#01 ano I
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SUS OJOS p8
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CAÇADORA DE
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JANAÍNA
VAGALUMES
Universidade Federal de Goiás Reitor Orlando Afonso Valle do Amaral | Vice-Reitor Manoel Rodrigues Chaves | Pró-Reitor de Graduação Luiz Mello de Almeida Neto Pró-Reitor de Pós-Graduação José Alexandre Felizola Diniz Filho | Pró-Reitora de Pesquisa e Inovação Maria Clorinda Soares Fiarovanti Pró-Reitor de Extensão e Cultura Giselle Ferreira Ottoni Candido | Pró-Reitor de Administração e Finanças Carlito Lariucci Pró-Reitor de Desenv. Institucional e R.H. Geci José Pereira da Silva | Pró-Reitor de Assuntos da Comunidade Universitária Elson Ferreira de Morais
Faculdade de Informação e Comunicação Diretor Magno Luiz Medeiros | Coord. do Curso de Jornalismo Luciene Dias |Coord. do Curso de Relações Públicas Lutiana Casaroli Coord. do Curso de Biblioteconomia Janaína Ferreira Fialho |Coord. do Curso de Publicidade e Propaganda Marina Roriz Lousa da Cunha Coord. do Curso de Gestão da Informação Eliany Alvarenga Araújo Conselho Editorial da FIC Ana Carolina Rocha Pessoa Temer, Claudomilson Fernandes Braga, Daniel Christino, Goiamérico Felício, Carneiro dos Santos, João de Melo Maricato, Lisandro Nogueira, Luiz Signates, Magno Luiz Medeiros, Maria Francisca Nogueira, Maria Luisa Mendonça, Simone Antoniaci Tuzzo, Suely Henrique de Aquino Gomes e Tiago Manieri de Oliveira.
Coletivo Magnínifica Mundi Site www.magnificamundi.fic.ufg.br | Email magnificamundi.ufg@gmail.com Faculdade de Informação e Comunicação - Universidade Federal de Goiás Campus Samambaia - Goiânia - GO - CEP 74001-970 - Caixa postal 131
comunicantes Revista Laboratorial do Curso de Jornalismo Nº 01 | Ano I | Setembro de 2014 | Goiânia-GO Contato becoscomunicantes@gmail.com EXPEDIENTE Conselho Editorial Amanda Damasceno Batista, Angelita Pereira Lima, Elisama Costa Ximenes, Jéssica Estély Chiareli Nazareth, Jéssica Adriani Rodrigues, Nilton José dos Reis Rocha, Vinicius de Morais Pontes e Wilson José Bueno Júnior Edição Geral Angelita Pereira Lima e Nilton José dos Reis Rocha Projeto Editorial e Gráfico Elisama Costa Ximenes, Nilton José dos Reis Rocha e Vinicius de Morais Pontes Editoração Eletrônica Marcela Suedson, Rayanne Bueno e Vinicius de Morais Pontes Revisão Amanda Damasceno Batista, Elisama Costa Ximenes, Nilton José dos Reis Rocha, Jéssica Estély Chiareli Nazareth e Jéssica Adriani Rodrigues Colaboração Aline de Sousa Rodrigues, Dayane Silva Borges, Gabriela Marques, Jeancarlos Rodrigues de Oliveira, Larissa Cristine Ordones Ferraz, Maiara Dourado, Michel da Silva Gomes e Milleny Cordeiro de Almeida Fotografia da Capa Vinicius de Morais Pontes | Fotografia da Contra-capa Denise Pires Música da Capa Eu sei que vou te amar - Tom Jobim e Vinicius de Morais, Interpretada por Marcos Almeida Autores Adriana Rodrigues, Angelita Lima, Berta Campubrí, Denise Pires, Elisama Ximenes, Gabriela Marques, Isabela Lacerda, Jéssica Cardoso, Jéssica Chiarelli, Júnior Bueno, Leandro Stoffels, Lohany Arnos, Maiara Dourado, Maria Rita, Nilton Rocha, Pallma Biasi, Pedro Ferreira e Renato Veríssmo
BILHETE
ESSAS FRONTEIRAS, ESSES BECOS Uma dificuldade, é preciso confessar. Nascida em 2006, a disciplina Jornalismo e Culturas de Fronteira¹ só agora consegue apresentar a sua primeira publicação coletiva. Não faltaram tentativas, rascunhos, até um meio livro. Um dia, parece claro, virão à vida. Aos leitores para que também, de algum modo, participem desse processo criativo. Tem sido um aprendizado - como todos os outros - longo, de conflitos, fragilidades e, sobretudo, apaixonante aí pelos cerrados, pântanos, cidades, montanha (a cordilheira). De uma vez, quase 5 mil quilômetros percorridos, no reencontro dos povos e línguas (esquecidos) dessa vigorosa civilização dos cerrados centrais². Com essa gente, compartilharam-se idéias, vivências e festas, ritos e rituais, comida, oficinas e, sobretudo, os mitos. E a descoberta da tirania do português sobre centenas de línguas. A busca, sempre, das transfronteiras, espaço em que o jornalista vive e onde germinam (por imprecisões do jornalismo) as narrativas que elabora, co-constrói ou co-participa. Não há um mundo de lá, a sociedade; e o dia cá, dos que são preparados para narrar. Todos narradores e portadores das novidades, das quais somos parte e sujeitos. Na metodologia do cuidado, coração e razão dialogam e, às vezes, se enfrentam sem parar. “minha vida, meus sentidos, minha estética... têm, aqui, suas raízes”³. Algo assim, talvez: “ amo e canto com ternura todo o errado da minha terra... Becos da minha terra, discriminados e humildes, lembrando passadas eras...”. Vivos, no presente. Becos se inspira em Cora, nos seu vasos comunicantes. Eles como lugar de gente simples, de poesia fácil, esperançar rebelde e cantorias que cortam como navalha afiada. Nilton José dos Reis Rocha ¹ A disciplina contou com a colaboração das então mestrandas Gabriela Marques (UFJF) e Maiara Dourado (UFG). PÁDUA, José Augusto. Uma história viva do Cerrado. Resenha. Disponível em: <http://www.oeco.org.br/jose0augusto -padua/17224-occo_15896> Acesso em: 25 out. 2014. ² CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. Goiânia: Editora UFG: 1981, p. 39.
comunicantes PASSOS
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Des de sus ojos
Do outro lado da avenida, uma chácara Sobre fronteiras invisíveis,ou nem tão invisíveis assim
Gente perigosa
CAP-20
Andar de ônibus, uma grande experiência
O beijo
PASSAGENS LEMBRANÇAS
30 37 38
Um eixo chamado diabo
Pudera os olhos tirar fotografias
Amai-vos uns aos outros
42 44 46 48 50
Cheia de cachos e movimento
Olhos de cebolinha
Fusão
Pode-se atribuir valor ao tempo?
Trocando ideia no Rio
CONFLITOS
58 60 68 70 72
Notas de quem sonha
Contrastes, Salvador
A fronteira que ela não atravessou
Previsão do tempo: chuva, muita chuva Ignorancia blanca en el misticismo negro
#01 ano I
setembro 2014
TRILHAS
84 92 94 98
Nas fronteiras da palavra
Memórias de uma criança
Veredas alternativas pela cidade de Goiás
Fronteira dançarina
PARTILHAS
104 108 110 112
Menina Janaína
Willian
Show de gato
Caçadora de vagalumes
VERANEIOS
118 120 122 124 128
Entre o terminal e a maternidade De todos os olhos
Não há mais bancas amarelas ... e no meio do nada, há tudo
200 km
PROSAS
138
Filho da Terra
PASSOS
PASSOS
DEsdE SUS OJOS TEXTO E VÍDEO
Berta Campubrí FOTO
Jordi Campubrí DIAGRAMAÇÃO E ILUSTRAÇÃO
Vinicius de Morais
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Subiendo al autobus me acuerdo de mi abuela, para ella sería imposible viajar en transporte público en ésta ciudad. El esfuerzo que tengo que hacer para empujar la barrera-control es considerable, luego avanzo por el pasillo comprovando con los ojos que tendré que ejercitar mis biceps durante el viaje; no hay sitio para sentarse. Mi abuela no habría ni podido avanzar hasta el asiento reservado a personas con problemas de movilidad, pienso. Pero entonces recibo el gesto más familiar que he podido recibir de un completo desconocido, una chica desde su asiento se ofrece para alibiar mi incomodidad y rebajar mis equilibros cogiendome la mochila. Y ahí es cuando apunto en mi libretita: “solidaridad social: Latino America 1 – Europa 0”. Ya tengo un master italiano en meneos y frenazos, obtuve también un diploma estadounidense a la más creativa en buscar sitios donde sentarse cuando todo el School bus estaba lleno, pero la sociedad occidental nunca me formó en simpatia o cooperación en el transporte público. Llego a Itatiaia, bajo del autobus con dirección a mi clase de portugués. Miro a mi alrededor; ni un semáforo, ni un paso de peatones, ni una senalización para el viajante a pie. Mi abuela se vería perdida. Por más que la gente cruce siem-
Subindo no ônibus me lembro de vovó, para ela seria impossível viajar no transporte coletivo desta cidade. O esforço que faço para empurrar a catraca é considerável. Avanço pelo corredor comprovando com os olhos que terei que exercitar os bíceps durante a viagem: não tem lugar para sentar. Minha avó não poderia nem avançar até a poltrona reservada às pessoas idosas, penso. Mas, então, recebo o gesto mais gentil que eu poderia ter recebido de um completo desconhecido. Uma menina, da sua poltrona, se oferece para aliviar o meu incômodo pegando a minha mochila. Aí é quando escrevo na mia caderneta: “solidariedade social: América Latina 1 – Europa 0”. Eu já tenho experiência em movimentos bruscos e freadas na Itàlia, e um diploma estadunidense como a mais criativa pra achar lugares onde sentar quando o school bus estava cheio, contudo a sociedade ocidental nunca me formou em simpatia e cooperação no transporte coletivo. Chego em Itatiaia, desço do ônibus e vou em direção a aula de português. Olho ao meu redor: nem um semáforo, nem uma faixa de pedestres, nem uma sinalização para o viajante à pé. Minha avó se sentiria perdida. Por mais que a gente atravesse sempre, quando e
pre cuando y por donde le de la gana, Barcelona tiene un semáforo en cada esquina. Paso rápido, tanto como mis piernas resentidas de la clase de Capoeira del día anterior me permiten, entre un Citroen de potente motor y un carro viejo que cuesta adivinar de que color es debajo la gruesa capa de polvo marrón. Tropiezo un minimo de dos veces yendo para la facultad de letras aunque aprecie la belleza del suelo irregular. Entro en clase finalmente, y me encuentro con una nota informando sobre la suspensión de la clase de hoy. Imagino a mi abuela, habiendo conseguido subir los altos escalones del autobus, habiendo superado todas las piruetas del trayecto, habiendo causado una hilera de media docena de cotxes mientras ella avanza con su bastón por la calzada y habiendo andado cuidadosamente por todas las pasarelas lisas, alargando asi el camino, hasta la facultad de letras y veo como, al ver esa nota informativa, va a secretería y empieza a gritar de rábia e indignación hasta conseguir que le paguen un taxi de vuelta.
por onde eles querem, Barcelona tem um semáforo em todas as esquinas. Atravesso rápido, tanto quanto as minhas pernas doloridas por causa da aula de Capoeira do dia anterior me permitem. Tropeço pelo menos duas vezes indo para a aula, ainda que aprecie a beleza do chão irregular. Finalmente chego na faculdade de letras e me deparo com uma nota informando sobre a suspensão da aula de hoje. Imagino minha avó, tendo conseguido subir os altos degraus do ônibus, tendo superado todas as voltas do trajeto, tendo causado um congestionamento de meia dúzia de carros enquanto ela atravessava a rua com sua bengala e tendo andado por todos os corredores, aumentando assim o caminho, até a faculdade de letras, e imagino como, ao olhar essa nota informativa, vai na secretaria e começa a gritar de raiva e indignação até conseguir que a coordenação pague um taxi para ela ir embora.
Creo que echo de menos a mi abuela.
Acho que sinto saudades da minha avó.
