João Paulo Vicente
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Com abordagem criativa e inovadora, o O sociólogo, escritor eFrederico crítico historiador Carlos Alberto Dória, um dos Pernambucano de mais respeitados nomes da área de o Mello redimensiona gastronomia no Brasil fenômeno do cangaço: obras se tornam referência obrigatória nos estudos.
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O MITO PRIMORDIAL BRASILEIRO TEXTO: LUÍS
GUSTAVO MELO
Em entrevista à Graciliano, o historiador Frederico Pernambucano de Mello, especialista no tema cangaço e autor do clássico Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil, traça um perfil minucioso da trajetória de cinco séculos desse fascinante fenômeno social que abalou a sociedade brasileira até meados do século passado, e fala sobre a importância de seu legado cultural para a memória nacional
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a preciosa contribuição do pesquisador como consultor histórico. Formado em História e Direito, durante 15 anos Frederico Pernambucano fez parte da equipe do sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987), na Fundação Joaquim Nabuco, onde se especializou no estudo da cultura da região Nordeste. Membro da Academia Pernambucana de Letras e presidente da União Brasileira de Escritores – Seção de Pernambuco, o pesquisador também é filiado aos Institutos Históricos de Pernambuco, Alagoas e Rio Grande do Norte, do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil, da Academia de História Militar Terrestre e foi o curador internacional da Fundação Bienal de São Paulo para a
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ão mais de 40 anos de pesquisas sobre o fenômeno do banditismo rural no Sertão do Nordeste. Autoridade no estudo da região mais velha do país, o historiador Frederico Eduardo Pernambucano de Mello é sempre a principal referência quando se fala sobre o cangaço. Se o tema é esse, as pessoas invariavelmente o procuram. Foi assim, por exemplo, quando, em fins de 1995, os ainda muito jovens Paulo Caldas e Lírio Ferreira foram até seu gabinete na Fundação Joaquim Nabuco, a fim de discutir ideias que pudessem definir o conteúdo do que viria a ser o filme Baile Perfumado, uma das produções mais inspiradas e vitais do cinema brasileiro contemporâneo, e que ao longo de sua concepção contou com
“Bandoleiros da caatinga”, os cangaceiros eram tidos como mestres na arte de atacar e se esconder; na foto, cena do filme Baile Perfumado, de 1995
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Mostra do Redescobrimento, em 2000. Autor de obras fundamentais para o estudo do cangaço – a exemplo de Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil, livro publicado originalmente há exatos 30 anos, e ainda a maior referência sobre o tema, Estrelas de Couro: A Estética do Cangaço, título inovador que apresenta em sua bela coleção de imagens o lado artístico de Lampião e seu bando, e Benjamin Abrahão: Entre Anjos e Cangaceiros, biografia do homem que imortalizou a imagem do Capitão Virgulino Ferreira da Silva em película e em fotografias –, Frederico reconhece que, mesmo com o variado conjunto de publicações apresentado até o momento, ainda há muito a ser explorado no universo dessa temática. Na entrevista que você confere a seguir, Frederico Pernambucano esclarece os mais diversos episódios e fatos obscuros relacionados à história do cangaço, fala da importância do legado desse fenômeno para a cultura brasileira, comenta sobre o valor da coleção de objetos de Lampião e seu bando, presente no museu do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL), e acena para a possibilidade de expor as peças de seu acervo particular aqui no estado.
GRACILIANO – Alguns historiadores afirmam que a prática do banditismo no cangaço passou a se manifestar a partir de meados do século 19. No entanto, existem informações que apontam o fenômeno como algo surgido muito antes disso. Quando, de fato, se deu a sua origem? FREDERICO PERNAMBUCANO DE MELLO – Tem sido comum entre autores, sobretudo os do Sudeste, datar o que seria o início do cangaço de meados do século 19. Como se fosse um movimento instituído formalmente e não um fenômeno social espontâneo. Para outros, 1870 seria o termo inicial. Nenhuma razão apresenta como responsável por esse “início”, por assim dizer, mágico. O que pudemos verificar a respeito dessa datação, e das razões que possam tê-la informado, é que o meado dos Oitocentos assinala, isto sim, o início da percepção das correrias do cangaço por parte da nascente opinião pública brasileira, toda ela concentrada no litoral. Era o Brasil profundo que começava a ser devassado por uma imprensa que engatinhava e ia tomando conhecimento de asperezas como a seca, o banditismo e o chamado fanatismo religioso. No tocante ao cangaço, quando nos reportamos à natureza essencial de
insurgência popular coletiva, rural, armada, contínua no tempo e metarracial, que é como o conceituamos depois de décadas de estudo, constatamos que o fenômeno é velho de cinco séculos. Em seu estudo sobre o tema, além de chamar a atenção para o fato de o fenômeno ter ocorrido ao longo de cinco séculos, o senhor também mostra que ele não tem o Sertão como seu lugar de origem. Por que o cangaço é mais associado ao Sertão? Nas linhas essenciais de banditismo rural, o cangaço se caracteriza geograficamente por ser um fenômeno transumante da Mata para o Sertão do Nordeste. Um deslocamento do verde para o cinzento, como está estudado em nosso livro Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil. O êxito
da colonização litorânea vai dando conta de tangê-lo para a caatinga, deixando para trás a faixa fértil da região, que se organizava política e economicamente com base na cana-de-açúcar e na economia de exportação que esta propiciou com êxito. Um movimento vagaroso, secular, de ritmo acentuado na passagem do século 18 para o 19, esse da conversão da caatinga na pátria do cangaço. Com vegetação lacerante, relevo ocultador, grandes distâncias sem comunicação e um tipo humano individualista e altivo ao extremo, como é o caso do homem da civilização pecuária, o Sertão vem a se oferecer como o refúgio natural por excelência para o banditismo regional. Foi ali que o fenômeno recebeu as denominações correlatas de “cangaço” ou “cangaceirismo”
GUERREIROS DO SOL: VIOLÊNCIA E BANDITISMO NO NORDESTE DO BRASIL Lançado originalmente em 1985, o livro se tornou um marco na historiografia brasileira ao analisar os princípios e valores que balizavam a rotina e o modo de pensar das populações do Sertão nordestino. Atrocidades variadas, incluindo roubos e homicídios em massa – eis um universo inteiramente revisto e enriquecido pelo olhar do intelectual pernambucano.
