DIVULGAÇÃO
Com Grace Kelly, O Cisne sai em DVD. B2
CINEMA. Premiado na 5ª edição do Festival Janela Internacional de Cinema do Recife, Quem Tem Medo de Cris Negão?, novo curta-metragem do alagoano René Guerra, reitera não apenas o interesse do realizador pelo universo dos travestis, mas também sua REPRODUÇÃO
obstinação por não seguir o caminho mais fácil, de modo a evitar a vulgaridade. Agora com o projeto de realização de seu primeiro longa – Lili e as Libélulas, em andamento –, René encerra um ciclo de sua carreira
Terça-feira 18/12/2012
A atriz Phedra D. Córdoba com o diretor René Guerra: camadas de uma temática
DE VOLTA AO VALE DAS BONECAS LUÍS GUSTAVO MELO REPÓRTER
Meticuloso e com talento de sobra para contar histórias, o diretor e roteirista René Guerra consagrou-se como revelação da cena do curta-metragem nacional logo em sua estreia, com o premiado Os Sapatos de Aristeu. No curta de ficção, o realizador alagoano narra os acontecimentos em torno da morte de um travesti, isso em tom sóbrio, a anos-luz dos clichês relacionados a esses personagens. Agora com um documentário de formato investigativo e igualmente longe das convenções do gênero, René volta ao tema para reconstituir o episódio do assassinato da notória cafetina Cristiane Jordan, mais conhecida como Cris Negão. Em vias de realizar seu primeiro longa, René, que desde sempre trabalha com a mesma equipe, reafirma o caráter de continuidade de sua obra. “Estou dando continuidade a um processo que se iniciou com Os Sapatos de Aristeu, em 2008, e que terminará com o meu primeiro longa, Lili e as Libélulas. Esse universo é cheio de camadas e de múltiplas profundidades. Meu objeto é o universo dos travestis; todo e qualquer olhar sobre esses corpos. Me perguntam às vezes por que voltar ao mesmo tema; eu respondo que não é o mesmo tema, é me aprofundar numa seara infinita que reflete questões cruciais sobre a construção de gênero e alguns
sintomas muito presentes no mundo atual, como o machismo e os seus derivados reflexos de violência contra a mulher, contra o gay, contra a criança, a performance do cotidiano, a verdade”, esclarece ele. Apoiado pelo carisma de suas entrevistadas, com destaque para a veterana Phedra D. Córdoba, uma das mais icônicas transexuais do país, o curta-metragem é construído a partir de memórias pessoais, e registra reações as mais diversas, com cada participante deixando transparecer seu pensamento em relação à personagem-título. “Perguntei para uma das minhas entrevistadas se ela estava sendo completamente honesta”, lembra René. “Aí ela respondeu que era mais verdadeira mentindo do que falando a verdade. Que a verdade para ela era pouco. Cris Negão era uma construção de uma personalidade que ultrapassava o real, ela era negra, tinha 1,94m, cheia de cicatrizes, andava com um poodle branco chamado Nicky e foi a última cafetina do centro da maior cidade da América Latina numa época em que o crack está tomando tudo. Esses corpos que são considerados lixo pela maioria me dão a medida dessa sociedade que elege de tempos em tempos um corpo com licença para ser morto, ou destruído. Hoje é o corpo do travesti, que é a bola da vez. Meu processo parte da Cris, mas fala sobre a memória de pessoas que gravam nos seus corpos a sua
RENÉ GUERRA DIRETOR E ROTEIRISTA
“Esse universo é cheio de camadas e de múltiplas profundidades. Meu objeto é o universo dos travestis; todo e qualquer olhar sobre esses corpos. Me perguntam às vezes por que voltar ao mesmo tema; eu respondo que não é o mesmo tema, é me aprofundar numa seara infinita que reflete questões cruciais sobre a construção de gênero e alguns sintomas muito presentes no mundo atual, como o machismo e os seus derivados reflexos de violência contra a mulher, contra o gay, contra a criança, a performance do cotidiano, a verdade”
história. Elas são detectoras de ausência. E no filme elas tentam reconstruir uma história, a do assassinato da Cris, fragmentado na memória dos corpos e da própria cidade em mil pedaços. Esse é o meu quebra-cabeça”, teoriza.