Clique e assista o vídeo “Desde sus ojos”
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PASSOS
do outro lado da avenida, uma
CHÁCARA TEXTO E FOTOS
Adriana Rodrigues
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DIAGRAMAÇÃO
Vinicius de Morais
Observando o bairro onde moro, o Jardim Vila Boa, pude notar uma curiosa e interessante fronteira, entre tantas, uma que pode ser vista, que delimita espaços, mas que ao mesmo tempo vai além dos limites físicos, que possui muitos significados. Entre o Jardim Vila Boa e o bairro Cachoeira Dourada, há uma grande chácara que separa os dois setores, mas o interessante não é a separação entre os dois bairros que a chácara faz, e sim a divisão que a cerca realiza, separando a chácara da cidade. 13
A chácara tem um enorme pasto verde, um córrego, palmeiras, mangueiras, uma casa e vários animais; é uma realidade completamente distinta da que a rodeia, é o campo dentro da cidade, porque em volta há casas residenciais, comércios e avenidas super movimentadas. Mais do que uma cerca que traça os limites físicos entre esses espaços diferentes, há uma cerca cultural, social e simbólica ali, que separa modos de vida, pensamentos sobre a sociedade, posturas. Em certo momento a “porteira” se abre e as pessoas da chácara passam para a cidade, há uma relação com a cidade, afinal, a chácara não isolada; pessoas da cidade, de fora, também entram na chácara por razões diversas. O que quero dizer é que constantemente as fronteiras são atravessadas; são rompidas as balizas limitadoras, o de dentro tem contato com o de fora e vice- versa; descontruindo os limites que o homem impõe. Quanto mais nos aproximamos de certa realidade, quando procuramos conhece-la, experiênciá-la, mais a compreendemos. Eu vejo um menininho andando de bicicleta, quero entrar na chácara, mas não sei por onde; acompanho com os olhos o trajeto que o menino percorre e me encontro com ele. Seu nome é Jhonata, e me conduz gentilmente á chácara.
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Sou um corpo estranho no ambiente e olhos curiosos me interrogam, a conversa começa e aos poucos o estranhamento se vai com a brisa que sopra. Dona Divina e o marido moram na chácara a mais quinze anos e já morava nas redondezas muito antes, viu o cerrado se transformar gradativamente em bairro, a estrada de chão em avenida, a calmaria em agitação. Na avenida que passa na frente da chácara tem um ponto de ônibus, muitas pessoas esperam o coletivo ali, algumas já foram assaltadas. Dona Divina conta que os assaltantes até jogavam as carteiras no pasto da chácara, ela tem medo. Não há muros, é um campo aberto, os únicos limites são as cercas, facilmente transponíveis. Devido às obras do Projeto do Parque Macambira- Anicuns, o patrão de Dona Divina teve que retirar as vacas de lá, pois o parque vai cortar a chácara no meio. A produção de leite parou e o que resta é apenas o curral vazio. Os outros animais também devem ser retirados da chácara. A família não sabe o que vai acontecer, talvez não seja possível continuar vivendo ali. A conversa com dona Divina foi perpassada o tempo todo por sorrisos, histórias, lembranças, zum zum de veículos e o cacarejo de galinhas. Há complexas relações entre a família, a chácara e a cidade, construídas na fronteira... ali na cerca.
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PASSOS
TEXTO
Maria Rita DIAGRAMAÇÃO E ILUSTRAÇÃO
Vinicius de Morais
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Pediram pra que eu falasse sobre as fronteiras que existem no bairro onde eu moro, sobre o que eu observo ali. Mas o que eu posso dizer sobre um lugar que uso praticamente como dormitório? Saio cedo e tudo o que posso ver são pessoas nos pontos de ônibus, já com os rostos cansados, provavelmente indo para o trabalho, ônibus lotados, crianças indo para a escola, a maioria dos comércios fechados. Vejo tudo isso de forma muito rápida, pois vou de moto e a viseira do capacete me impede de ver muita coisa. Quando volto, o que vejo são novamente pessoas cansadas do dia que tiveram, os comércios fechando, as crianças já não estão mais nas ruas. Posso falar com um pouco mais de propriedade sobre as fronteiras (visíveis e invisíveis) que vejo no bairro ou no prédio em que trabalho, em um setor nobre da cidade. É ali que passo a maior parte do meu dia, da minha semana, mais tempo do que em casa, do que na faculdade. Ali vejo fronteiras que não são visíveis a todos, ou são e muitas pessoas preferem ignorar. As barreiras começam desde a entrada do prédio, onde você tem que se identificar, dizer seu nome, deixar seu telefone, RG, tirar uma foto, para só depois pegar um cartão e passar por uma catraca. Isso quando se é “convidado”, “visitante”. Ao tornar-se trabalhador tal procedimento é menos complicado, basta passar pela catraca, seu cadastro já está feito, você já é um número naquele sistema. As separações continuam nos elevadores, que são divididos entre Social e Serviço. Muitas pessoas se recusam a dividir o elevador de serviço com algum trabalhador do prédio que carrega baldes, esfregões, carrinhos com produtos de limpeza. Esperam o próximo elevador social chegar, ainda que ele esteja lotado, ainda que ele demore um pouco mais. São essas mesmas pessoas que muitas vezes se recusam a dividir o elevador social com um cadeirante por achar que estão incomodando (ou será que estão se sentindo incomodados?). Detalhe: o cadeirante em questão é um advogado, em uma cadeira motorizada, que fica bravo se as pessoas se recusam a dividir o elevador com ele. São essas sutilezas que me fazem constatar que essas fronteiras existem sim e que estão longe de acabar. Mas o que eu posso fazer em relação a isso? Qual o meu papel enquanto jornalista, enquanto sujeito diante dessas situações, que tantas vezes são gritantes, outras aparecem com tanta sutileza? São muitos questionamentos e a necessidade de agir. 17
PASSOS
GENTE PE 18
ERIGOSA
TEXTO
Elisama Ximenes FOTOS
Jonatas Oliveira e Nabil Murthada
DIAGRAMAÇÃO
Vinicius de Morais
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20
“Pode andar por toda a praça, mas não chegue perto dali, aquelas pessoas são perigosas”. Dizia minha mãe para nós, as três filhas, todas as vezes que nos levava à pracinha para andar de bicicleta. Quanto à “dali”, referia-se à pista de skate que ainda existe na pracinha de Valparaiso de Goiás – entorno de Brasília – onde morei toda a infância e adolescência. Sempre a obedeci e só observava aquele conjunto de concreto em formato de “U”, enfeitado por pichações e partes quebradas. Mesmo depois de crescida, quando ia à praça apenas para passear, ficava a uma distância significativa da pista. Às vezes, eram permitidas umas olhadelas. Mas espiava-os com medo e preconceito apenas por terem o estereótipo de skatista. Porém, em cidade pequena é impossível não conhecer a maioria da população. Portanto, na medida em que via meus amigos tornando-se esses “skatistas perigosos”, meu preconceito ia sendo levado com a poeira levantada pelos skates. Quando dei por mim, já
estava com vontade de aprender o ofício de deslizar em uma rampa sobre uma prancha movida a rodinhas. A vontade de ser como eles era tanta que me levou a pensar se eu estaria me tornando uma dessas pessoas de quem as crianças deviam manter distância. De fato, não me tornei completamente como eles, porque não consegui desenvolver a habilidade. Mas gostava de estar ali no meio daquela gente perigosa que, paradoxalmente, fazia mal a ninguém. Pelo contrário, aos olhos de muita gente (aos meus também), fazia grande bem seguir o vai-e-vem daquelas garotas e garotos habilidosos. Voltei ao Valparaiso dia desses e me deparei com a antiga cena. As crianças eram outras e os skatistas de uma nova geração. Mas o preconceito apreendido pelas crianças que andavam à distância era o mesmo, porém a alegria dos deslizadores de rampa também. Só espero que um dia esta geração sofra da bela mudança de opinião pela qual tive que passar e seja mais feliz, como eu fui.
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PASSOS
CAP-20 TEXTO
Isabela Lacerda
DIAGRAMAÇÃO E FOTO
Vinicius de Morais
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Estava por todo lugar com sua presença imponente, negra e necessária. Desenhava o cerrado com misturas complexas de hidrocarbonetos e ditava as regras do caminho. Era o senhor e o empregado – mandava, mas era pisado. Ao meio dia o negro, em meio a tanto trabalho, suava e emanava calor. Durante a tarde, aproveitava-se do frescor do Ribeirão João Leite. À noitinha, coloria a face marcada, com o crepúsculo e com as luzes dos faróis. Sofria. Era pisado, embarcavam-lhe a face e retiravam sua identidade – não tinha nome. Era reduzido ao pó – do pó veio e para o pó voltaria de qualquer forma. Era duro e áspero como o obrigavam a ser. Todavia, frágil. Espatifava-se, mas cumpria sua missão com orgulho, até ouvir o som daqueles que, assim como as parcas, cortavam-lhe o fio da vida. Era substituído. - Mais uma cama de piche! Rápido! Ainda faltam cinco ruas para asfaltar! * CAP-20: tipo de asfalto comumente utilizado como camada de rolamento de rodovias
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PASSOS
ANDAR DE ÔNIBUS:
UMA GRANDE EXPERIÊNCIA “Quem não anda de ônibus não tem história”, essa é uma das máximas que carrego em minha vida. Conheço o transporte coletivo dessa cidade desde que nasci, ando sozinha por aí desde os 10 anos, quando comecei a ir sozinha para a escola, portanto, tenho um certo conhecimento de causa para falar um pouco sobre a rotina dos ônibus, terminais e passageiros nessa cidade. Eu diria que andar de ônibus é uma das experiências sociológicas mais interessantes que uma pessoa pode ter. Li por aí que “quem nunca andou de ônibus não é confiável” e, exageros à parte, concordo com a afirmativa. Impossível conhecer bem e descobrir o lugar o qual se vive sem passar por isso. Vamos esquecer alguns problemas estruturais como horários, veículos lotados, motoristas impacientes (pressionados pelo rádio e monitorados pelos GPS) e passagens abusivas. Melhor do que isso é ver e analisar as pessoas tão diferentes que se reúnem nos ônibus durante os mais variados trajetos.
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TEXTO
Maria Rita DIAGRAMAÇÃO E ILUSTRAÇÃO
Vinicius de Morais
De uns tempos pra cá tem uma moça cantando nos coletivos da cidade. O repertório é variado e inclui canções próprias. Ela também toca violão e algumas vezes carrega a filha dela com ela para fazer o “show”. Tive o prazer (ou não) de pegá-la em uma viagem enquanto ia passear. Ela pedia que as pessoas batessem palmas, além da contribuição para o seu potinho de moedas. Arrumou até um fã dentro do ônibus que não se envergonhou ao falar bem alto: isso sim é que é música, você deveria estar nas rádios junto com a Paula Fernandes. E olha que ela nem era lá essas coisas... Música é algo bastante recorrente dentro dos ônibus. Infelizmente temos que contar com algumas pessoas que parecem deixar o bom senso em casa e acham que temos que escutar o que está em seus celulares e – na maioria das vezes – com o volume bastante alto. Tem para todos os gostos: do funk ao gospel, passando pela música eletrônica e sertaneja. A ousadia de alguns passageiros é tanta que já cheguei a presenciar um “duelo de DJs” dentro de ônibus. Explico: havia um moço em cada ponta do ônibus, horário de pico, transporte lotado, pessoas cansadas e os rapazes, cada um com seu gosto musical, começaram a duelar para saber quem tinha o sonzinho mais potente. Um tocava pagode, o outro começava um sertanejo. O primeiro tocava uma música dance, o outro mandava um rap. Azar de quem estava lá escutando as caixinhas de abelha, inclusive eu, que havia esquecido meus fones em casa. Várias pessoas usam o transporte público para fazer aquilo que muitas vezes o dia de trabalho não permite, como falar com um parente distante pelo celular, conversar com a amiga do serviço, brigar com o namorado por telefone... E isso sempre rende comentários excelentes, que vão desde o capítulo de ontem da novela, um defeito da patroa, até discussões pouco adequadas para o lugar. Certa vez escutei um casal discutindo porque o moço não tinha comprado preservativos para o encontro que viria a seguir. É. Andar de ônibus amplia nossa visão de mundo, garante umas risadas em meio ao trânsito caótico e a vontade de chegar logo em casa. Por mais estressante que possa parecer, muitas vezes saímos deles com algum novo aprendizado, uma dúvida ou apenas um pouco de divertimento. Podemos ainda tirar um cochilo, ler um texto da faculdade, um trecho de um livro, mas a experiência de estar ali com pessoas diferentes, com comportamentos e conversas tantas vezes intrigantes faz o mal necessário de usar o transporte público valer a pena, com certeza. 25
PASSOS
o beijo TEXTO
Maria Rita
DIAGRAMAÇÃO E ILUSTRAÇÃO
Vinicius de Morais
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Aconteceu. Ele beijou um amigo. Foi parar na TV, nos jornais, na internet. Ele, um jogador famoso, macho, cheio de torcedores que exalam testosterona. Ele. Foi só o acontecimento parar nas páginas dos noticiários esportivos (e de fofoca) para as pessoas começarem a julgar. “É gay, é bicha, maricona”. Torcedores protestaram, dizendo que o time não tinha espaço para gays. “Futebol é coisa de macho”, gritavam outros. O assunto foi parar nas rodinhas de conversa do meio do expediente e, numa dessas, virei indignada para um colega e disse: É SÓ UM BEIJO. Tive como resposta o questionamento: “é só um beijo?”. Para não discutir, coloquei os fones de ouvido e aumentei o volume da música. Quis não estar ali, com aquelas pessoas cheias de preconceito, brincadeirinhas sem a mínima graça, achando que o mundo ia desabar, ou que o cara seria um pior jogador por conta de um beijo dado em um amigo. Um beijo. E se fosse mais do que isso? Não importa. Fiquei engasgada por dias, sabendo que a cena que presenciei era só a pontinha da nuvem de discriminação e opressão que muitos gays enfrentam todos os dias, em todos os lugares. Sendo julgados como inferiores, como menos humanos, enfrentando barreiras apenas pelo fato de gostarem de alguém do mesmo sexo. Porque isso mexe tanto com os outros? Qual o problema? Sinceramente, não sei. Mas queria, de verdade, que esse tipo de discriminação parasse de acontecer e as pessoas fossem tratadas com o mínimo de respeito. Quem sabe um dia.