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mãos da polícia do Estado de Alagoas, com direito a noticiário para o estrangeiro, em ondas curtas, pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro, e registros copiosos pelo New York Times e Paris-Soir. Esse mito primordial brasileiro a que o senhor costuma se referir, de um modo de viver sem lei, nem rei, seria um princípio que define a razão de ser e de ter existido o cangaço no interior do Nordeste? Na esteira do descobrimento, houve um Brasil que não se dobrou aos valores trazidos pelo colonizador europeu e se manteve insubmisso. De armas na mão, por vezes. Em intermitência, a partir
mesmo do século inaugural de nossa existência, essa rebeldia arvorada contra os valores do mercantilismo – e da cultura formal inovadora da organização de vida do homem que essa ideologia econômica trouxe de permeio – pontilhou nossa história de períodos de violência, nas espécies bem conhecidas do levante indígena, do quilombo negro e da revolta social. Na linha contínua, entroncada na mesma postura de irredentismo, temos o cangaço, velho de cinco séculos, a nos oferecer uma sucessão de “realezas” imortalizadas pela poesia de gesta, pelo cantador de viola, pelo cego rabequeiro de pátio de feira e pelo poeta de
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e de “cangaceiro”, designativas de estilo de vida e de seu protagonista, as referências escritas mais antigas remontando a 1871. Foi na caatinga que se deu sua elevação a fenômeno de massa, alternando períodos endêmicos e epidêmicos, estes últimos ligados, em regra, às secas e agitações políticas; como também sua organização militarizada nas funções e no armamento. Também ali se deu o desenvolvimento de sua estética inconfundível, que hoje nos confere, por meio da meia-lua com estrela, a marca visual do Nordeste do Brasil. Por fim, foi ali que se deu seu ocaso esplendoroso, em 1938, pelas
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cordel, incansáveis na produção da imagem social dos mais notáveis capitães de cangaço a se sucederem no tempo. A raiz de tanta insurgência está no que tenho chamado de mito primordial brasileiro. Na convicção, cedo entranhada na mente do colonizador, de que era possível “viver sem lei nem rei e ser feliz” nessa parte do Novo Mundo habitada por uma variedade de raças castanhas. Vergado ao peso da Coroa absolutista portuguesa, que lhe fazia carga sobre um ombro, e do Papado inquisitorial de Roma, sobre o outro, o colonizador se extasia ante a suposta liberdade do nosso índio. E se apressa a
Na rebeldia frente os valores do colonizador português está um dos fatores que explicam o surgimento do cangaço. Homens à margem queriam uma vida sem lei Antes de mais uma ação, o bando de Lampião posa para a foto: o zelo com a imagem é um dos traços marcantes na rotina selvagem
escrever para a Europa, alegre por transmitir a quase poesia de que, nestes trópicos abaixo do Equador, seria possível viver sem lei nem rei e ser feliz. Nascia o mito primordial que nos acompanha até hoje. E que não serviu de fonte apenas à criminalidade violenta do cangaço. Esta, sim, uma criminalidade dotada de certos traços de heroísmo, por ser orgulhosa, escancarada e sem dissimulações, a partir do traje inconfundível. Exemplo? Ao se referir, diante de terceiros, ao estilo de vida que adotava, o cangaceiro costumava bater no peito e repetir orgulhoso: “cangaceiro não rouba, toma pelas armas, e, quando encontra um mais forte, perde a fama e vida”. Contudo, o mito viria a inspirar coisa pior. Acaso o patrimonialismo, um dos flagelos do panorama político brasileiro em todos os tempos, não é uma de suas heranças? Seria correto classificar os cangaceiros como “bandidos sociais”? O conceito de banditismo social, um conceito fluido reaquecido por Hobsbawm na segunda metade do século passado, nunca foi muito aplicável ao nosso cangaço. Sua presença corresponderia àquele instante em que o fenômeno se transforma em movimento, o bandido comum vindo a ser cooptado em favor de um reclamo social. Há autores
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sérios, como o brasilianista alemão Ronald Daus, que consideram essa conversão um delírio do que chamou de “marxismo simplificado”. Não obstante, é possível que essas conversões fugazes tenham estado presentes no banditismo europeu da Idade Média; no italiano, dos anos 1860 – no limiar da unificação do país peninsular – ou no mexicano, dos anos 10 do século passado, momentos que guardam em comum a fragilização do poder político oficial e de suas instituições. Entre nós, pode-se cogitar de que certas agitações do Período Regencial, na primeira metade do século 19, tenham engrossado suas hostes com cangaceiros postos à sombra de uma bandeira momentânea, quase sempre difusa. Teriam sido bandidos sociais, a serviço de propostas reformistas da sociedade, sem chegar ao empenho revolucionário. Mesmo quando investido dessa condição mais elevada, o cangaceiro não queria destruir a sociedade. Quando muito, reformar-lhe alguns aspectos, no afã de repor um passado de maior justiça na relação entre os homens. A conhecida nostalgia em torno dos supostos bons e velhos tempos de outrora. Em seu livro Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil, o senhor identifica os diversos
