Ocupação Nelson Rodrigues

Page 1

MEMÓRIA. Anjo pornográfico, gênio, reacionário, devasso, moralista...

Festival Varilux de Cinema Francês tem último dia hoje no Cine Sesi. B5

Não faltam lugares-comuns quando o objetivo é definir Nelson Rodrigues, o maior dramaturgo brasileiro, que completaria 100 anos hoje. Em comemoração

DIVULGAÇÃO

ao centenário do autor, a Ocupação Nelson Rodrigues, que o Itaú Cultural leva ao Recife após montagem em São Paulo, dá a Nelson a chance de falar sobre si próprio. Para traçar esse retrato, a curadoria da exposição – assinada por Maria Lúcia Rodrigues, filha do autor, e Sonia Muller, sua neta – mergulhou fundo nos arquivos em busca de relatos sobre sua família, seu teatro e a sociedade de seu tempo. Com exclusividade, a Gazeta conversou com Maria Lúcia, que contou mais detalhes sobre a mostra. Não deixe de conferir

REPRODUÇÃO

Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, e morreu no Rio, em 21 de dezembro de 1980

Quinta-feira 23/08/2012

NELSON COMO ELE ERA LUÍS GUSTAVO MELO REPÓRTER

As mesquinharias e a indefectível pobreza de espírito inerentes ao pensamento pequeno-burguês, que lamentavelmente herdamos de nossos queridos visitantes lusos, são características que acompanham a história da sociedade brasileira desde sempre. Nossa cultura está impregnada de hipocrisias, preconceitos e tabus, que se refletem nessa mania quase neurótica de encobrir os podres e os pecados da maneira mais torpe e desonesta, para garantir que o ‘cidadão de bem’ possa ir sossegado à missa no domingo. A inteligência e a autonomia das pessoas mais desprendidas são encaradas como uma espécie de ameaça, e as palavras de uma pessoa de pensamento livre costumam incomodar a mediocridade da maioria burra. Ao longo de seus intensos e bem vividos 68 anos, o jornalista, escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues incomodou muita gente. O autor de obras perenes como Vestido de Noiva, A Falecida e O Beijo no Asfalto já foi chamado de muita coisa, em grande medida devido à estreiteza mental de quem se orienta pelas ‘verdades’ reproduzidas pelo senso comum. Acima de tudo, porém, ele foi um provocador e um homem independente. Na definição de amigos como o jornalista e escritor Otto Lara Resende (1922-1992), Nelson era um “feixe de paradoxos”. “É um profundo individualista e vive da emoção coletiva”, descreveu. “Foi um conservador e tem uma obra revolucionária. Orgulha-se de ser um reacionário e foi um dos autores mais censurados do Brasil”, anotou ele. A censura e o repúdio da classe média à sua obra, em última análise, talvez possam ser identificados como reflexos dessa mesma hipocrisia que ele tanto descreveu e de um certo desconforto que seus textos causaram ao pôr o dedo na ferida da má consciência da sociedade brasileira de sua época. O tempo, por outro lado, foi generoso com a memória do ‘personagem’ Nelson Rodrigues e com sua obra, garantindo-lhes

imortalidade. Conquistada nos últimos 40 anos, essa mesma popularidade, contudo, gerou uma série de distorções e ‘efeitos colaterais’, traduzidos em leituras equivocadas do legado do genial dramaturgo que introduziu novidades na linguagem do teatro nacional em meados dos anos 1940, ao levar para o palco o português que era falado nas ruas. Para jogar luz sobre a verdadeira persona do escritor, o Instituto Itaú Cultural, por meio do projeto Ocupação, convidou a doutora em Educação e pesquisadora Maria Lúcia Rodrigues, filha do autor, para fazer a curadoria da exposição em homenagem ao ‘inventor do teatro brasileiro’. Ao lado da filha, a cineasta Sonia Muller, Maria Lúcia elaborou toda a concepção do projeto, cujo rigoroso processo de pesquisa resultou num perfil inédito do dramaturgo, com aspectos que vão muito além das alcunhas de ‘reacionário’, ‘moralista’ e ‘anjo pornográfico’ que recaem sobre ele. Montada a partir da certeza de que para se chegar a um retrato fiel do verdadeiro Nelson era necessário apresentá-lo por suas próprias palavras, a mostra é conduzida por meio de declarações do próprio escritor, destacadas nas paredes, no chão e em projeções, as quais também trazem fotografias suas, boa parte delas pertencentes ao acervo da família. Na exposição, Maria Lúcia também fez questão de ressaltar as raízes de Nelson, que deixou o Recife com apenas três anos de idade para morar com a família no Rio de Janeiro, em 1916. Como uma homenagem à cidade natal do escritor, a exposição chega oportunamente nesta quinta-feira (23) à capital pernambucana – dia em que o dramaturgo completaria cem anos –, permanecendo em cartaz até 21 de outubro. Entre véus, portas e móveis que reproduzem o ambiente familiar da casa dos Rodrigues, o espaço expositivo da Torre Malakoff contará com quatro monitores para a projeção de fotografias. Tablets trarão recortes dos jornais nos quais Nelson trabalhou. Com os fones de ou-

velou mais detalhes sobre a exposição. Leia a seguir.