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PASSAGENS
PASSAGENS
U M
E I XO
DIA 30
C H A M A D O
ABO
TEXTO
Júnior Bueno DIAGRAMAÇÃO E ILUSTRAÇÕES
Vinicius de Morais
Anhanguera em tupi significa “diabo velho”. É o apelido dado pelos índios a Bartolomeu Bueno da Silva, bandeirante do ciclo do ouro. Reza a lenda que Bartolomeu assustava os índios com pirotecnias a fim de descobrir onde ficavam as jazidas de ouro. Em Goiânia existe uma estátua em homenagem ao bandeirante no cruzamento das duas principais avenidas da cidade, a Avenida Goiás e a Avenida Anhanguera, homônima do velho diabo. Esta avenida corta a cidade no sentido Leste-Oeste e ao longo de seus quase 14 quilômetros estão alguns dos principais bairros da cidade, alguns nobres, outros de periferia e alguns comerciais. Se considerarmos a estátua do bandeirante no centro como sendo o coração da cidade, logo perceberemos que a Avenida Anhanguera é sua principal artéria. Nesse caso o sangue que corre é azul, apesar de ter muito pouco de realeza. 31
No corredor principal da avenida circulam ininterruptamente os ônibus azuis da Metrobus que transportam por dia uma média de 240 mil passageiros. Entre os extremos do Terminal padre Pelágio ao oeste e o Terminal Novo Mundo a leste estão dispostos outros três terminais e dezenove plataformas. Cada veículo possui uma placa indicativa do número máximo de passageiros (53 sentados, 128 em pé nos ônibus menores; 69 sentados e 182 em pé nos maiores) embora essa quantidade seja sempre exorbitada nos horários de pico. E foi exatamente em um horário crítico, às 17h30min que se iniciou a viagem relatada nessa reportagem. Com o intuito de mostrar um pouco da realidade de quem necessita usar esse serviço diariamente, este repórter embarcou no Eixo Anhanguera, saindo do Terminal Novo Mundo rumo à outra ponta da cidade e depois fez o mesmo trajeto de volta. O primeiro ônibus era guiado por Ronaldo, 29 anos, que bastante desconfiado, ao saber da reportagem, logo perguntou: “Você não faz parte daquelas manifestações não, né?”. Seu receio faz sentido quando se pensa no atual momento do país com manifestações em várias cidades desencadeado pelo aumento do preço das passagens. Em muitas dessas cidades houve depredações de ônibus, inclusive em Goiânia. Mesmo pouco à vontade, Ronaldo falou que estava em sua terceira viagem do dia. Com o salário de motorista sustenta o lar onde mora com a esposa. Sua escala de folgas é muito variada e quando cai aos domingos ele frequenta os cultos da Igreja Cristã Maranata. Ronaldo disse ainda que se orgulha de não ter um acidente em sua carreira.
À medida que avança pra dentro da cidade, o ônibus que contava com 20 passageiros na saída vai se tornando mais cheio. Ao passar pelo Terminal da Praça da Bíblia, a quantidade de pessoas já passa do indicado na plaquinha no painel do motorista, mas enquanto há espaço há gente entrando. Mesmo saindo em intervalos menores que 5 minutos, a demanda ainda é grande: o eixo Anhanguera possui o maior IPK (índice de passageiro por quilômetro) da cidade. Ao se aproximar do centro a situação parece insustentável, mas as pessoas se acomodam como podem. Algumas pessoas aglutinadas próximas à porta acabam por atrapalhar um rapaz de descer na sua plataforma de destino. É nesse momento que embarca uma simpática senhora empurrando seu carrinho de mercadorias. Maria Helena, 56 anos, baiana de nascimento e goiana por escolha é vendedora ambulante nas ruas do centro. Despachada, ela descreve a superlotação dos ônibus: “Isso aqui é lata de sardinha, pra ir sentado só se eu dormir de um dia pro outro dentro do ônibus”. Ela fala ainda de outro problema grave dos ônibus cheios, os homens que se aproveitam da proximidade pra “sarrar as mulheres”, nas palavras de Maria Helena. “Você me desculpa falar assim, porque você é homem, mas o que mais tem dentro do Eixo é homem safado. A gente fala pra polícia, mas nunca acontece nada”, diz em alto e bom som. Ao redor percebo homens se afastando. Outra reclamação comum é a falta de solidariedade com idosos e deficientes físicos, ainda que haja assentos reservados pra eles. Gestantes e mulheres com crianças de colo sentem também o mesmo descaso. É o que relata a recepcionista Nina, de 39 anos: “Semana passada uma senhora com o braço quebrado pediu o lugar pra uma moça num banco amarelo [cor do assento preferencial]. A moça levantou, mas xingou a velhinha de tudo que é nome, maior falta de educação”. Ainda assim é possível encontrar alguma gentileza remanescente. Este repórter presenciou uma cena peculiar. Uma jovem caminhava com dificuldade, aparentando pelo menos seis meses de gravidez e se posicionou ao lado de um assento amarelo. O jovem que ocupava o lugar se levantou pra que ela se sentasse e ela respondeu sorrindo: “Não é gravidez não, isso aqui é gordura mesmo!”. Envergonhado ele se encolheu em seu banco e se refugiou dos risos alheios nos fones de ouvidos do celular. Aliás, fones de ouvido são um importante tópico de que falarei mais tarde. Quem tem a sorte de ir sentado procura se ocupar com algo. Alguns leem livros e revistas, uns estudam, alguns mandam 33
mensagens pelo celular e grande parte dorme. É curioso ver que mesmo estando em meio a desconhecidos alguém possa se entregar ao sono assim tão despudoradamente. Mas se engana quem presume que esse espaço mínimo de convivência compartido por tanta gente possa propiciar alguma interação que vá além do “com licença, por favor” ou do “quer que eu leve sua sacola?”. A não ser que se embarque acompanhado, quem viaja costuma permanecer em silêncio, ocupando o menor espaço possível, se recolhendo a medida que o espaço vai sendo ocupado, como um balé sincronizado. Ninguém se olha diretamente, todos olham para fora, envoltos em seus pensamentos, alheios ao redor, esperando que o destino não demore a chegar e que o dia termine. Andar de ônibus numa grande cidade é um exercício de solidão compartilhada. Se cada ser humano dentro do ônibus é um universo em particular, grande parte deles é embalada por uma trilha sonora própria. Cada vez mais comum, o fone de ouvido ajuda o passageiro a se isolar ainda mais dos demais. E pra quem observa é grande a curiosidade de saber que música cada um ouve naquele momento. Em alguns casos nem precisa perguntar. Um rapaz ouvia “Highway to Hell” do AC/DC em um volume tão alto que qualquer um podia ter certeza que ele curtia mesmo um rock pesado, como se a corrente de bicicleta usada como chaveiro e a pulseira de tachinhas já não dessem essa impressão. Em outro trecho uma adolescente ouvia música pop sem fones de ouvido e não satisfeita em ouvir cantava junto, com o celular fazendo às vezes de microfone. Em certo momento esteve ao meu lado uma morena bonita de cabelo vermelho que sacudia a cabeça de olhos fechados, totalmente entregue ao som que só ela ouvia. Era uma ilha de alegria em meio ao mar de cansaço em sua volta. Eu tive vontade de perguntar a ela
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que música era aquela, mas achei melhor não interromper. Estávamos próximos do ponto final. No Terminal Padre Pelágio eu entro em outro ônibus pra fazer o trajeto de volta. O sistema de transporte é integrado, o que possibilita descer em uma plataforma e entrar em outro ônibus. Isso facilita a entrada de vendedores ambulantes, pedintes e pregadores de diferentes denominações religiosas que circulam pelo ônibus a fim de garantir o sustento ou arrebanhar uma alma. Na altura do Lago das rosas, a alguns pontos do centro, entrou um senhor falando alto e distribuindo uns pacotes com caneta, chaveiro de miçangas e folheto com versículos e um número de telefone. Seu nome é Charles Tadeu, de 39 anos, que veio de Minas pra conhecer o Lar do Pastor Manassés. A fundação auxilia dependentes químicos na luta contra o vício e Charles é um ex-interno da Manassés. Ele diz que todo o sustento do abrigo vem dos kits que ele vende no ônibus. “O povo goiano é muito solidário, nem todo mundo pega o kit, mas quem pode ajudar sempre ajuda, porque sabe que a causa é nobre”. Pergunto se a prática de venda de produtos nos ônibus não é proibida e ele responde que “não é legalizado, mas os motoristas sempre me dão apoio, né amizade?”. Essa simpatia acaba me convencendo e eu compro um kit. Por falar em simpatia, o que o jovem motorista Ronaldo tem de arredio, o outro motorista, Cícero tem de boa-praça. Falante e piadista, o senhor de 63 anos já tinha se aposentado quando resolveu prestar concurso para entrar de novo na Metrobus, há dois anos. Ao todo são 25 anos de Eixo Leste-Oeste, o que o torna um expert em Avenida Anhanguera: “Conheço essa avenida como a palma da minha mão, rodando aqui eu criei meus dois filhos, eles puderam estudar, são formados”. Cícero tem três netos e afirma ser
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um “sujeito de família”. Embora haja, segundo ele, “muitos motoristas casados que se envolvem com a mulherada”, ele sempre resistiu ao assédio das passageiras mais atiradas. “Elas tratam a gente bem, mas eu sou sempre educado, nunca passei disso.” diz com um sorriso gaiato. Tanto ele quanto Ronaldo, afirmaram que nem sempre o motorista é compreendido, às vezes acabam descontando no profissional a insatisfação com o sistema de transporte e a empresa em si. A viagem de ida e volta durou uma hora e quarenta minutos, mas pra quem se vê dentro do ônibus, sobretudo quem ainda precisará entrar em outro ônibus no Terminal, parece uma eternidade. O desconforto de ir em pé, sujeito a se machucar, passando calor e suportando nos ombros e nas pernas o peso de uma jornada de trabalho é algo impossível de se quantificar em dinheiro. Quando se fala num aumento de 30 centavos na passagem (15 no caso do eixo que é a metade do valor) não se pensa nas pessoas, mas nas máquinas que levam essas pessoas. Nas plataformas, nos terminais, nas estruturas de metal e concreto que esquentam no sol. Nos carros sanfonados com o insistente aviso “porta fechando” que fora a incorreção gramatical cansa o ouvido ao ser soado a cada parada. Nunca se fala que são as pessoas a razão de ser dos sistemas, não o contrário. Pela última vez hoje eu escuto “porta fechando”, e o ônibus para no Terminal Novo Mundo. Antes de descer avisto uma moça com seus fones de ouvido cantando alegre a canção que só ela ouve. Dessa vez eu não resisto e pergunto que música é aquela. Ela diz que é “Maravilhoso és pra mim” do cantor gospel Fernandinho. Percebo que a letra da música não poderia ser mais apropriada pra encerrar esta jornada: “Quão maravilhoso é pra mim/ Viver em comunhão /Com os meus irmãos todos os dias”. Não sem antes perceber a ironia entre uma música sacra e um eixo chamada Diabo.