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tipos de cangaço. Quais as características mais marcantes de cada um ao longo do tempo? Dentre os principais representantes dessa linhagem de fora da lei, quais foram os mais importantes? Propusemos uma classificação que corresponde ao propósito de vida do protagonista do fenômeno, segundo íamos ouvindo dos depoimentos tomados de ex-cangaceiros, à frente Medalha, do bando de Lampião. Vimos que o cangaço tinha sido um meio de vida, uma “profissão” declarada, notadamente para o proletariado e o pequeno proprietário de terras; instrumento de vingança, para os membros de famílias mais remediadas ou mesmo senhoriais, e refúgio nômade, para perseguidos de toda ordem, da Justiça ou da vingança privada dos coronéis. Teorizamos em cima da realidade colhida de fonte oral, mas também do documento escrito, tudo filtrado naturalmente pelos crivos que a História fornece nos dias atuais. Afinal, como dizia Hayett, sem a teoria, os fatos se quedam mudos. A cada tipo de cangaço corresponde o casamento de aspectos subjetivos e objetivos bem marcados, pudemos mostrar em análise que ocupa quase dois capítulos do livro. Expoentes do cangaço profissional foram Antônio
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Silvino e Lampião, os dois nomes mais celebrados na crônica do fenômeno como um todo. Como vingadores, Jesuíno Brilhante e Sinhô Pereira se destacam. Fazendo do cangaço um refúgio nômade das caatingas, podemos apontar Ângelo Roque, ou Anjo Roque, o Labareda. Lançado há exatos trinta anos e já na quinta edição revista e atualizada, o livro não sofreu contestação no particular.
O destino de Virgulino parecia traçado para a vida à base da espingarda. Intrigas entre famílias acabam em morte Como foi o início da trajetória de Virgulino Ferreira da Silva no cangaço? Relatos da vida de Lampião foram conhecidos muito cedo, ainda em vida deste, graças ao fato de ter sido o famoso cangaceiro um incansável marqueteiro de si mesmo. O encontro da viola com o punhal, do poeta com o cangaceiro, com vistas à coleta de revelações que explodiam na boca dos cantadores ou nos folhetos de cordel logo no dia seguinte, foi sempre uma possibilidade
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fácil no que toca ao Capitão Virgulino Ferreira da Silva. No começo dos anos 20, já se sabia que seu engajamento inicial se dera – com dois dos irmãos mais velhos, Antônio e Livino –, em bando formado por um tio materno, Antônio Matilde, mais conhecido no Sertão como Martila, com atuação nos municípios alagoanos de Matinha de Água Branca e de Mata Grande, este último denominado à época de Paulo Afonso, como também ao sul do Moxotó pernambucano. Entre 1918 e 1919, os irmãos Ferreira vêm a ser absorvidos pelo bando dos irmãos Porcino, família quase selvagem de pernambucanos da região do Pajeú, os Cavalcanti de Lacerda, tangidos, já por conta de questões, para a localidade Olho d’Água de Fora, a noroeste de Água Branca. Os irmãos Antônio e Pedro Porcino dividiam a chefia do grupo, de que faziam parte ainda os também irmãos Cícero, Manuel e Raimundo. Por que Lampião se tornou a figura de maior influência em toda a história do cangaço? Por sua vocação completa para a “vida da espingarda”, como se diz ainda hoje no Sertão, mas também pelas qualidades eficazes de administrador e de diplomata. Qualidades que empregava de modo especial na convivência cotidiana com a melhor elite interiorana,
que hoje receberia o título de franquia. Que foram Corisco, Mariano, Moderno, Zé Baiano, Português, Moita Braba, Zé Sereno, Salamanta, Jararaca, Chumbinho, Balão, Criança, Juriti, Diferente, chefes de subgrupo que a tradição reteve e a poesia de gesta imortalizou, senão franqueados do cangaçoempresa a que Lampião deu vida? Na época do cangaço, existia a figura do coiteiro. Como se dava essa relação de troca de favores com essas pessoas que os acolhiam? A relação era de dependência clientelista, no que diz respeito a quem não tinha como se defender do cangaceiro na caatinga, aí incluídos naturalmente os estratos mais baixos da sociedade. Essa relação recebia o estímulo de uma das constantes reconhecidas no banditismo rural, daqui e de fora: a do pagamento generoso a informantes e fornecedores, por parte do salteador. Enriquecido pela rapina, o chefe cangaceiro remunerava regiamente quem o auxiliava, de trabalhadores de roça a vaqueiros, de tropeiros a telegrafistas, de ciganos a sacerdotes, como se deu sempre com Lampião. Com os coronéis de barranco, a coisa era diferente. As relações se davam de igual para igual. Afinal, como dissemos no Guerreiros do Sol, os chefes
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As ações do cangaço impuseram aos moradores da região mudanças em suas rotinas: ou viravam coiteiros ou ficavam na mira dos fascínoras que espalhavam medo Divulgação
conquistando praticamente todos os coronéis de barranco e chefes políticos sertanejos, aos quais atraía por meio do oferecimento de soluções violentas para conflitos em que pudessem estar envolvidos, como também, em muitos casos, pela proposta de sociedade na rapina. Um arranjo mais comum do que se imagina. Não foram poucos os coronéis sertanejos enriquecidos nos negócios com Lampião. Surpreendentemente, um homem calmo, tratável, bem-educado, que falava baixo, quase sussurrante, em conversação moderna e atraente. Cerebral, absolutamente capaz de segredo e com palavra que valia por documento, Lampião inspirava confiança à elite sertaneja. Eis o conjunto de habilidades que lhe permitiu dar vida ao que tenho chamado, sem exagero, de Cangaço S/A. Para o que se valeu, por exemplo, da sistemática moderna da administração por delegação, bebida da convivência com o coronel Delmiro Gouveia, na Vila da Pedra, Alagoas, de quem foi tropeiro nos anos verdes, juntamente com o pai e os irmãos. Outro exemplo? Ao longo dos anos 1930, Lampião chefiava indiretamente cerca de dez subgrupos que operavam em diferentes estados da região, em sistema
Os irmãos Ferreira: Lampião e Antônio. O banditismo rural acabou por atrair a família de índole nada pacífica