MARIA LÚCIA RODRIGUES CURADORA DA OCUPAÇÃO NELSON RODRIGUES

“Não inventei nada, só trouxe para a exposição o que encontrei nas fontes. Por exemplo, eu gostaria de dar mais notícias sobre minha avó Maria Esther, que se converteu à Igreja Batista. Infelizmente não encontrei registros de sua conversão e de seu casamento, que, parece, foi realizado na Igreja Batista. Como não encontrei as fontes, não coloquei nada. Mais difícil ainda foi escolher os textos de meu pai que apareceriam na exposição”

vido, os visitantes poderão ouvir depoimentos de personalidades, além da entrevista que o próprio escritor concedeu ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Em meio aos preparativos para a etapa pernambucana da mostra, a curadora Maria Lúcia Rodrigues encontrou um tempinho para conversar com a Gazeta. Atenciosa, foi com generosidade que a filha de Nelson Rodrigues falou de aspectos pouco conhecidos da personalidade do dramaturgo e re-

Gazeta. Como surgiu a ideia de montar a Ocupação Nelson Rodrigues? Maria Lúcia Rodrigues. O Itaú Cultural criou a Ocupação para homenagear grandes artistas brasileiros. Em 2012 decidiram homenagear Nelson Rodrigues, e me convidaram para fazer a curadoria. Eu apresentei uma proposta e eles aceitaram, porque existe, no Itaú Cultural, sempre a intenção de abordar nas Ocupações aspectos dos artistas que não são muito comuns, muito conhecidos. A minha proposta “casou” com o objetivo deles. Em outra ocasião, a senhora disse que o público iria se surpreender com a forma com que Nelson Rodrigues é apresentado nesta exposição. O projeto tem essa intenção de desmistificar certos clichês atribuídos à imagem do autor? Só tem. Eu acho que ele é ainda muito pouco conhecido. Fico sempre impressionada com a quantidade de frases atribuídas a Nelson Rodrigues e que são a mais pura invenção. Ele jamais diria certas frases que circulam por aí, como se fossem dele. Quão verdadeiro seria esse ‘personagem’ tão amplamente assimilado pelo senso comum? É o que eu te disse anteri-

ormente. Por exemplo, ele escreveu numa crônica, depois publicada nas Memórias, que se ele tivesse que escolher ser chamado de pornográfico ou moralista, qual denominação preferiria: ele afirmou com todas as letras que preferia ser chamado de moralista. Porque se achava moralista. E ninguém sabe disso. Ele leva uma fama que nunca procurou.

A partir do foco que vocês adotaram para a exposição, como se deu o processo de pesquisa e como vocês fizeram para reunir o material que compõe a mostra? Olha, foi duro fazer a pesquisa! Eu vasculhei o Arquivo Público Estadual de Pernambuco, a Cinemateca Brasileira, a Biblioteca Nacional, o Museu da Imagem e do Som, não sei quantos outros arquivos. No meio do caminho tive uma crise de alergia braba! Minha sorte é que sou pesquisadora de ofício, o que facilita fazer pesquisa documental e me obriga a um compromisso sério com as fontes. Não inventei nada, só trouxe para a exposição o que encontrei nas fontes. Por exemplo, eu gostaria de dar mais notícias sobre minha avó Maria Esther, que se converteu à Igreja Batista. Infelizmente não encontrei registros de sua conversão e de seu casamento, que, parece, foi realizado na Igreja Batista. Como não

encontrei as fontes, não coloquei nada. Mais difícil ainda foi escolher os textos de meu pai que apareceriam na exposição. Eu decidira, desde o começo, que ele seria o autor. Ele é que falaria. Tem muito pouco texto de outras pessoas. O principal é dele, falando sobre o Recife, sobre a família, sobre o jornalismo, sobre a sociedade brasileira. Busquei justamente as frases que pudessem mostrá-lo ao público como ele era. Foi doloroso ter que tirar muita coisa. Não havia espaço.

Você poderia falar sobre esse material? O que os visitantes encontrarão nos arquivos audiovisuais? A exposição tem trechos das entrevistas dele e de entrevistas de outras pessoas. Foram feitas entrevistas no Recife, com parentes e com artistas e intelectuais pernambucanos. Minha filha, Sonia Muller, que é cineasta, dirigiu toda a parte audiovisual. Termina sendo uma vídeoinstalação. As pessoas elogiaram muito. Em São Paulo, teve gente que passou cinco horas seguidas na exposição vendo e ouvindo tudo. Um professor de sociologia fez uma pesquisa com o público, porque lhe pareceu muito interessante a receptividade e o tipo de receptividade que as pessoas tiveram com a Ocupação Nelson Rodrigues. ‡ Continua na pág. B6