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Pudera os olhos tirar
FOTOGRAFIAS
Pudera os olhos tirar fotografias, quantas vezes visualizamos imagens fantásticas e não temos uma câmera à mão para registrar. Pudera os olhos tirar fotografias, eu mostraria ao mundo o encanto de flores que ninguém vê, detalhes, gestos, sorrisos que passam despercebidos. Pudera os olhos tirar fotografias, eu daria um zoom nas desigualdades, nos despropósitos, nos sofrimentos e humilhações, nas explorações e injustiças para os quais se fazem “vistas grossas”, e os revelaria. Pudera os olhos tirar fotografias, eu apresentaria ângulos diferentes da realidade, mudaria o foco. Pudera os olhos tirar fotografias, eu proporia uma exposição das imagens captadas por cada um e então poderíamos conversar e refletir sobre isso. Pudera os olhos tirar fotografias, eu registraria a luz que emana de outros olhares e assim marcaria o filme da história com múltiplos significados.
TEXTO
Adriana Rodrigues DIAGRAMAÇÃO E ILUSTRAÇÃO
Marcella Suedson
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PASSAGENS
Amai-vos uns aos outros
TEXTO
Adriana Rodrigues 38
DIAGRAMAÇÃO E ILUSTRAÇÃO
Marcella Suedson
Cansaço... Sono... Fome... Pressa... Estresse... Espera... Pés inquietos batem no chão, parecem marcar o ritmo de alguma música, tap, tap, tap, tap; agitação, burburinho- é o som - mas ninguém dança, cada vez mais gente, braços cruzados e tap, tap, tap, tap. Sete, sete e quinze, sete e meia! E nada. Sete e quarenta e cinco, oito! Meu Deus! Alguém tem que reclamar! Chama o guarda! Vamos interromper a pista, se o 161 não chegar, nenhum outro ônibus passa por aqui! Ninguém sai desse terminal! Reclama daqui, reclama de lá... Impaciência, atrasos, compromissos, obrigações, repouso. O guarda aparece, fala no “radinho”. Nada! Aguardem, aguardem. Descontentamento, xingamentos, revolta... Tap, tap, tap, tap. E depois de tanta demora, depois de tanta fadiga, lá vem o ônibus. Ufa! Graças a Deus! Ninguém merece! Tem é que quebrar tudo mesmo! Desrespeito! Cinco dias depois... O mesmo acontece com a linha 033. Revolta, inquietude, estresse, o ônibus não vêm. Tap, tap, tap, tap. Vamos interromper a pista! Se o ônibus não chegar, ninguém passa aqui! E o povo vai para o meio da pista. Confusão... Lá vêm o 161. Sôfregos, todos entram rapidamente. Mas o ônibus é impedido de prosseguir, barrado pelos revoltosos do 033. Ninguém passa aqui! Cadê o ônibus?! Alvoroço. Dentro do 161: Ai meu Deus! Também tenho que ir embora parceiro! Todo mundo aqui tem o que fazer! Só o que me faltava! Ninguém merece! CHAMEM O GUARDA!
“A aventura humana é essencialmente pensante e reflexiva, ou deixará de ser aventura para se tornar peregrinação. Nas potencialidades intrinsecamente humanas reside a esperança da nossa aventura, na percepção de que hoje ela é planetária, envolvendo-nos a todos num caminhar comum, no entendimento de que ‘amai-vos uns aos outros’ não é uma simples mensagem religiosa – é a única saída”. Milton Greco 39
LEMBRANÇAS
LEMBRANÇAS
movimento cheia de cachos e
TEXTO
Maria Rita
DIAGRAMAÇÃO E ILUSTRAÇÃO
Vinicius de Morais
Não é fácil se olhar no espelho e pensar: estou bem. Mexer nos cabelos e pensar: agora está bom. Demorei muito, mas muito tempo mesmo, para chegar num ponto em que gosto realmente do que vejo. Sim, quero melhorar, mas sofro muito menos com isso. Digamos que hoje as barreiras da não-aceitação são bem menores, nulas praticamente. Talvez seja reflexo da maturidade, do empoderamento, não sei. De qualquer forma não é fácil. O processo pode ser doloroso e muitas vezes incomoda as pessoas ao redor. Mas quanto mais me aceito como sou, mais libertador é. Aos poucos comecei a ver que desde cedo eu gostava do que eu tinha e não estava tão a fim de seguir alguns “padrões”. Vale lembrar que as pessoas não são feitas em série. Se você acha bacana usar os cabelos, as roupas, os sapatos da moda, ter o corpo esculpido como parte da população, que bom. Mas comigo nem sempre foi assim. Mas hoje quero falar um pouco mais sobre cabelos. Quando pequena, minha mãe prendia de todos os jeitos para domar os bichinhos e eu cresci assim, com vergonha de usá-los soltos porque “eram volumosos”. No entanto, nunca gostei de escovas, chapinhas ou qualquer outra coisa que alisasse. Passar por chapinha era um sofrimento, penitência que foi paga quando passei em meu primeiro vestibular (ter os longos cabelos escovados fazia parte do trote. Lavei menos de meia hora depois). Depois dos 16 anos passei a usar química no salão para deixá-los mais “aceitáveis”, mas SEMPRE dizia pra moça “não puxe muito, gosto dos meus cachos”. Lembrei disso dias atrás, enquanto cuidava dos meus cabelos, que hoje são soltos, cacheadinhos e vão bem, obrigada. Depois de tanto relaxar, parti para os alisamentos por conta da praticidade. Marroquina, definitiva, progressiva, japonesa. Mil nomes, quase o mesmo resultado: cabelos artificiais, que não combinavam comigo. Práticos, talvez. Mas não eram meus. As raízes cresciam rápido demais, incomodavam. Desisti e abracei os cabelos como são hoje. Sem arrependimentos. Mesmo gostando deles como são e prometendo a mim mesma que alisantes nunca mais, ainda encontro pela frente pessoas que dizem “seus cabelos estão tão bonitos, mas que tal fazer uma escova?”. Não, eu não quero. Eu escolhi deixá-los assim. É como eu me sinto bem e como eu sou. Mas tem gente que se importa e se incomoda demais com isso, fazer o quê? O que importa é que sigo a cada dia derrubando barreiras e fronteiras em busca da aceitação do que eu sou e como sou.
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LEMBRANÇAS
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OLHOS DE
cebolinha
Infelizmente não vi minha prima fazendo mais um de seus atos incrivelmente espontâneos. E isso me incomoda, como conseguiria de maneira livre e leve relatar uma cena que não vi? Mas como, pra mim, a história é boa receberei seu perdão ao final do texto. Eu espero. Foi num domingo, eu esperava pelas batatas assadas do meu avô quando ela chegou descabelada - assim como eu, quando tinha sua idade - ofegante e risonha, pra me chamar para almoçar. - Tem almoço lá em casa! - Vou comer no meu avô. - Tá. - Tá. Minha mãe estava na porta e a viu fazer uma das coisas mais magníficas do mundo: comer uma cebolinha. O ato de comer e o que comer nem me fez cócegas na imaginação, afinal ela sempre gostou de alimentos não gostáveis - verduras, folhas e leguminosas. Mas o que mais me deixou apaixonada foi como ela comeu. Segundo minha mãe, a testemunha ocular do fato, ela passou pelo canteiro de cebolinhas da minha avó, deslizou a mão sob o tempero por três vezes e parou, quase que imóvel. - Que cebolinha linda! Elogiou a cebolinha, arrancou-a e voltou para casa com o tempero entre os dentes. Eu não sei o que fez uma menina de dez anos elogiar uma cebolinha como se elogiasse uma flor e comê-la como se fosse um doce, mas sei que é assim que eu quero ser. Não vou me bandear para o lado daqueles que comem coisas não gostáveis, mas sim olhar o mundo com outros olhos. Olhos de quem olha uma cebolinha. “Quero a delicia de poder sentir as coisas mais simples”, assim como Bandeira e minha prima fizeram.
TEXTO
Isabela Lacerda FOTO
Elisama Ximenes DIAGRAMAÇÃO
Vinicius de Morais
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LEMBRANÇAS
Fusão TEXTO
Pedro Ferreira
DIAGRAMAÇÃO E FOTO
Vinicius de Morais
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A lua clara estampava um sorriso na imensidão do horizonte. As estrelas timidamente começam a cintilar. O vento soprava fraco e trazia consigo o som uníssono de repetidas “aves-marias”. O tempo enganava fingindo ser rápido em alguns momentos, e iluminado apenas pela penumbra do luar, lá estava ele, vagando pelo cemitério das lembranças. Tinha o semblante de alguém dividido entre dois mundos. Vivo, do lado de fora. Morto, do lado de dentro. Uma dubiedade sinérgica, estática e insossa. Fora, a movimentação humana era apressada. Dentro, a caminhada solitária seguia em direção ao nada. Fora, uma claridade ríspida cortava o ar assombrando a escuridão. Dentro, os passos se afastavam da luz em direção à obscuridade. Fora, um calor atrevido repentinamente surgia. Dentro, a gelidez sufocava. A lenha, cuidadosamente amontoada uma sobre a outra, era friamente consumida pelas chamas ardentes do fogo. As brasas aos poucos surgiam. Faíscas tentavam ofuscar o luar. As chamas cintilavam imponentes. Então, ali se fez uma fogueira que encenava sua incendiaste. Vagarosamente, ele começou a sentir o toque quente o chamar. Os olhos foram seduzidos pelo brilho do destino do pecado. A dor da madeira que agonizava a ser queimada se materializava em seu sossego. Diante da aflição desconhecida, uma lágrima surgiu cortando sua face, percorrendo seu curto caminho até finar-se na boca. A fusão havia sido feita, o interior se expressara no exterior, dominando-o. Os pêlos dos braços ficaram eriçados. Notava-se as mãos suadas. A respiração era ofegante. A visão indiferente anunciava um caminho de incertezas. Dando as costas à pira que desmoronava em silêncio, ele adentrou na sombra da noite aproximando suas fronteiras. 47
LEMBRANÇAS
Pode-se atribuir valor ao tempo? TEXTO
Adriana Rodrigues DIAGRAMAÇÃO E ILUSTRAÇÃO
Marcella Suedson
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Tempo! Mas pra que serve o tempo? Se não para apreciar as coisas boas da vida. Poder caminhar descalço na praia, sentir pequenas particular de areia entre os dedos, escutar o suave canto do mar. Tempo de ser feliz! Sentar em um banco de praça e ver o dia passar. Tirar um tempo e se auto-apreciar. Sentar e olhar os patos no lago a nadar. Esvaziar o corpo e a mente para meditar. Voltar a ser criança, brincar de pique e pega, esconde-esconde de trás das árvores. Tudo isso tem seu tempo, mas que não tem preço. Atribui-se valor as coisas que vivenciamos e gozamos na vida? Creio que não. Olhar o por do sol e namorar, comer algodão doce e brincar. Qual será a próxima parada no tempo que irei marcar? Ser responsável e corações cativar, deixar de lado as fronteiras e meu lado louco experimentar. Ouço o barulho do vento por entre as folhas das árvores, um balanço lento e suave, será que estou a fantasiar? Um emaranhado de cores a se misturar. Quanto será que custa todas essas dádivas da vida? Fico a me perguntar. De um lado a calmaria e o balançar das águas, do outro a avenida movimentada. Um trânsito louco e frenético. Um carro azul, outro verde, mas todos seguem o seu caminho. Correndo atrás, talvez, de um sonho impossível. Crescer e parar de fantasiar porque na realidade, temos tempo a ganhar. Tempo é dinheiro disse alguém uma vez, será que ele estava certo? Não tenho tempo para pensar. Tenho algo maravilhoso para desfrutar, um segundo a mais que a vida me dá. 49
LEMBRANÇAS
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trocando ideia no
Rio TEXTO E FOTO
Berta Campubrí