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de cangaço mais bemsucedidos arvoraram-se em verdadeiros coronéis sem terra, agindo à margem de disciplinas e de patrões. Tal como os coronéis, bafejados pelo poder político estadual, no âmbito da chamada “política dos governadores”. Que vinha de 1898, do Governo Campos Sales, somente sofrendo restrições mais que retóricas com o advento do Estado Novo, em 1937. O trato entre coronel e cangaceiro se desenvolvia, em regra, como aliança de utilidade recíproca, na base do é dando que se recebe. E – mais frequentemente do que se imagina – ditas relações promíscuas alongavam-se em sociedade de fato, carreando o produto da grossa rapina para ambas as partes. Muito se fala sobre a devoção e o respeito que Lampião tinha à figura do Padre Cícero Romão Batista. Como de fato era a relação entre Lampião e o religioso? Menos idílicas do que se tem imaginado. Ciente da força do nome do Padre Cícero no interior do Nordeste, Lampião não perdia oportunidade de contar que seu pai o apresentara ao “padrinho”, no Juazeiro, poucos meses depois de nascido, ainda em dias de 1898, portanto. Consideravase afilhado do religioso e fazia praça do particular como condição de prestígio. Um
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trunfo social nada desprezível. Na concretude dos negócios, no entanto, a vida se encarregaria de afastá-los nos primeiros meses do ano de 1927; o chefe cangaceiro rompeu tacitamente com o Patriarca por este não lhe ter pagado os “serviços” que dizia ter prestado, como força agregada ao Batalhão Patriótico do Juazeiro, no combate à Coluna Prestes, entre os meses de março e abril de 1926. Em nosso livro Benjamin Abrahão: Entre Anjos e Cangaceiros, de 2012, a crônica do desentendimento é oferecida ao leitor em primeira mão, com todos os detalhes e provas. Dentre as últimas, transcrevemos um telegrama inédito de Cícero, denunciando a presença de Lampião, com todo o bando, no Sítio Serra do Mato, do coronel Antônio Joaquim de Santana, nos
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contrafortes da Chapada do Araripe, e trazendo no fecho nada menos que um pedido de providências ao governo para deter o abuso dos bandoleiros. O religioso não ignorava que delações do tipo eram punidas com a morte na lei do cangaço. Corrobora a veracidade da ocorrência, para muitos surpreendente, a inexistência de qualquer menção ao Padre Cícero no espólio material do cangaceiro, conservado no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas desde 1938. Para o livro Estrelas de Couro: a Estética do Cangaço, de 2010, com o apoio de Jayme de Altavila e de Luiz Nogueira de Barros, debruçamo-nos detidamente sobre cada uma das cerca de oito orações que o Instituto possui em seu arquivo, algumas manuscritas, outras impressas, arrebatadas
ENTRE ANJOS E CANGACEIROS Benjamin Abrahão veio do estrangeiro, tornou-se secretário particular do Padre Cícero e, anos depois, seria o fotógrafo que iria registrar as andanças de Lampião e seu bando pelo Nordeste. Nessa biografia, Frederico Pernambucano ilumina a figura desse improvável personagem que conheceu de perto um Brasil ao mesmo tempo deslumbrante e bárbaro. O libanês acabaria assassinado num ato de violência extrema, algo típico e comum naqueles dias.
O cangaço desperta interesse desde sempre; mas nada se compara ao caminho revolucionário aberto pelo historiador que teve Gilberto Freyre como mestre
Depois de negociações com as autoridades da terra, à frente o coronel Pedro Silvino de Alencar, comandante do Batalhão Patriótico do Juazeiro – tropa irregular que estava sendo constituída, com o apoio escancarado do Governo Federal, por meio do alistamento de cangaceiros e de jagunços a serviço dos coronéis sertanejos –, e de receber a visita do Padre Cícero em pessoa, Lampião, homem de negócios que era, estipula um valor para vestir, com seus cerca de cinquenta homens, todos muito bem equipados, armados e municiados, a mescla azul distintiva da milícia em preparo. Além de parte em dinheiro, Lampião receberia fuzis militares de última geração, os fuzis alemães Mauser, de modelo 1908, regulamentares no
Exército Brasileiro à época, com a moderna munição pontiaguda de calibre 7 mm. A despeito do investimento pesado, a montanha finda por parir um rato. E a pretensa ação legalista do bando de Lampião não vai além de uma escaramuça levada a efeito contra uma avançada da Coluna, no município de Vila Bela, hoje Serra Talhada, Pernambuco, em terras da fazenda Cipó, entre o São Miguel e o Alto de Areia. Colhemos essa confirmação do próprio Prestes, em entrevista que nos deu em 1983, aqui no Recife, dissipando dúvida persistente sobre o assunto. Finda a ação da Coluna, em 1927, Lampião não somente não devolveria o armamento, de que veio a se valer para o ataque escandaloso à cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte, em junho desse mesmo
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a Lampião por morte, nada encontrando que pudesse sequer lembrar a figura do Patriarca do Juazeiro. Em meados da década de 1920, os cangaceiros cruzaram caminho com a marcha de militares revoltosos da Coluna Prestes. Como se deu esse encontro? No início de março de 1926, a chamado escrito do deputado federal Floro Bartolomeu da Costa, braço político do Padre Cícero Romão Batista, Lampião penetra pacificamente com o bando no Juazeiro, apresentando-se para a junção de forças legais destinada a dar combate aos “revoltosos” da Coluna Prestes. Tendo como chefe de seu estado-maior o capitão de engenheiros Luiz Carlos Prestes, a Coluna se integrava da flor da oficialidade jovem do Exército Brasileiro.