CONQUISTA Vencedor do Prêmio da Oficina Janela Crítica na categoria de melhor curta brasileiro na 5ª edição do Festival Janela Internacional de Cinema do Recife, realizado em novembro último no tradicional Cine São Luiz, Quem Tem Medo de Cris Negão? tem tudo
para fazer uma bela carreira. Para além da conquista, a premiação trouxe memórias de épocas, digamos, mais românticas para René. “O Janela foi um festival muito especial, pois eu via uma movimentação histórica no Recife. Hoje o maior celeiro de audiovisual do país e a reação em massa da população indo ver cinema no centro, no antigo e maravilhoso Cine São Luiz. Lembrei do nosso São Luiz e de como o cinema já foi mais democrático. Sinto saudade dessa época dos cinemas de bairro; dos cinemas que estavam perto das pessoas”. Ainda sem data de exibição confirmada em Maceió, René assegura que o filme será lançado em março de 2013 no Cine Sesi. Ele também se mostra otimista em relação aos rumos da atividade audiovisual em Alagoas. “Com a força dos cineclubes, do cinema de arte – o Cine Sesi, com o Marcão, e o trabalho árduo do Elinaldo Barros na Sessão de Arte – e dos programas de capacitação e formação (Olhar Brasil, Sesc e Saudáveis Subversivos), uma nova geração está encontrando seus pares. Cheguei aqui em Maceió procurando o movimento e o encontrei. Espero que a iniciativa privada perceba. O cinema é uma arma poderosíssima. Quem se aliar a essa causa sairá ganhando. Peço para a iniciativa privada olhar para Pernambuco e ver os casos de sucesso dos nossos vizinhos”, afirma.
RESENHA
CINEASTA EXTRAI POESIA DA SORDIDEZ Figura lendária do submundo paulistano nas imediações da chamada Boca do Lixo, Cristiane Jordan, mais conhecida como Cris Negão, foi uma temida ‘chefona’ da mais famosa zona de prostituição de São Paulo. Amada por uns e odiada por muitos, algumas das histórias mais recorrentes dão conta de que ela costumava ‘multar’ os travestis que faziam ponto nas ruas da cidade por qualquer motivo que lhe conviesse. E, segundo relatos, as tais multas consistiam em obrigar o ‘infrator’ a lhe dar dinheiro ou objetos pessoais até determinado dia – sob pena de sofrer represálias. O mundo dos travestis paulistanos nunca foi um lugar monótono enquanto existiu Cris Negão. Além da cafetinagem, seu nome também era associado ao tráfico de drogas e à venda de celulares roubados. Considerada pelos mais ‘chegados’ como uma pessoa que teria o ‘corpo fechado’, sua conturbada existência teve fim na noite de 06 de setembro de 2007, em frente ao bar Elenice, na rua Rego Freitas, onde foi baleada com dois tiros na ca-
beça enquanto passeava com seu poodle.
RELAÇÕES Fascinado pela figura e pela história desta controvertida personagem da noite paulistana, em Quem Tem Medo de Cris Negão? René Guerra tomou para si a tarefa de reconstituir não apenas o incidente fatídico, mas também o perfil de Cris Negão a partir de depoimentos de pessoas que a conheceram. Os sentimentos revelados oscilam de acordo com o grau de relação que os entrevistados mantinham com Cris. Uns lembram dela com carinho e saudade; outros disparam farpas como se sentissem vingadas. Inteligente e original na forma como conduz seu filme, René desconstrói as convenções do gênero documental ao oferecer ao espectador um retrato da personagem sem jamais mostrá-la. Detalhes sobre sua vida e sua personalidade são apresentados a partir de um coro de vozes e belas imagens do ambiente decadente por onde a cafetina transitava. Extraída do feio e do sórdido, o que surge na tela é poesia pura. LGM ‡