B 6 Caderno B

GAZETA DE ALAGOAS, 23 de agosto de 2012, Quinta-feira

CONTINUAÇÃO DA PÁG. B1. Na última parte da entrevista, Maria Lúcia Rodrigues fala das origens do dramaturgo, do formato da Ocupação na Torre Malakoff e de como seu pai é visto hoje pelos brasileiros

“NELSON NÃO SERIA O GÊNIO QUE FOI SE NÃO TIVESSE NASCIDO NO RECIFE” IVSON/INSTITUTO ITAÚ CULTURAL/DIVULGAÇÃO

Etapa pernambucana da mostra pode ser vista a partir de amanhã pelo público LUÍS GUSTAVO MELO REPÓRTER

Gazeta. Originalmente, a Ocupação Nelson Rodrigues foi apresentada em São Paulo entre os meses de junho e julho. Neste dia 23 de agosto, data em que Nelson completaria cem anos, ela será aberta no Recife. A escolha dessa data para a estreia na capital pernambucana foi uma maneira de lembrar/homenagear suas origens? Maria Lúcia Rodrigues. Certamente! Nelson Rodrigues não seria o gênio que foi se não tivesse nascido no Recife. Fizemos questão que a exposição estivesse aqui no dia 23 de agosto, data de seu nascimento e do seu centenário. O Itaú Cultural, a Sonia Sobral em especial, a diretora da Torre Malakoff e a Secretaria de Cultura do Recife foram muito disponíveis para abrigar a exposição a partir dessa data. De certa maneira, ele volta ao seu Recife e ao mar do Recife, de que nunca se esqueceu. A Ocupação abre com as palavras dele sobre esse mar de sua cidade. Haverá alguma modifica-

Assinada pelo alagoano Valdy Lopes Jn, a cenografia da Ocupação, originalmente montada em São Paulo, foi adaptada para os 150 metros quadrados da Torre Malakoff

ção no formato da mostra que será montada na Torre Malakoff em relação ao que foi visto no Sudeste? O espaço da Torre é praticamente o dobro do espaço de São Paulo. O Valdy Lopes Jn., cenógrafo genial das duas exposições (em São Paulo e no Recife), conseguiu encontrar maneiras de lidar com espaços tão diferentes. A Ocupação em São Paulo ficou linda! Tenho certeza de que o público do Recife também vai gostar muito. A obra de Nelson é vastíssima e de influência e importância amplamente reconhecidas. No entanto, houve uma época em que seus textos não eram bem vistos pela ‘boa sociedade’. A classe média em geral o chamava de machista e de pervertido, entre outros adjetivos nada honrosos. Como a senhora analisaria essa questão? Na sua opinião o trabalho dele ainda reflete a realidade do povo brasileiro? Pior que ainda reflete! Ainda somos uma sociedade preconceituosa e hipócrita. Os canalhas, os idiotas da objetividade, os homens de bem que escancaram sua “bondade”, ao vi-

vo e em cores, ainda pululam por nossas cidades.

Os textos de Nelson já foram adaptados para produções no cinema e na TV e no teatro várias de suas peças são encenadas até os dias de hoje. Qual sua opinião sobre o tratamento dado à obra de seu pai? Temos ótimos diretores que encenam ou filmam Nelson Rodrigues com grande talento. Temos outros, não tão talentosos, que competem com o aut o r. Ta l v e z s e j a a s s i m mesmo... O tempo irá depurar os bons trabalhos daqueles que nem sequer entenderam o que ele estava dizendo.

Conceber e levar adiante um projeto como esse, dedicado a uma figura tão emblemática como Nelson Rodrigues, ainda mais sendo filha dele, deve ser uma experiência e tanto. O que essa imersão na obra de seu pai representou para a senhora e no que essa mostra pode contribuir para a cristalização do legado deixado por ele para a cultura brasileira? Ficamos com a sensação de dever cumprido, eu e minha filha, Sonia Muller. Acho que a Ocupação Nelson Rodrigues permitiu que ele falasse por si. As pessoas que forem ver a exposição terão a oportunidade de ver e ouvir as-

pectos dele que ficaram soterrados por um monte de impressões que pouco contribuíram para o conhecimento de sua obra. Você falou em “boa sociedade”. Acho que, nos últimos anos, essa “boa sociedade” faz que elogia, deturpando o pensamento do autor. Na verdade, insulta, nega, maltrata. Talvez por inveja do gênio? Talvez pela impotência criativa? Ele dizia que o povo o entendia porque ele escrevia para o povo. Confirmei isso agora, no centenário. Entendem e apreciam Nelson Rodrigues as pessoas simples, sem fumaças de erudito, ou os verdadeiros eruditos. ‡

Serviço O quê: Ocupação Nelson Rodrigues Onde e quando: na Torre Malakoff (pç. Artur Oscar, s/n, Recife Antigo), até o dia 21 de outubro Abertura: hoje, para convidados; amanhã (24), para o público Visitação: de terça a sexta, das 10h às 19h; sábados, domingos e feriados, das 15h às 19h Entrada franca Classificação: livre Informações: (81) 3184-3145 e no site www.fundarpe.pe.gov.br/ torremalakoff


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.