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O trato entre coronel e cangaceiro se desenvolvia, em regra, como aliança de utilidade recíproca, na base do é dando que se recebe, carreando o produto da grossa rapina para ambas as partes
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1927, como ainda romperia a amizade com o Padre Cícero, como vimos, por este não ter conseguido pagar-lhe a conclusão dos “serviços profissionais”. Importa dizer que há prova documental de que o padre, à época com 82 anos de idade, um tanto confuso e acometido de catarata, tudo fez para evitar o calote que findou por sofrer da parte do presidente da República, Arthur Bernardes, e que o arrastou a ficar em débito com o cangaceiro e com meio mundo de combatentes e de artífices do Juazeiro. A violência e a perversidade dos cangaceiros é bastante conhecida. No entanto, os coronéis do Sertão e os policiais das volantes, por vezes, mostravam-se até mais cruéis e brutais que os próprios fora da lei. Essa violência generalizada seria um traço da própria cultura sertaneja naquela época? A violência é um traço da cultura sertaneja desde os primórdios de sua formação. A crônica do que Capistrano de Abreu chamou de “civilização do couro”, com o extermínio das nações indígenas, é pouco menos que um banho de sangue. No período colonial, estabeleceu-se a figura jurídica da “guerra justa”, que era declarada por junta de governo mediante solicitação de interessados,
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dessa cobertura jurídica valendo-se a elite do Litoral para mandar seus vaqueiros para o Sertão exterminar os índios e assentar nos campos expropriados os primeiros currais de gado. Tudo a ferro e fogo. Os candidatos a receber sesmarias sem-fim, formadas pela junção de terras tomadas aos índios – a maior destas chegando a somar 370 léguas de beiço do rio São Francisco, como a que foi doada à Casa da Torre, de Garcia d’Ávila e descendentes, com sede na capital da Bahia – lançavam no combate não somente seus vaqueiros desbravadores, como criminosos de sangue retirados do xadrez para esse fim, uma vez que a chamada guerra justa abria margem para o perdão de crimes. Outra forma cruenta de conflito se travava entre os vaqueiros das casas senhoriais e os índios amolecidos pela catequese, aldeados por iniciativa de missionários religiosos desde fins do século 16, jesuítas, carmelitas e capuchinhos, muitos destes franceses e italianos. Índios afeiçoados àquela agricultura de subsistência tornada possível nos baixios de caatinga, nas várzeas férteis e nas ipueiras, com o plantio intensivo do milho, do feijão e da mandioca. A penetração do vale do São Francisco coloca em choque aberto o curral e a roça, abrindo margem a
massacres que se sucediam sem que a Coroa descesse do muro em favor de vaqueiros ou de agricultores. Um alvará no cravo, uma ordem régia na ferradura. Qual a razão de o bando de Lampião ter se dividido em subgrupos? E como eles mantinham a comunicação e o planejamento estratégico de suas ações após essas subdivisões? Como se dava a nomeação dos líderes de cada grupo? A divisão do bando em subgrupos foi astúcia tática bem antiga no cangaço. Já Antônio Silvino desta se valia por volta de 1907, lançando mão de discípulos aproveitados, a exemplo dos notórios Tempestade e Cocada. Lampião lapidou a autonomia dos grupos satélites ao zênite, copiando a administração por delegação desenvolvida pelo coronel Delmiro Gouveia, como vimos acima, que possuía um agente-comissário em cada uma das ribeiras economicamente relevantes do Sertão. O sistema, por outro lado, tinha o condão de confundir e atordoar a polícia, diante de registros simultâneos de ocorrências chegados de diferentes pontos dos sertões, não raro de mais de um estado. As chamadas ligações, para usar o jargão militar, davamse, ao tempo de Lampião, com uma fluidez que causou
surpresa ao comandante do II Batalhão de Polícia de Alagoas, com sede em Santana do Ipanema, a partir de outubro de 1936, o major José Lucena de Albuquerque Maranhão, que admitia à imprensa de Maceió que as comunicações do bando de Lampião eram notáveis. O cangaceiro Candeeiro nos disse não saber até hoje como Lampião tomou conhecimento da morte de seu cunhado, o cangaceiro Moderno, no próprio dia em que esta se deu, em fins de 1936. Ocorrida pelas onze horas da manhã, em município pernambucano da fronteira com a Paraíba, Lampião, à noite, estando acoitado em caatingas de Mata Grande, Alagoas, já sabia do fato e de como se dera o ataque por forças de Pernambuco. Candeeiro estava a seu lado. Hoje se conhece que a rede de comunicações envolvia todos os estratos sociais sertanejos, indo de coronéis a vaqueiros, passando por telegrafistas. Trabalha em erro quem menosprezar a inteligência de Lampião. Por fim, vamos analisar a designação de chefes de subgrupo. Evidentemente, a indicação se dava segundo os critérios tradicionais da valentia e da capacidade de urdir planos. Porém, quando se observa que praticamente todos os auxiliares mais graduados de Lampião, de modo especial nos anos 1930, sabiam costurar