DIAGRAMAÇÃO E ILUSTRAÇÃO
Marcela Suedson
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Falam que o Rio de Janeiro é a Barcelona do Brasil. Sei lá, eu só sei que no Rio eu não me senti como uma gringa – tá, quando tirei a foto posando diante do Cristo sim, mas só aí –, por um breve período me senti moradora dessa comunidade, senti-me como em casa. Sim, tenho que admitir que dez dias na cidade dos morros enfavelados e as praias engringadas me fizeram sentir à vontade, na minha onda. Ah, e eu sou de Barcelona. Só chegar, numa noite comum, uma quinta-feira do final de outubro, às onze da noite, o bairro da Lapa me recebeu ao ritmo de violão e pandeiro e sabor a cachaça. Pude sentir essa vibração carioca da tranquilidade, esse jeito sem pressa... E notei também certa precariedade misturada na diversidade étnica e social que oferecia essa rua. Respirava-se cultura popular e malandragem. Um ar que eu curti demais. Lá, um “gengibrinho”, uma cachaça de canela – a melhor, sem dúvida –, ou uma cerveja, chegam na sua mão facilmente. É claro que sendo gringa e, além disso, loira, as possibilidades ficam ainda mais generosas. Depois, pouco a pouco chegam também um comentário engraçado de algum bêbado, um samba coletivo, um tapinha de maconha, um momento divertido com um doidinho da rua, uma conversa interessante sobre os movimentos sociais, uma olhada sensual com um menino atrativo... Sem saber, o sol já estava saindo, o galo estava cantando, e parecia que pouco tempo atrás estava descendo do avião. Há alguns anos, uma das atividades mais frequentes na minha vida é essa, a sociabilização. Com conhecidos ou com ain-
da-não-conhecidos, com o sem uma cerveja na mão. Na real, com a galera lá em Barcelona às vezes comentamos que o consumo da cerveja se converteu numa grande problemática para gente. Porque é assim: lá, se a gente quer combinar para se ver, falar e conversar, a expressão que usamos é ¿quedamos para hacer unas birras?. Literalmente parece que a gente está se dispondo a fabricar umas cervejas. Mas não, é só uma expressão popular que significa “vamos combinar para tomar umas cervejas”. Então, quando chega o dia em que você combinou com esse amigo ou amiga, a primeira coisa que vocês vão fazer é comprar umas cervejas, sentar-se num banco na praça – também existe a versão menos divertida que consiste em sentar-se num bar e esperar que te servirem - e, depois disso, a gente já está pronto para conversar, explicar o que que aconteceu no trabalho, na universidade, porque o seu namorado é tão chato, porque o mundo é tão injusto etc... Mas sempre com uma cerveja na mão. Não é nenhum exagero, eu tenho uma amiga que não gosta da cerveja e ela não tem muita vida social. Não sei se a relação dos fatos é direta, mas com certeza tem alguma coisa a ver. A nossa vida social é escrava da cerveja. É uma realidade. Tanto faz, o que eu queria dizer é que aqui no Brasil, em comparação a nossa, a expressão para combinar para se ver, falar e conversar é uma muito mais bonita e simbólica: “Vamos nos encontrar pra trocar uma ideia?”. Trocar uma ideia! Sério, é lindo demais. Parece que aqui o povo combina com os amigos até para reflexionar, debater, pensar... trocar ideias! Para ser sincera a primeira vez que alguém falou isso para mim pensei que ele queria fazer algum tipo de debate comigo. Enfim, lá no Rio, troquei ideias com um pessoal muito interessante. E não sei porque, todas – na real, não nos enganemos, devo falar todos... - eram músicos, artistas em geral, pessoas bastante livres de espírito. Gente que goza e gosta da vida. Quer seja na favela, quer seja na mansão. Em Cantagalo e no Leblon. Na Rocinha e na Barra de Tijuca. Não sei o que será. Talvez é essa tranquilidade carioca misturada com a brisa do mar. Dar um passeio é fácil no Rio. Em Goiânia, onde eu moro, fica difícil, realmente. Fisicamente é possível, - claro que, por causa do calor, só é aconselhável num dia nublado, e portanto triste - mas a minha pobre moral me diz: “Não! Tem coisas melhores a fazer da vida!”. Sim, Goiânia é bastante feia. Tem coisas boas como em todos lugares, mas às vezes fica difícil achar elas. Mas no Rio, de qualquer jeito, um passeio vai trazer o descobrimento de um novo lugar, pes-
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soa ou filosofia de vida – encontrei um cara, que vivia da sua poesia, e que achava que o mundo era, na realidade, um jogo onde ganha quem passa menos tempo fazendo coisas que não gosta. Boto fé. É obvio que tem distintos tipos de passeios, alguns são só fáceis, outros são bem curiosos, outros lindos pra caramba e outros relaxantes. Tá, na verdade, relaxantes tem bem poucos porque a característica comum das ruas do Rio é mesmo a insegurança. Mas ainda assim, eu gosto de ir de um lado ao outro pelos meus próprios meios, e os quase sessenta minutos de caminhada desde o bairro de Botafogo a Glória decorrem com harmonia. Esse é o tipo de passeio fácil, de boa. Acho que um dos mais bonitos e curiosos bairros é Santa Teresa. Essas casinhas de cores, essas ladeiras cheias de natureza, e uma vez em cima, a vista de um morro coroado com os tons marrons de uma favela e com o Pão de Açúcar de fundo... Essa é a parte linda. A parte mais curiosa é descer para a Lapa pela Escadaria do Selarón. Juro que fiquei quase uma hora observando cada um dos azulejos de cerâmica do chileno Jorge Selarón. Eles contêm milhões de temas, lugares, expressões populares, times de futebol, grupos de música... Encontrei até o hino da Catalunha! A letra de uma canção que representa uma minoria social bem pequena e bem distante da realidade brasileira. Fiquei bem feliz e satisfeita. E talvez os que poderiam ter sido os passeios mais perigosos foram, na prática, os mais amistosos e os mais agradáveis: Cantagalo, Santa Marta e Rocinha. Todas favelas pacificadas onde, às vezes, ainda têm tiroteios. Todas comunidades de classe baixa, ou melhor dito, de lúmpen-proletariado; famílias que moram em condições bastante ou muito precárias, entre ruas bem pequenas com má infraestrutura. Zonas, algumas até fedidas, onde se respira um ambiente familiar e humilde. Nos três setores foi possível trocar ideia – sem cerveja nem nada - com alguém do lugar, e deu para conhecer o bairro com tranquilidade. Muito ao contrário de outra região que tive que pisar varias vezes: o Centro. Rio Branco, um lugar bem pouco carioca: um rio lotado de pessoas com pressa e lojas que vendem coisas desnecessárias. Prédios altos, de cor cinza, com essas janelas escuras, executivas, quase mafiosas. Aí é impossível dar um passeio, aí você só pode caminhar com uma direção e ficar feliz por ter chegado sem ser empuxado nem roubado. 54
De modo que no Rio me sentia como em casa, curtia o ambiente, gostava do povo... Não seria por que se parece tanto a alguma coisa familiar? Não seria por que esta cidade maravilha, sem dúvida, conservando o seu jeitinho brasileiro, sofre mais que outros lugares do Brasil essa ocidentalização, essa onda globalizadora? Por um lado notei muito a proximidade da Copa do Mundo de Futebol e as Olimpíadas 2016 nas reformas urbanas – informando-me melhor tenho que trocar “reformas urbanas” por “especulação imobiliária”. Por outro, no preço dos alugueis, Jesus, Maria e José! As dimensões gigantes da cidade também não gosto: já venho de uma grande metrópole. E é bem normal que uma cidade tão extraordinariamente bonita seja uma atração turística, mas sempre mantendo e potencializando as suas características diferenciais, fazendo delas o seu valor adicionado. Oh, desculpa, mas precisava encontrar algum fator negativo. Senão, por que não mudar de cidade e morar perto dessas praias e viver nessa boa onda? Rio de Janeiro, fica aí, accessível para eu te visitar com a máxima frequência possível. Fico aqui na minha simples Goiânia, no humilde e “agrário” bairro de Itatiaia, onde posso gozar de um campo bem verde de vacas através da janela. 55
CONFLITOS
CONFLITOS
notas de qu
Em uma faculdade de jornalismo você vê claramente dois tipos de alunos: boa parte são aqueles que se identificam com a comunicação desde cedo e gostam da possibilidade de ver seus atributos (intelectuais ou não) lidos, vistos e ouvidos. Outros, contudo, mesmo sem tanto encanto pela técnica, vêem na imprensa um grande mobilizador de discursos e por isso, um instrumento capaz de causar mudanças sociais. Eu faço parte desse último grupo. Até os 19 anos, jamais havia me imaginado no meio jornalístico. Meu sonho nunca foi ser repórter, mas o que eu sempre quis foi ajudar a melhorar o mundo. 58
Essa mudança começa em atos cotidianos, como dar lugar para um idoso no ônibus, ajudar um deficiente ou tratar um(a) transexual pelo gênero que ele(a) se identifica. Em nossa graduação, aprendemos que podemos ir além, divulgando histórias, dando espaço de fala para vozes pouco ouvidas e denunciando opressões. A rotina profissional, no entanto, pode ser complicada para quem se apaixonou pelo jornalismo por questões políticas, e não pelo encanto da prática. Durante o curso, dependendo das disciplinas do seu semestre, você acabar em uma verdadeira linha de produção (o que
uem sonha faz todo sentido, se pensarmos no que são as redações dos jornais). Toda semana são novos textos para entregar, mas no fim, o que te dá prazer? O que te move? Talvez pouco daquilo tudo, duas ou três pautas que te instigaram, alguns entrevistados, alguns livros e aquela viagem, única. A necessidade de escrever em vários formatos, por sua vez, torna-se outro desafio. É preciso ler livros, ensaios, fazer entrevistas, ver documentários e consumir muita informação, às vezes em mais de um idioma, para no fim do semestre acumular dezenas de reportagens, matérias, artigos jornalísticos e científicos, e muitos, muitos rascunhos. Conseguir interpretar e principalmente, dominar tantas linguagens exige grande esforço. Não lhe basta ter argumentos, ideias e opiniões embasadas. No jornalismo seu raciocínio precisa ser fino e transparente como um fio d’água. Sua linguagem deve ser concisa e direta para ser acessível às estruturas interpretativas de todos que a consumirem, desde a avó da zona rural até o presidente do Senado. Ou então, seu texto precisa ser poético e lírico, com figuras de linguagem bem colocadas. O texto ideal é o que consegue conciliar todas essas características. Isso tudo é compreensível, levando-se em conta as intenções discursivas da mídia. Mas, para quem no fim das contas, lê mais textos científicos do que jornalísti-
TEXTO
Leandro Stoffels DIAGRAMAÇÃO
Rayanne Bueno
cos e literários, produzir encanto em escala industrial pode não ser fácil. Apesar disso, não se pode ignorar a importância de conhecer e dominar discursos para questionar hegemonias. É importante identificar e investir nas linguagens que você tem facilidade e reconhecer suas deficiências. E se você perceber que o jornalismo realmente não é a sua, siga a vida e procure outra paixão. Só não perca, jamais, a sua inspiração.
