críticos ou especialistas. Quando grupos como Mastruz com Leite e Cavalo de Pau, entre outros, já estavam saturando o mercado, surgiu uma nova geração de artistas mais afinados com o forró tradicional. Na sua opinião o forró universitário é uma manifestação cultural autêntica ou apenas um modismo, como apontou o compositor Biliu de Campina? Aí é uma questão da nomenclatura. Acho que ao falar em forró universitário, você está se referindo muito mais às plateias do que aos grupos, por conta dessa capacidade que eles têm de atrair universitários, de atrair um outro tipo de público. Mas eu acredito que artistas que estão consolidados como Falamansa, Bicho de Pé e, um pouco diferente, mas ainda na mesma vertente, o Clã Brasil, da Paraíba, eles têm uma capacidade muito grande de mobilizar um público diverso e eclético. E é curioso que isso tenha nascido no Sudeste, e não no Nordeste, não é? Nasceu no Espírito Santo, depois desceu um pouco para a Bahia, mas também foi para São Paulo, Rio de Janeiro – a banda Rastapé também é outro grupo importante nesse trabalho... Na verdade, todos eles fazem parte da mesma árvore. São diferentes ramificações, mas todos fazem parte de uma mesma árvore que foi plantada por Luiz Gonzaga. Eu acho que isso é importante destacar, e cabe a cada um de nós selecionar os frutos que a gente quer provar
MARCOS FARIAS/ACERVO PESSOAL
Forró eletrônico, universitário... Ainda que diferentes em essência, ritmos podem ajudar a difundir ainda mais o forró, avalia o pesquisador GIGANTES Acima, Genival Lacerda, Jackson do Pandeiro e Zé Calixto; na foto ao lado, o sanfoneiro Abdias, personagem fundamental para o sucesso do forró como produtor musical e diretor artístico da divisão nordestina da gravadora CBS, nos anos 1960
CARLOS MARCELO JORNALISTA
“Não acredito que o forró esteja condenado à extinção, nem que ele precise ser preservado. Eu acho que ele precisa ser valorizado e conhecido, antes de mais nada. Eu acho que ele precisa ser mais conhecido e mais respeitado – isso não quer dizer que ele precise ser preservado”
dessa árvore. O importante é que haja realmente um ecletismo e que haja uma diversidade de frutos e de oferta. E acho que o forró universitário nesse ponto é muito saudável, porque ele cultua e valoriza o trabalho dos pioneiros. De alguma forma ele ajuda a divulgar as músicas que deram origem a isso tudo: essa grande árvore chamada forró.
Como secretário de Estado da Cultura na Paraíba, o cantor Chico César envolveu-se numa grande polêmica quando declarou que não contrataria grupos de forró estilizado para a programação das festas juninas. Até que ponto você acha que medidas como esta podem ser defendidas por um gestor público, sob a justificativa de incentivar os artistas tradicionais? Bom, aí eu acho que é uma outra polêmica, não é? Porque é um pouco diferente do que estávamos falando antes, porque aí ele estava dizendo que não vai gastar dinheiro público com bandas que já tenham público cativo. Nesse ponto eu acho que ele está correto. Acho que não é necessário, essas bandas não precisam do dinheiro público para sobreviver. Elas conseguem perfeitamente fazer seus shows e serem financiadas pelo próprio público; afinal de contas, fazem muito sucesso. E aí é uma questão de opção. Obvia-
mente o orçamento da Secretária de Cultura da Paraíba, não é um orçamento milionário. Nesse ponto, talvez ele tenha feito uma opção, no meu ver, correta, ao autorizar os artistas mais tradicionais. E acho que há por trás disso – que o Chico César estava de certa forma denunciando – um esquema muito grande de compactuamento entre as prefeituras e os empresários dessas bandas. Então, isso faz muito mal. Porque aí já houve até denúncias de superfaturamento de cachês, e tudo. Essa é uma outra problemática, que acho que é o que o Chico César quer dizer: que não há necessidade de usar dinheiro público para financiar esse tipo de grupo. E nisso eu concordo com ele, mas não só em relação ao forró. Em relação a qualquer grupo comercial, inclusive, de grandes artistas da MPB. Não acho necessário que a diversão seja paga com dinheiro público. A não ser num evento especial, como a festa de aniversário de uma cidade, enfim... Alguma coisa nessa linha. E mesmo assim é importante que se traga artistas que tenham vínculo com a região. Por exemplo, se vai ter um show para comemorar o aniversário de Maceió, imagino que seja muito mais relevante trazer o Djavan do que o Luan Santtana. Eu acho que esse é o ponto: a relevância e o vínculo do artista com aquela comunidade. Mesmo que o Djavan seja um artista muito bem-sucedido comercialmente – que ele é –, é muito mais relevante ouvi-lo num show ao ar livre em Maceió do que um artista como Luan Santtana. Então, nesse ponto, se a gente fizer essa analogia, acho que faz sentido a argumentação do Chico César; e aí eu concordo com ele.
E sobre a ‘preservação dos valores tradicionais’: você acha que o estilo cristalizado pelos grandes nomes do gênero realmente precisa dessa proteção? O ritmo
em sua forma clássica poderia mesmo deixar de existir, soterrado pela ganância da indústria do forró eletrônico, como os mais fatalistas costumam defender? Não, não... Eu não sou tão fatalista assim, não. Não acredito que o gênero esteja condenado à extinção, nem que ele precise ser preservado. Eu acho que ele precisa ser valorizado e conhecido, antes de mais nada. Eu acho que ele precisa ser mais conhecido e mais respeitado – isso não quer dizer que ele precise ser preservado. Acho que preservação, nesse caso, dá a ideia de uma coisa imóvel, sabe? Uma coisa que fica intocada; e forró pode e deve ser tocado sim, em todos os sentidos da expressão. Merece ser tocado, pode ser transformado. Ele pode ganhar novas formas, sabe? Novos instrumentos... Isso ele precisa para continuar ganhando vida, para continuar presente no coração das pessoas. Eu acho que o forró precisa estar mais presente no imaginário coletivo do brasileiro, como ele já esteve nos anos 1940, nos anos 50 e nos anos 60. Isso, sim, ele deixou um pouco de ter, porque perdeu para outros gêneros brasileiros como, por exemplo, o pagode. Mas a forma de fazer isso é tocar, o mais importante é que todos possam tocar forró em todas as suas variantes, em todas as suas acepções, em todas as suas transformações, porque tocar forró é tocar o Brasil. Eu acho que isso é o mais importante. Tocar o forró é tocar música brasileira popular. É tocar uma música que o povo gosta e que o povo quer ouvir. E muitas vezes as pessoas esquecem disso: que o forró é uma das músicas mais brasileiras já concebidas neste país e não é uma música regional, é uma música brasileira. Música brasileira popular, feita pelo povo e para o povo. E por isso ela é tão importante no nosso imaginário coletivo. ‡