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Relatos da vida de Lampião foram conhecidos muito cedo, ainda em vida deste, graças ao fato de ter sido o famoso cangaceiro um incansável marqueteiro de si mesmo
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para o que é suficiente trocar a agulha da Singer – e bordava com habilidade não inferior. Os bornais com que morreu, costurados e bordados por ele mesmo, hoje no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, são nada menos que uma obra de arte. Vale a visita. Toda essa relevante criação do espírito, inacreditavelmente brotada em meio ao mundo de
Coleção Pernambucano de Mello. Foto oficial
com desenvoltura, usando a máquina Singer de mesa, fica-se autorizado a concluir que a capacidade de cuidar do básico da vestimenta dos subordinados, bem como do enxoval de recrutas que procuravam o bando, havia aderido ao rol de exigências para o comando de subgrupo. Lampião costurava de maneira exímia, em pano e em couro –
Subgrupo do cangaceiro Pancada, subordinado ao comando central de Lampião; foto de 1938, ano em que o cangaço sofre o maior golpe da polícia
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violência que não se recusa como presente no cangaço, pudemos estudar no livro Estrelas de Couro: a Estética do Cangaço, fartamente ilustrado, a que remetemos quem deseje aprofundar o assunto. A exemplo do chefe maior, no bando de Lampião costuravam: Antônio Ferreira, seu irmão, o Esperança; Virgínio Fortunato, o Moderno, cunhado; Luiz Pedro, o Salamanta, lugar-tenente do bando; Zé Sereno, chefe de subgrupo; Pancada, também chefe de subgrupo, e outros. Algumas mulheres também dominavam a costura, como Maria Bonita, de Lampião; Dadá, de Corisco, e Adília, de Canário. Lampião se deixou fotografar sorridente, em 1936, por Benjamin Abrahão, entregue à costura em sua máquina Singer. Bordava impecavelmente em ponto cheio e ponto de matiz, segundo mostramos no livro. Em uma entrevista realizada pelo jornalista Joel Silveira, com alguns ex-cangaceiros de Lampião, em março de 1944, na penitenciária de Salvador, um deles, Cacheado, diz: “A gente matava como uns danados. Mas a culpa não era da gente. Se os homens educados não auxiliassem a gente com munição, a história seria outra. Não teria se dado nada do que se deu. Pensando bem, os criminosos são eles. Uma pessoa de bem não ajuda um
B. Abrahão, Aba-Film, Família Ferreira Nunes
bandido.” Até certo ponto, ele tem razão sobre essa questão, não é? Há muita razão e algum exagero no desabafo de Cacheado. Por sinal, um dos carrascos no bando de Lampião, como foram igualmente Gato e Moreno, cada um a seu tempo. Homens especializados nas execuções frias, nas mortes silenciosas por meio do sangramento a punhal. Pensamos ter mais razão o cangaceiro Volta Seca, preso no meado de 1932, que diria à imprensa baiana que Lampião, sem os coiteiros, ficava reduzido à “metade”. Ontem como hoje, o criminoso, sem o protetor, perde muito da eficácia delitiva. Foi o que percebeu o chefe de polícia de Pernambuco do período 19261929, Eurico de Souza Leão, que desviou a repressão da figura do cangaceiro – muitas vezes apenas um jovem ingênuo, na faixa habitual entre os 16 e os 25 anos de idade, entusiasmado com o ouro e a prata que o cangaço punha em sua mão – e centrou fogo sobre os coiteiros de toda ordem e hierarquia, chegando a prender coronéis chefes políticos e remover juízes de comarca, no que ficou conhecido à época como Lei do Diabo. Resultado: com cerca de dois anos de ação reorientada, consegue reduzir o mais famoso bando de cangaceiros do Nordeste, dos 120 homens que o integravam no meado de
O violento e implacávei Lampião em momento de delicadeza: com a máquina de costura, produz mais uma peça para compor o visual que seria eternizado
ESTRELAS DE COURO: A ESTÉTICA DO CANGAÇO Os trajes, as cores, os objetos, os símbolos, a estética de um fenômeno social. Resultado de pesquisas que somam cerca de 40 anos, essa obra já nasceu clássica, ampliando o olhar sobre as origens, as práticas e o papel do cangaço no Brasil. Com prefácio apaixonado de Ariano Suassuna, o livro navega na contramão de estudos maniqueístas, livre de dogmas teóricos e acadêmicos.
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1926, para os não mais de cinco homens, mais o chefe Lampião, com que deixa Pernambuco, em agosto de 1928, cruzando o São Francisco e se refugiando nos até então pouco frequentados sertões baianos. Na tradição do cangaço, não havia espaço para mulheres. Até que, em meados de 1930, Lampião admitiu a entrada de Maria Bonita em seu bando, e diversas outras companheiras vieram na sequência. O que levou o capitão Virgulino a mudar esse paradigma?