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CONFLITOS
contrastes salvador TEXTO E FOTO
Berta Campubrí TRADUÇÃO
Jéssica Adriani DIAGRAMAÇÃO E ILUSTRAÇÃO
Rayanne Bueno
He visto muchas fotos de favelas. Hemos hablado de favelas en clase, en casa y hasta en el bar. He conocido gente que ha vivido en favelas, conozco gente que trabaja en favelas. Sin embrago, des de la ventana del autobús, entrando en la ciudad bahiana de Salvador por la autopista, todas esas favelas apelotonadas unas encima de las otras, todos esos quilos y quilos de tocho juntados con las manos oscuras de sus habitantes, inundan mi conciencia y la sobrecargan de rabia e indignación. Husmeando por el barrio de Brotas, poniendo atención a cada paso, observo la calle que piso y cada calle que ésta atraviesa. Y de repente a mi derecha nace una escalera de abrupta pendiente que transmite aires humildes y lúgubres a la vez. Presintiendo riesgo en la acción, decido descender algunos escalones para comprobar que aquí, entre edificios y comercios de clase media, convive un enorme barrio de favelas de una clase menos media. Se transforman la luz del sol, el ruido urbano y la presencia de la gente. Y mi yo
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Vi muitas fotos de favelas. Discutimos sobre favelas nas aulas, em casa e até no bar. Conheci pessoas que viveram em favelas e outras que trabalham lá. No entanto, pela janela do ônibus, ao entrar, pela estrada, na capital baiana, Salvador, todas essas favelas amontoadas umas encima das outras, todos esses quilos e quilos de tijolos juntados com as mãos escuras dos seus habitantes, enchem minha consciência e me sobrecarregam de raiva e indignação. Caminhando pelo bairro de Brotas, prestando atenção a cada passo, observo a rua que piso e cada uma que esta cruza. De repente, a minha direita nasce uma escada íngreme que transmite um ar humilde e ao mesmo tempo sombrio. Pressentindo um risco em minha ação, decido descer algumas escadas para comprovar que aqui, entre edifícios e comércios de classe média, convive um enorme bairro de favela de uma classe menos média. Se transformam à luz do sol, ao ruído urbano e à presença de gente. E o meu
más responsable y desconfiada discute con mi yo más socialmente consciente y abierta; la primera le dice a la segunda que es arriesgado seguir bajando mientras la segunda le culpa de estar criminalizando a las clases más oprimidas. La primera decide seguir un poco más pero le pide a la segunda que no saque la cámara de fotos. La segunda, la aventurera, saca la cámara y tira cuatro fotos, con lo que la primera empieza a sufrir por su salud. Pasa a mi lado más de un sujeto que me mira extrañado - mi yo desconfiada siente como sus miradas se dirigen apenas y directamente a mi cámara - y des de su pequeña ventana un chico me observa trasmitiendo de todo menos indiferencia. Mi yo temeraria acaba cediendo, me giro e invierto el camino ya hecho. Al pisar el último escalón cambio de dimensión, de vuelta a otra realidad. Aunque la realidad que acabo de pisar me parece más real. Como algo en medio de Praça da Sé, cumpliendo con lo que de mí se espera como tu-
eu, mais responsável e desconfiado, discute com o meu outro eu, mais socialmente consciente e aberto. O primeiro diz ao segundo que é arriscado continuar descendo, enquanto o outro lado o culpa por estar criminalizando as classes mais oprimidas. Um dos lados decide seguir um pouco mais, mas pede ao segundo que não mexa na câmera fotográfica que está guardada. O outro lado, aventureiro, pega a máquina e tira 4 fotos, assim o primeiro começa a sofrer pensando em sua saúde. Passa ao meu lado mais de uma pessoa que me olha de uma maneira estranha, meu eu desconfiado, sente como seus olhares se dirigissem apenas e diretamente à câmera. De sua pequena janela, um jovem me observa, transmitindo de tudo, menos indiferença. Meu eu imprudente acaba cedendo, giro-me e volto pelo caminho já realizado. Ao pisar no último degrau, mudo de dimensão, estou de volta a outra realidade. Mesmo que a outra, pareceu-me mais real. Como algo no meio da Praça da Sé, cumprindo com o que se espera de mim como turista
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rista occidental. Un niño de unos ocho años pide algunos reales para comer. Y de mí se espera que ese niño sea invisible y que no me suponga un gran esfuerzo de conciencia ignorarlo o despedirlo con alguna frase hipócrita. Me levanto y le acompaño al negocio de al lado donde algún salgado me costará pocos reales - quizás no tenga el nivel económico que se espera de un turista occidental -. El niño me dice que le dé el dinero en mano, que él lo conseguirá más barato, pero yo no acepto, sabiendo de qué va el asunto. Su cuerpo huesudo y su cara, sucios, su gesticulación nerviosa y impaciente, el lagrimal de sus ojos irritado y húmedo. Él insiste e insiste en que le dé el dinero hasta que llega a invadirme un sentimiento de culpabilidad por no dárselo. Se lo doy, y se va corriendo. Su comida será una piedra de una sustancia que anula y aleja su capacidad de darse cuenta de su situación y de su hambruna. Y a mí se me pasa toda hambre. Paseo por el centro histórico, el Pelourinho. Adoquines y colores. Y, a pesar de la comercialización turística de la zona, muchos atelieres realmente artesanales. E iglesias neoclásicas, góticas, renacentistas, como pegotes, que nada tuvieron que ver con la ciudad ni con su gente. Cualquiera que me conozca lo confirmará - muchos hasta con desdén -, no puedo pasar por delante de una iglesia, ermita o catedral sin intentar entrar y averiguar de qué siglo, estilo y origen es. Sin embargo, estos templos católicos de Salvador no me llaman la atención, ya sé lo que tengo que saber de ellos. Son de los siglos colonizadores, de estilo imperialista y de origen esclavizador. Los únicos templos que resulta imprescindible que aquí visite son los terreiros de candomblé, que aunque sus raíces tampoco sean de este continente, merecen todo mi interés y respeto. Creo que lo que más me gusta en este mundo, después de disfrutar de algunos placeres inexpresables, es perderme por calles que desprendan historia y leyenda, callejear sola aun-
ocidental. Um menino de uns 8 anos pede alguns reais para poder comer. De mim se espera que ele seja invisível e que não custe muito a mim ignorá-lo e manda-lo embora com alguma frase hipócrita. Levanto-me e o acompanho ao negócio ao lado, onde tenha algum salgado barato – talvez eu não tenha o nível econômico que se espera de uma turista ocidental – o menino me pede que lhe dê o dinheiro, já que ele conseguiria mais barato em outro lugar. Mas não aceito, sabendo por onde iria o assunto. Seu corpo magro e seu rosto sujos, sua gesticulação nervosa e impaciente, o lacrimejar dos seus olhos, irritados e úmidos. Ele insiste para que lhe dê o dinheiro, até chegar ao ponto de me invadir um sentimento de culpa por não dá-lo. Se lhe entrego, ele sumirá muito rápido. Sua comida será uma pedra de uma substância que anula e afasta a capacidade de se dar conta de sua situação e de sua miséria. Quanto a mim, perco toda a fome. Passeio pelo centro histórico, o Pelourinho. Calçadas e cores. Apesar da comercialização turística na área, há muitos ateliês realmente artesanais. Igrejas neoclássicas, góticas, renascentistas, como pegotes, que nada tinham a ver com a cidade nem com a sua população. Qualquer que me conheça confirmará – muitos até com desdém –, que não posso passar por uma igreja, ermitã ou catedral, sem entrar e averiguar de que século, estilo e origem é. No entanto, estes templos católicos de Salvador não me chamam a atenção. Já sei o que tenho que saber deles. São do tempo dos colonizadores, de estilo imperialista e de origem escrava. Os únicos templos que resultam imprescindíveis para se visitar são os terreiros de candomblé, que por mais que suas raízes não sejam deste continente, merecem todo meu interesse e meu respeito. Acredito que o que mais gostei deste mundo, depois de desfrutar de alguns prazeres inexpressáveis, é de perder-me pelas ruas que exalam história e lendas. Pe-
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que sintiendo el contacto de la gente, guiarme apenas por la vista o el presentimiento; girar a la izquierda porque hay un casita de color verde muy autentica o seguir subiendo porque creo que cuando llegue al final de esta interminable cuesta encontraré una placita con una fuente, y al girarme tendré una foto perfecta. Y resulta que eso estoy haciendo cuando me doy cuenta de que me he alejado del Pelourinho, me he salido del mapa que me han dado en la oficina de información turística. Las calles empiezan a estar más deshabitadas y dejadas. Aun así sigo apreciando las características tradicionales y primorosas en los edificios, y me apetece conocer un barrio sencillo al margen de la mayor atracción turística bahiana. Así que deambulo un poco más hasta que un hombre muy amablemente me informa de que, si no lo hace él, alguien me va a robar la cámara o lo que lleve “ahí”, refiriéndose a mi riñonera, que al parecer le resulta graciosa. Está bien, me recojo toda un poco y sigo andando un poco más rápido, ya sin prestar tanta atención a mi entorno, en dirección a una calle más céntrica. Una pena que, no la inseguridad sino la injusticia social, no me permita de hacer en las grandes ciudades de Brasil, una de las cosas que más me gusta en este mundo. Saliendo ya de la ciudad, me invade una sensación muy familiar; no tengo duda de que voy a seguir descubriendo Salvador en otra ocasión.
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rambular sozinha, mesmo sentindo o contato das pessoas. Guiar-me apenas pela vista ou o pressentimento. Ir pela esquerda porque tem uma casinha verde muito autentica, ou seguir subindo porque acho que quando chegar encontrarei uma pracinha com uma fonte e ao girarme terei a foto perfeita. Vejo que estou fazendo isso quando me dou conta de como me distanciei do Pelourinho, sai do mapa que haviam me dado em um ponto de informação turística. As ruas começam a estar mais desabitadas e abandonadas. Mesmo assim sigo apreciando as características tradicionais e preciosas dos edifícios e eu gosto da ideia de conhecer um bairro simples à margem da maior atração turística baiana. Perambulo um pouco mais até que um homem amavelmente me informa que, se não for ele, alguém vai roubar a minha câmera e sugeriu que a guardasse “ai”, referindo-se a minha pochete, que para ele parecia engraçada. Tudo bem, guardo-a e sigo andando um pouco mais rápido, já sem prestar tanta atenção ao entorno, em direção a uma rua mais cêntrica. Uma pena que, não a insegurança mas sim a injustiça social, não me permita fazer nas grandes cidades do Brasil, umas das coisas que mais gosto neste mundo. Saindo da cidade, invade-me uma sensação muito familiar. Não tenho dúvida de que vou seguir descobrindo Salvador em outra ocasião.
CONFLITOS
A fron que ela n達o
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nteira atravessou TEXTO
Maria Rita
DIAGRAMAÇÃO E ILUSTRAÇÃO
Rayanne Bueno
Maria estava de viagem marcada, com a ida quase confirmada. No entanto, num último momento, eis que tudo muda: “você tem que ficar, temos uma demanda grande e ninguém pode te substituir”, avisaram. Maria então passou a borracha em todos os planos que tinha para aquele final de semana. Antes, iria para um assentamento com o pessoal da faculdade, fato novo pra ela, apesar de tantos anos vividos. Maria é pessoa urbana, criada na “cidade grande” (mesmo que na periferia). Só conhece assentamento e o movimento do qual ele faz parte pelo que vê falarem por aí “ah, mas esses aí não querem trabalhar, só querem tomar o que é dos outros!”. Mas ela não compra essa ideia e sabe que as pessoas vivem daquilo ali. Maria ficou, e com ela a vontade de atravessar novas fronteiras, adquirir novas experiências. Soube depois do quanto a viagem havia sido enriquecedora para seus colegas e foi tomada por uma invejinha, mas daquelas boas, que não fazem mal. Inveja do cheirinho de terra, da caminhada que fizeram, das histórias que eles trouxeram na bagagem. Quem sabe numa próxima oportunidade, quem sabe.
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CONFLITOS
Previsão do tempo: chuva, muita chuva TEXTO
Isabela Lacerda
Pingos caem sobre o asfalto. Inundam formigueiros e sapatos já sujos. Quando chove a água do lago do parque baila. A mulher sem guarda chuva, protegida por uma revista, balança uma coreografia apressada, interrompida por uma poça aqui, outra ali. As nuvens carregadas e escuras marcam seu ritmo no palco, impõem sua música. A cidade inteira dança, em meio a pingos, pingos e mais pingos. Pingos caem sobre o guarda-chuva. Barulhinhos incessantes inundam os ouvidos, mas não paro. A rua não para. Os carros não param. Os limpadores de para-brisas andam com seus passos apressados sem chegar a lugar nenhum. A rotina cai até sobre aqueles que, humildemente, achei que não tivessem rotina. Como Lenine me disse: a vida não para. O caminho aumenta a cada passo. A chuva deixa a gente mais letárgico, saudoso, molhado daquele jeito gelado que dói na alma. Daquele jeito que qualquer coisa ou pessoa é sinônimo de calor. Chuva é um jeito de unir as pessoas: de baixo do guarda-chuva, da vitrine da loja ou grudado num abraço quente e lento. Pingos caem sobre os buracos. E se acumulam, e se unem – num abraço apertado – pra virar poça. O buraco agora nem é buraco, é piscina de gente pequena. Piscina improvisada, suja e maltratada. Mas é piscina. É uma tentativa mal sucedida de virar uma coisa maior, crescer na vida, subir de cargo. Pingos caem pela janela. Agora do lado de fora. As gotinhas fazem um balé moderno. E entre piruetas, pontas e pliês, a visão distorce. O vizinho ao lado some e tudo vira um borrão de cores. Cores que não existiam na aquarela da janela do meu apartamento. Quando chove tudo dança, até a visão romântica da gente.
DIAGRAMAÇÃO E FOTO
Rayanne Bueno
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CONFLITOS
bl n EN
lanca negro I GNORANCIA
EL MI STICISM O
TEXTO E FOTO
Berta Campubrí TRADUÇÃO
Berta Campubrí DIAGRAMAÇÃO
Vinicius de Morais
Existen la aceptación, la asimilación, el respeto, la integración, la admisión, la aprobación, el asentimiento, la tolerancia, la conformidad, el aplauso, el acogimiento. Existen mil maneras de formar parte de algo. Pero todas esas aptitudes, cualidades y acciones, están muy lejos del concepto, el nivel, que yo no conseguí lograr. La comprensión. El entendimiento. Vi - y cuando digo aquí vi, quiero decir que acepté, asimilé, respeté, integré, admití, aprobé, asentí, toleré, me conformé, aplaudí, acogí – y presencié con toda mi presencia un ritual de iniciación de Candomblé, una religión de matriz africana, derivada del animismo, que trajeron para el Brasil la comunidad de esclavos africanos. Des de las vestimentas, hasta los gestos de los participantes y desde la música hasta el olor del lugar, pertenecían a otra etnia, a otra cultura que yo no he tenido el placer aun de explorar. Y es esa precisamente, mi ignorancia occidental-europea-blanca de tradición ateo-cristiano-judaica, la que no me permitió entrar en la energía y la dimensión que ese culto desprendía. La que, por el momento, no me permite comprender el misticismo de esta práctica tan apasionante. Delante mí había tres hombres que estaban a punto de convertirse en hijos de santo, hijos de Orishas, las identidades ancestrales que guían y protegen a los creyentes y practicantes de esta tradición. Una pluma roja en la frente atada con una pequeña cuerda. Un bulto pintado de negro en medio de la cabeza rapada, fabricado con distintas sustancias propias - orina, pelos, esperma , rodeado de tres líneas circulares, una blanca una azul y otra negra. Puntos de un color blanco roto trazados sin delicadez en su cara y en su torso y una estrella de seis puntas pintada con el mismo material pastoso en la espalda. Abundantes ropas blancas y pies descalzos. El primero llevaba en su mano una pequeña hacha doble, el objeto que acompaña nor74
Existem a aceitação, a assimilação, o respeito, a integração, a admissão, a aprovação, o consentimento, a tolerância, a conformidade, o aplauso, o acolhimento. Existem mil maneiras de formar parte de algo. Mas todas essas atitudes, qualidades e ações, estão muito longe do conceito e nível, que eu consegui alcançar. A compreensão. O entendimento. Vi – e quando digo aqui que vi, quero dizer que aceitei, assimilei, respeitei, integrei, aprovei, assenti, tolerei, me conformei, aplaudi, acolhi – e presenciei com toda a minha presença um ritual de iniciação Candomblé, uma religião de matriz africana, derivada do animismo, que trouxe para o Brasil a comunidade de escravos africanos. Desde as vestimentas, até os gestos dos participantes, e desde a música até o cheiro do lugar, pertenciam a outra etnia, a outra cultura que eu não tive ainda o prazer de explorar. E é essa precisamente, minha ignorância ocidental-europeia-branca de tradição ateu-cristã-judaica, a mesma que não permitiu entrar a energia e a dimensão que esse culto desprendia. A que, no momento, não me permite compreender o misticismo dessa prática tão apaixonante. A minha frente havia três homens que estavam a ponto de se converterem em filhos de santo, filhos de Orixá, as identidades ancestrais que guiam e protegemos crentes e praticantes desta tradição. Uma pena vermelha na frente, atada com uma pequena corda. Um calombo pintado de preto no meio da cabeça raspada, fabricado com diferentes substâncias próprias – urina, cabelos, esperma – , rodeado de três linhas circulares, uma branca, uma azul e outra preta. Pontos de uma cor branca quebrada traços sem delicadeza em sua cara e em seu torso e uma estrela de seis pontas pintadas com o mesmo material pastoso nas costas. Abundantes roupas brancas e pés descalços. O primeiro levava na sua mão um pequeno machado duplo,
malmente a Xangó, orishá de la justicia. El segundo y el tercero acarreaban una rama de algún árbol, y un cuarto individuo los guiaba, aunque des de detrás, con un bastón un tanto especial, plateado y con decorados que, colgando, hacían un ruido estridente al avanzar; el bastón de Oxalá, el orishá blanco, de la pureza. Resulta increíble darse cuenta que cada uno de estos detalles que describo tienen un porqué, un motivo, una explicación, que se remontará seguramente a un pasado legendario, a la naturaleza y a una interpretación espiritual propia. Y es impresionante como, mientras a mí todo este embrollo me puede hasta parecer un disfraz, para ellos tiene un significado y una utilidad imprescindibles. Mientras a mi me causaría cierta repulsión llevar incrustada en mi cabeza una masa hecha a base de elementos que el cuerpo humano ha expulsado, para ellos esa es una práctica ordinaria llena de significado. Nótese esta dialéctica, que estoy construyendo no inconscientemente, entre el yo y el ellos, pues esa es la dialéctica más común entre los ignorantes. Avanzaban los cuatro, con la cabeza y el torso totalmente encorvados hacia el suelo, posición que hacía difícil ver su expresión facial; tenían los ojos cerrados y la boca tensa, pues estaban recibiendo, o incorporando su orishá. Eso significa que esos cuatro seres no eran ellos mismos en esos momentos, me encontraba observando apenas sus cuerpos, sus almas se ausentaban para dejar sitio al orishá que les reclamaba, estaban poseídos de algún modo por una de estas identidades. 76
o objeto que acompanha normalmente a Xangô, orixá da justiça. O segundo e o terceiro carregava um ramo de alguma árvore, e o quarto indivíduo os guiava, embora atrás, com um bastão um tanto especial, prateado e com enfeites que, suspensa, fazia um ruído estridente ao avançar, o bastão de Oxalá, o orixá branco, da pureza. É incrível se dar conta que cada um desses detalhes que descrevo tem um porquê, um motivo, uma explicação, que se remontará seguradamente a um passado legendário, a natureza e a uma interpretação espiritual própria. E é impressionante como, enquanto para mim todo essa embrolho me pode até parecer uma fantasia, para eles tem um significado e uma utilidade imprescindível. Enquanto me causaria certa repulsa levar incrustada na minha cabeça uma passa feita a base de elementos que o corpo humano expulsou, para eles essa é uma prática comum cheia de significados. Se nota essa dialética, que estou construindo no inconsciente, entre o eu e o eles, pois essa é a dialética mais comum entre os ignorantes. Avançavam os quatro, com a cabeça e o torso encurvados até o chão, posição, posição que tornava difícil ser sua expressão facial; tinham os olhos fechados e a boca tensa, pois estavam recebendo, ou incorporando seu orixá. Isso significa que esses quatro seres não eram eles mesmos nesses momentos, me encontrava observando apenas seus corpos, suas almas se ausentavam para deixar lugar ao orixá que os reclamava, estavam possuídos de algum modo por uma dessas entidades.
Cada uno de ellos iba con una acompañante que les guiaba, - y hasta les secaba el sudor -, en un circulo que estaba formado también por unas treinta mujeres que lucían unos vestidos majestuosos blancos que exageraban sus formas robustas, y aumentaban significativamente sus traseros. Avanzaban todos bailando y cantando al ritmo de una percusión potente, que tomaba una pausa cada varios minutos siguiendo un patrón. Todo ritmo comenzaba con una primera frase cantada por el hombre que tocaba el tambor más importante, el atabaque, contestada al unísono por todos los ocupantes de la sala, participantes del ritual y observadores activos. Cada uno de estos ritmos, con frase y coreografía distintas está dedicado a un orishá en concreto. Y así iban avanzando, bailando y cantando en círculo. Y esta parte del ritual quizás duró una hora y media o dos. Lo que me propongo describir a continuación es algo que no tan solo no he podido comprender sino que tal vez tampoco he podido asimilar, integrar, admitir, aprobar, asentir, tolerar etc. Durante todos esos minutos mi atención se veía alterada, de vez en cuando, por la extraña actitud de alguno de los asistentes. El primero fue un hombre de entre el público, con facciones africanas pero de piel clara, alto y fuerte, vestido con pantalón de punto y camisa blancos, su cuello a rebozar de collares de bolas colores, símbolos de sus identidades. De pié estando, y sin que nada ni nadie mas que la fuerza del ritual en sí interactuará con él, sus ojos empezaron a girar y a quedarse en blanco mientras las bolsas de su nariz se abrían y cerraban frenéticamente, su cuerpo entero estaba tenso. Ya había sido informada previamente de que eso podía acontecer, pero me cogió desprevenida, no pensaba que llegaría a verlo: el chico estaba entrando en trance, estaba recibiendo, incorporando un orishá, como los
Cada um deles seguia com um acompanhante que os guiava – e até lhes secava o suor –, em um círculo que estava formado também por umas trinta mulheres que exibiam uns vestidos majestosos brancos que exageravam suas formas robustas, e aumentavam significativamente seus traseiros. Avançavam todos bailando e cantando ao ritmo de uma percussão potente, que pausava a cada vários minutos seguindo um padrão. Todo ritmo começava com uma primeira frase cantada pelo homem que tocava o tambor mais importante, o atabaque, contestava ao uníssono por todos os ocupantes da sala, participantes do ritual e observadores ativos. Cada um desse ritmos, com frase e coreografia diferentes, está dedicado a um orixá em concreto. E assim iam avançando, dançando e cantando em círculo. E esta parte do ritual provavelmente durou uma hora e meia ou duas. O que me proponho a escrever em seguida é algo que não apenas não pude compreender como também que talvez tampouco consegui assimilar, integrar, admitir, aprovar, assentir, tolerar etc. Durante todo esses minutos minha atenção se via alterada, de vez em quando, pela estranha atitude de algum desses assistentes. O primeiro foi um homem entre o público, com feições africanas, mas de pele clara, alto e forte, vestido com calça de pontos e camisa branca, seu pescoço transbordando de colares de bolas coloridas, símbolos de suas identidades. De pé, e sem que nada nem ninguém além da força ritual que interagia com ele, seus olhos começaram a girar e a ficar brancos, enquanto as bolsas de seu nariz se abriam e cerravam freneticamente, seu corpo inteiro estava tenso. Já havia sido informada previamente de que isso podia acontecer, mas me pegou desprevenida, não pensava que chegaria a vê-lo: o rapaz estava entrando em transe, estava recebendo, incorporando um orixá, com os 77
que estaban siendo iniciados solo que espontáneamente. Y lo mismo pasó con la mayor parte del personal de la sala a lo largo de todo el ritual. Algunos hasta empezaban a emitir ruidos onomatopéyicos y gestualizaban de un modo que no sabría definir. Tribal? Cuando eso pasaba alguien del terreiro acompañaba a esa persona a alguna sala que quedaba fuera de mi campo de visión, y al cabo de unos minutos volvían, sintiendo de nuevo su cuerpo y su alma juntos. Más adelante en el ritual, la intensidad de esas energías y esa fuerza - precisamente esa dimensión en la que no llegué a entrar - eran tales, que varios asistentes entraban en ese trance a la vez. De modo que se normalizaba ese estado físico en la sala. En esos momentos yo observaba con los ojos pero no con mi capacidad interpretativa ni intelectual. Creo que aun no sé muy bien como procesar esa información. En la segunda parte del ritual los cuatro protagonistas salieron de la sala principal del terreiro. Y uno detrás del otro fueron entrando de nuevo en la sala, ahora con una vestimenta más característica de cada uno de los orishás a los que pertenecían. Lo que me llamó más la atención – y, por qué no admitirlo, también la repulsión - fue que, allí donde anteriormente había ese bulto negro fabricado con esa masa sustancial, ahora había varias plumas blancas de algún ave enganchadas a la cabeza con lo que parecía ser sangre de ese mismo animal. Algo que me resultó muy desagradable, casi espeluznante en un primer momento y aun más infecto cuando lo pensaba mejor. Pero, de nuevo, el sentido que para ellos tienes esa práctica es muy difícilmente comprensible para mí. El circulo ya se había deshecho, ahora todas las mujeres bailaban más desordenadamente en la sala, muchas de ellas incorporando su orishá, y, después de que el primer iniciado hubiese entrado y dado algunos pasos al ritmo de una música aun más estridente, se creó un silencio en la sala. Un silencio roto por un grito enérgico muy particular - claro está, igual que con los demás cantos, se expresaban en una lengua que mis sistemas de referencia occidentales no pudieron descifrar - proveniente del protagonista del momento.
que estavam sendo iniciados só que espontaneamente. E o mesmo aconteceu com a maior parte das pessoas da sala ao longo de todo o ritual. Alguns até começaram a emitir ruídos onomatopeicos e gestualizavam de um modo que não sabia definir. Tribal? Quando isso passava alguém do terreiro acompanhava essa pessoa a alguma sala que ficava fora do meu campo de visão, e ao final de alguns minutos ela voltava, sentindo de novo seu corpo e sua alma juntas. Mas para frente do ritual, a intensidade dessas energias e essa força – precisamente essa dimensão em que não cheguei a entrar – eram tais, que vários assistentes entravam nesse transe às vezes. De modo que se normalizava esse estado físico na sala. Nesses momentos eu observava com os olhos, mas não com minha capacidade interpretativa e nem intelectual. Acredito que ainda não sei muito bem como processar essa informação. Na segunda parte do ritual os quatro protagonistas saíram da sala principal do terreiro. E um detrás do outro foram entrando de novo na sala, agora com uma vestimenta mais característica de cada um dos orixás a que pertenciam. O que mais me chamou a atenção – e, porque não admitir também a repulsa – foi que, ali onde anteriormente havia essa crosta negra fabricada com essa massa substancial, agora havia várias plumas brancas de alguma ave penduradas na cabeça com o que parecia ser sangue desse mesmo animal. Algo que me pareceu muito desagradável, quase repugnante num primeiro momento e ainda pior quando pensava melhor. Mas, de novo, o sentido que para eles tem essa prática é muito dificilmente compreensível para mim. O círculo já se havia desfeito, agora todas as mulheres dançavam mais desordenadamente na sala, muitas delas incorporando algum orixá, e, depois de que o primeiro iniciado havia entrado e dado alguns passos ao ritmo de uma música ainda mais estridente, se criou um silêncio na sala. Um silêncio quebrado por um grito enérgico muito particular – claro está, igual como os demais cantos, se expressavam em uma língua que meus sistemas de referências acidentais não puderam decifrar – proveniente do protagonista do momento.