Primeira razão, o amor. Ele se apaixonou perdidamente por sua “baianinha”, que largou o marido obscuro, um sapateiro de Santa Brígida, Bahia, para seguir a vida de aventura do cangaço. Bonita, rechonchuda, pernas torneadas, pele alva – nada de morena ou cabocla, como sustenta certa tradição oral –, olhos e cabelos castanhos, nada de olhos azuis, como igualmente insiste o folclore, baixinha, nos seus 1,56 m, puxados em fita métrica pelo sírio Benjamin Abrahão no ano de 1936. Segundo motivo, a observação que o chefe cangaceiro fizera, ainda no começo de 1926, da passagem pelo Pajeú pernambucano da Coluna Prestes, recheada da presença das chamadas “vivandeiras”, mulheres que, longe de estorvar a marcha dos revoltosos, dividiam com os homens o peso das tarefas cotidianas não militares, carregando panelas, caldeirões, marmitas, trempes de cozinha e amando, à noite, metidas nas tendas ou ao relento, sob as estrelas. De fato, a tradição do cangaço não aceitava a presença da mulher, e não foi outro o ensinamento que Lampião obteve de seu mais admirado “professor” de cangaço, o famoso chefe de bando Sinhô Pereira, de Serra
Talhada, Pernambuco, de quem o jovem Virgulino fora cabra em 1920. O pioneirismo quanto ao que você chamou de mudança de paradigma cabe efetivamente a Lampião. Por fim, uma constatação curiosa: ao romper com a tradição e admitir a presença das mulheres, Lampião, sem o saber, conciliou a tradição guerreira do cangaço com a mais ilustre história militar brasileira, em que a presença das mulheres, embora transgressiva de regulamentos, sempre se fez sentir. Houve vivandeiras nas guerras contra os holandeses, no século 17; como houve nas guerras do Paraguai e de Canudos, no 19, ou na epopeia da Coluna Prestes, entre 1925 e 1927. Qual era a função da mulher no cangaço? Elas participavam dos combates? Não. Somente a cangaceira Dadá, quando Corisco foi alvejado nos braços, em 1939, e não pôde mais empunhar a arma longa, ficando reduzido à pistola, permitiu-se tomar o mosquetão do marido e passar a combater. Era uma mulher enérgica, natural do, à época, denominado Belém de Cabrobó, Pernambuco, de quem ficamos amigos a partir de 1978, em Salvador, onde passou a residir depois do
Maria Bonita em foto de B. Abrahão, 1936: nome feminino mais importante na saga do cangaço, ela conquistou o coração de Lampião e o respeito de todos
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cangaço, ganhando a vida como costureira. No bando, a mulher costurava, se quisesse; bordava, se quisesse; cozinhava, se quisesse; seu status na subcultura do cangaço sendo bem superior ao da mulher da cultura pastoril envolvente. Ao da mulher do vaqueiro, por exemplo. A cangaceira vivia para se ornamentar, alegrando o cotidiano de dureza de seu homem. Procurava luxar, exigindo do marido joias, perfumes, brilhantinas, maquiagens, tudo da melhor qualidade possível. Propriá, em Sergipe, na prosperidade dos anos 1930, com seus curtumes e usinas de beneficiamento de arroz, foi o grande entreposto alimentador dessa vaidade, como também do uísque escocês e do perfume francês do chefe Lampião. Porém, atenção: a despeito desse luxo, a cangaceira não deixava de ser uma propriedade do marido, senhor de vida e morte sobre esta. O número de ataques e o grau de violência no cangaço realmente diminuíram após a chegada das mulheres? A presença feminina haveria, de algum modo, “amolecido” os cangaceiros? Defendemos a procedência das duas constatações e as estudamos, desde 1985, no Guerreiros do Sol. É freudiano. A libido derramada no amor esgota parte da energia para
B. Abrahão, Aba-Film
A divisão do bando em subgrupos foi astúcia tática bem antiga no cangaço. Lampião lapidou a autonomia dos grupos, copiando a administração de Delmiro Gouveia
Joana Gomes e Inácia Maria de Jesus, companheiras de cangaceiros e integrantes do bando criminoso: foto de 1936, em Pão de Açúcar (AL)
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a guerra. Mas não ficamos no abstrato. Mostramos o depoimento de ex-cangaceiros que condenavam a presença feminina como desagregadora do grupo, como mostramos um curioso embaraço de ordem mística: para ter relações sexuais, o homem tinha de remover do pescoço o saquinho com as orações, o chamado “caborje de cangaceiro”, uma forma muito tradicional de amuleto, expressão do catolicismo popular. Ao fazê-lo, ficava “com o corpo aberto”. O danado é que, findo o coito e reposto o caborje, não se sabia ao certo com quantos dias estariam de volta as proteções divinatórias. Daí que a relação somente podia se dar em condições de segurança absoluta, nem sempre presentes. Em conversa gravada de 1990 com a cangaceira Sila, mulher de Zé Sereno, chefe de subgrupo no bando de Lampião, conseguimos levantar, com muito jeito, que a frequência das relações findava por ser baixa no cangaço, em razão do embaraço apontado: uma, a cada dois meses, queixou-se a bandoleira. Há similaridades do cangaço com outros fenômenos em outras partes do mundo? E, nesse caso, houve alguma manifestação social do gênero equiparável em expressividade e amplitude ao cangaço e
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à figura do líder Virgulino Ferreira da Silva? Em essência, o cangaço é fenômeno universal, como dizia Luis da Câmara Cascudo. Universalidade que não se mostra refratária a agregações de originalidade local, podendo ser cultural e artisticamente mais rico, como foi o nosso, sobretudo no “reinado” de 20 anos de Lampião, ou apenas criminalidade brutal. Na Europa, na Ásia e nas Américas, há registros da ocorrência em diferentes períodos. Até na Austrália, com Ned Kelly. Em meados dos anos 1960, surgiu entre alguns historiadores a ideia de aproximar o cangaço dos princípios marxistas. O que o senhor poderia falar a respeito desse fato? Isso parece um tanto improvável, para não dizer absurdo, não?
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Paz aos mortos. O “suficientismo” marxista, como o tachou Gilberto Freyre, já não dá as cartas na academia. Ao sair o Guerreiros do Sol, com um bravo prefácio de Gilberto, nosso mestre de 15 anos, os marxistas nos atiraram pedras quando apontamos, e provamos, que o coronel sertanejo não era algoz do cangaceiro mas, em regra, seu aliado. Ora, isso desmontava a estrutura simplista que indicava o coronel como “opressor” e o cangaceiro como “oprimido”, armando a barraca reducionista da luta de classes, capaz de explicar tudo. Sem nem mesmo ter de ir ao Sertão comer poeira. Coronéis podiam oprimir “paisanos”, não cangaceiros. O espaço aí era o da simbiose coronelismocangaceirismo, opostos ambos à hegemonia da elite situada no
A GUERRA TOTAL DE CANUDOS Eis aqui uma interpretação que vai muito além de apontar o fanatismo religioso como causa única do que ocorreu há mais de um século no Sertão da Bahia. A obra investiga fatores remotos na formação daquele movimento – que contava com a força revoltosa de escravos foragidos, cangaceiros, agricultores miseráveis e todo o tipo de excluídos. Um marco na literatura sobre Canudos.
Lauro Cabral de Oliveira, Família Ferreira Nunes
A presença da mulher no cangaço não se deu de forma pacífica; houve sérias reações dos que consideravam a novidade um amolecimento dos guerreiros do sol Litoral. Oposição que explode na guerra de Canudos, de 1897. Hoje, vemos o cangaço também como uma grande conspiração difusa do Sertão contra o Litoral, reunindo, em causa comum, de coronéis a cangaceiros. Afinal, para o sertanejo, que se sentia abandonado à própria sorte, a presença muito rarefeita do poder litorâneo teve secularmente duas caras apenas: a do soldado de polícia e a do cobrador de impostos. O episódio da morte de Lampião é ainda hoje muito discutido. Em meados de 1996, por exemplo, o fotógrafo mineiro José Geraldo Aguiar chegou a anunciar que Lampião não havia morrido naquela época, mas apenas em 1993, em Minas, com o nome de Antônio Maria da Conceição. O que o senhor poderia dizer a respeito de todas essas controvérsias? Que a sobrevivência do mito tem muita força, como nos dizem os psicólogos. A princesa Anastácia, Hitler, Perón, Elvis Presley e tantas outras celebridades costumam dar as caras de vez em quando.
E vendem livros. Confiando na amizade estreita com o governador de Sergipe, o capitão-médico do Exército Eronides Ferreira de Carvalho, um dos “queridinhos” do então ditador Getúlio Vargas, Lampião se deixa ficar em local taticamente pouco indicado do município de Porto da Folha, Sergipe, e ali se vê surpreendido por uma força Com farda do Exército, em março volante do Estado de Alagoas, de 1926: Lampião foi recrutado para combater a Coluna Prestes, comandada pelo tenente que assustava o governo João Bezerra da Silva, que atravessa o rio São Francisco, na calada da noite, e amanhece o dia na grota do Angico, vomitando o fogo de quatro Os mais ilustres intelectuais metralhadoras modernas, para brasileiros ocuparam-se do não falar dos quase 50 fuzis de cangaço. José Lins do Rego e repetição. Dentro da cautela Rachel de Queiroz, na ficção; que nos impõe a História, Gustavo Barroso, Graciliano investigamos muitas dessas Ramos, Luis da Câmara supostas reaparições. Como Cascudo e Ariano Suassuna, na Exerovides essim nimus volum et abor aut quaturist atem in culparcim vernati também a tese da morte por crônica; Lima Barreto e Glauber orescid quis arum archil int explita dem eseditem vernati oreheniscia dellum haria envenenamento, surgida já em Rocha, no cinema; Cândido sandele nimoluptatem sinctur moluptius in rehendit quam, sum aspe nissit es 1952. Não se sustentaram. Do Portinari, Tomás Santa Rosa e outro lado, a comprovação é Aldemir Martins, na pintura; contundente. Luiz Gonzaga e Jackson do O que o cangaço ainda Pandeiro, na música popular representa para a cultura regional. Ariano Suassuna brasileira? costumava dizer que as
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atenções do mundo se voltam hoje para o Nordeste do Brasil, no plano cultural, em grande parte graças ao cangaço. Ao épico de apelo popular contido no cangaço. Dentre os jovens, no cinema de longa-metragem, é preciso destacar os trabalhos de um Paulo Caldas, de um Lírio Ferreira, de um Alceu Valença. Na literatura, na poesia erudita e na crítica literária, Carlos Newton Júnior é nome a ser considerado. Não há tema
brasileiro mais ilustre que o cangaço. O senhor, que possui a mais rica coleção privada de peças sobre o cangaço, estudou em livro e não se cansa de enaltecer o valor da coleção sobre o tema existente no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Não haveria a possibilidade de somar forças e dar vida ao maior e mais completo museu sobre o assunto em Alagoas? De fato, o acervo do IHGAL
ACERVO Diferentes tipos de cantil usados por Lampião. Canecos, cabaças e borrachas também eram itens obrigatórios para o dia a dia no mato seco e na terra de calor
Coleção Pernambucano de Mello. Fotos: Fred Jordão e Valentino Fialdini
escaldante. Peças revelam ainda o cuidado com a estética dos cangaceiros
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dá a Alagoas uma posição de partida que nenhum outro estado do Nordeste possui no particular. Por outro lado, temos interesse em musealizar a Coleção Pernambucano de Mello, democratizando-a para o acesso do público e dos estudiosos daqui e de fora, que os há em quantidade surpreendentemente elevada em nossos dias. A soma é assunto aberto a negociações.