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Un grito celebrado con aplausos y gritos por todo el público, que lanzaba pétalos de alguna flor blanca encima de él. A partir de ese momento el hombre ya estaba iniciado en Candomblé, ya era Filho de santo. Y eso, el silencio, el grito, el aplauso, los pétalos, se repitió con los tres individuos. Después de unas cuatro horas de haber entrado en el terreiro de Gantois, salí de ahí con una especie de mezcla entre tensión y fascinación. Con muchas preguntas y muchas inquietudes y sobre todo, con ganas de que me diera el aire fresco; ahí dentro el aire tenía que estar por fuerza hecho de otros componentes. Mi alucinación y mi ignorancia, cogidas de la mano, se resignaron a no poder llegar ni a interpretar lo que acababan de presenciar. Lejos de comprender, me faltaban herramientas para descodificar. Charlé a la salida con algunos de los que habían formado parte de aquello, descifré algunas cosas, muy básicas, y aclaré algunas otras, muy elementales, pero es que hasta me costaba formular preguntas, a mí! Quizás tratándose de algo un poco menos alienígeno habría seguido cuestionando y sugiriendo posibilidades, pero decidí aparcar el tema a un lado de la memoria, hasta encontrar un día en que sintiera que podía abrir ese cajón y seguir descifrando esa vivencia. Tal vez con tiempo y más experiencias de este tipo, la repulsión y la sensación alarmante que me provocan ahora ésta fe desaparezcan, y la comprensión y el entendimiento llamen a la puerta, pasando así a ver el Candomblé como una religión, un universo simbólico simplemente distinto y diverso, con total naturalidad. Con estos contactos iniciales me parece un universo interesantísimo pero alarmante. Me parece un terreno en el que sumergirme me aportaría riqueza y conocimiento, una esencia diferente y terrenal, pero que a la vez podría causar en mí una bomba de energías que podría no saber direccionar. Es eso: una fuerza nueva, distinta y quizás incontrolable contra mi racionalidad. 80
Um grito celebrado com aplausos e gritos por todo o público, que lançava pétalas de alguma flor branca sobre ele. A partir desse momento o homem já estava iniciado no Candomblé, já era Filho de santo. E isso, o silêncio, o grito, o aplauso, as pétalas, se repetiram com os outros três indivíduos. Depois de umas quatro horas de ter entrado no terreiro de Gantois, sai dali com uma espécie de mescla entre tensão e fascinação. Com muitas perguntas e muitas inquietudes e sobre tudo, com vontade de que me dessem ar fresco; ali dentro o ar tinha que estar por força feito de outros componentes. Minha alucinação e minha ignorância, se davam as mãos, se resignaram no poder de chegar a interpretar o que acabavam de presenciar. Longe de entender, me faltavam ferramentas para decodificar. Falei na saída com alguns dos que haviam formado parte daquilo, decifrei algumas coisas, muito básicas, e aclarei algumas outras, muito elementares, mas é que até me acostumava a fazer perguntas, a mim! Quiças tratando de algo um pouco menos alienígena teria continuado questionando e sugerindo possibilidades, mas decidi congelar o tema na memória, até encontrar um dia em que sinta que poderia abrir essa caixa e seguir decifrando essa vivência. Talvez com tempo e mais experiências desse tipo, o estranhamento e a sensação alarmante que me provocam agora esta fé desaparecerão, e a compreensão e o entendimento chamem a porta, passando assim a ver o Candomblé como uma religião, um universo simbólico simplesmente distinto e diverso, como total naturalidade. Com estes contatos iniciais, me parece um universo interessantíssimo, mas alarmante. Me parece um terreiro em que o que submerge me traria riqueza e conhecimento, uma essência diferente e terrena, mas que poderia causar em mim uma bomba de energias que poderia não saber direcionar. É isso: uma força nova, diferente e quiças incontrolável contra minha racionalidade.
TRILHAS
TRILHAS
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Estudantes de jo Cidade de Goiรกs no en de Fronteiras: uma m
alavra nas fronteiras da
ornalismo realizaram uma trilha Interpretativa na ncerramento das atividades da Disciplina Culturas metodologia de aprendizagem fora da sala de aula.
TEXTO
Angelita Lima FOTOS
Nilton Rocha
DIAGRAMAÇÃO
Vinicius de Morais
Fazer trilha é costurar fronteiras. As que separam a cidade e o campo. As que distanciam a intenção do gesto; o corpo da alma; palavra da ação. A existência, sob o comando do capital, tornou-se fracionada e condenada à autosuficiência. Mas, a vida não é assim. Ela é múltipla - ocupa diferentes lugares e territórios; sobrepõe tempos e vivências -, e é totalmente dependente do outro, da existência de outros. Quando nos propusemos realizar uma Trilha Interpretativa¹ na cidade Goiás, no âmbito da disciplina Cultura de Fronteiras (Jornalismo/UFG), ministrada pelo professor Nilton José no segundo semestre de 2013, a intenção foi transitar entre as fronteiras existenciais do grupo de estudantes do curso de Jornalismo, que estão se preparando para serem narradores da vida. Por isso, quisemos transpassar as fronteiras da palavra, dos sentidos e dos significados. Não deu outra! Mal começamos a caminhar pela cidade (ver roteiro) e as nossas energias começaram a sair do lugar, a circular do chão para o corpo, do corpo para as palavras, das palavras para os gestos. A Cidade de Goiás foi emblemática para essa trilha, pois ela é mãe, é berço que embala a história do Estado; é ninho do movimento social camponês; é patrimônio cultural de nossa memória. Começamos a fazer uma interpretação das fronteiras das palavras em frente ao cemitério da cidade. A memória e saudação dos antepassados, e dos nossos queridos mortos, marcaram trechos percorridos em trilha e ajudaram na conexão das fronteiras. Quando terminamos, na fonte da Carioca, à beira do Rio Vermelho, éramos ¹ Esta atividade foi desenvolvida em parceria com o Projeto de Extensão “Trilhas Interpretativas e Conexão de Saberes”, coordenado pelo prof. Eguimar Felício Chaveiro.
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outras pessoas. Não mais desconhecidos, não mais donos da verdade. Éramos um grupo coeso em afeto e segurança. Éramos capazes de perdoar e de render louvores à água que já foi ouro e permanece memória. O sujeito é carregador de lugares e de tempos A primeira estação Sujeito e lugar são conexões basilares da existência. Pois convém reparar: não há o sujeito sem o lugar nem há lugar sem o sujeito. Ser sujeito significa constituir a minha existência num determinado espaço e tempo. Onde estou? Onde nasci? Por que estou aqui? O que significa viver em Goiânia? Estudar no Campus II da UFG? O lugar é onde a vida acontece e é constituído dos porquês desse acontecimento. Ou seja, o lugar só é lugar porque nele há relações sociais (políticas, econômicas, amorosas, afetuosas). Os sabores e os dissabores são tecidos nos lugares. A memória, também, é bordada pelos lugares. O lugar (e suas relações) sustenta a memória, os resíduos da do vivido. Por isso, o lugar revela o sujeito. É no lugar que se ergue o sujeito ou se anula. Sua glória ou sua subordinação O lugar mostra o sujeito na sua singularidade e especificidade. E o sujeito constroi o lugar pela ação consciente ou residual. E nele torna-se potência. Pensar o lugar como o lugar da existência e do suporte para o sujeito é considerar a sua dimensão tensa e conflituosa, sua dimensão territorial e política; de prazeres e disputas. Parados aqui nesse lugar que denominamos “Estação Sujeito e Lugar” olhamos para nós mesmos e nos perguntamos: Quais conteúdos desse lugar age em mim? E quais lugares eu carrego no meu tempo de existência?
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Oração ao Rio Vermelho - A última estação
Às suas margens, nos dobramos à sua magnitude e agradecemos sua força e resistência para continuar sendo o território de nossa história, o berço que nos embala para o futuro. Agradecemos à sua arte de carpintaria que entalha e emoldura nossas cidades, nossos campos e nossa vida. Agradecemos ao rio-paisagem de nossas memórias, por sua sutileza e discrição ao guardar em seu leito nossos pecados e nossas confissões. Agradecemos ao rio, patrimônio de nossos avós pelos bons momentos que pudemos viver aqui hoje.
Trilha interpretativa como método de aprendizagem
A trilha interpretativa é uma forma de aprendizagem fora da sala de aula. A proposta é aprender como corpo, aprender caminhando coletivamente. A utilização das Trilhas Interpretativas como uma estratégia formativa cumpre um papel de facilitador e motivador para a troca de saberes entre a academia e o movimento social. Essa metodologia tem sua origem na tradição oral dos programas educativos dos Parques Nacionais dos Estados Unidos, do final da década de 1950. O filósofo e dramaturgo estadunidense, Freeman Tilden, foi um dos responsáveis pela sistematização da interpretação ambiental. O método consiste numa atividade educativa-comunicacional reveladora de significados e interrelações por meio da utilização de objetos originais e do contato direto com as rugosidades da paisagem. Desde 1950, as trilhas interpretativas fazem parte das práticas pedagógicas formais e informais em escolas, universidades, parques temáticos, ONG’s e outras entidades, apresentando-se como uma alternativa metodológica capaz de promover uma atividade que aproxima os sujeitos de uma realidade invisível em seu cotidiano, uma realidade que não é percebida, sentida e vivida. Interpretar é, portanto, um elemento essencial nas trilhas. A intenção é que, ao trilhar, o sujeito interaja com o ambiente e consiga perceber por meio da paisagem que o lugar está carregado de significados e, por conseguinte, é fruto do processo de construção histórico, social, espacial e cultural das relações e ações humanas. Nestes termos, as trilhas interpretativas apresentam-se como uma metodologia capaz de estreitar relações humanas e produzir conhecimento e pertencimento sobre (e dos) lugares. Os recursos pedagógicos e metodológicos das trilhas não só viabilizam ações eficientes, como também têm sua viabilidade de execução favorecida pela simplicidade das técnicas interpretativas e comunicacionais empregadas. Vale ressaltar que o conhecimento aprofundado do lugar a ser trilhado é fundamental. Por isso, em se tratando de trilhas, o ensino e a pesquisa, além de precederem à prática propriamente dita, fazem parte do processo de construção da ação de extensão da universidade.
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A trilha interpretativa é um percurso de caminhada orientado metodologicamente com o objetivo de levar cada participante a trilhar (caminhar coletivamente) em busca da interpretação, do conhecimento, da relação entre homem e ambiente, seja ele qual ele for: uma cidade, um campo ou uma floresta. Espera-se que a trilha interpretativa produza um movimento de aprendizagem, como num impulso corpóreo de percepção, que permite enxergar a paisagem e o espaço visitados, analisados e estudados. A trilha como uma ponte que aproxima e interliga estudantes trilheiros aos saberes, as experiências, às vontades, sensações e aos pensamentos em relação ao lugar estudado. A trilha interpretativa tem uma singularidade didática. Basicamente se resume em levar o grupo a caminhar um trecho de aproximadamente um quilômetro com mais ou menos cinco pontos de parada, ou estações, como denominamos. Cada parada cumpre um objetivo pedagógico temático e corporal. Isto é, a cada parada faz-se a apresentação do tema (pode ser um problema social, uma categoria geográfica ou científica, ou uma referência espacial) previamente preparado pelos coordenadores de cada parada. Utiliza-se da posição geográfica e do corpo em descanso para realizar reflexões e chegar ao conhecimento, o que chamamos de vivência. Fazer uma trilha interpretativa como alternativa pedagógica para educação é propiciar aos estudantes, professores e/ou qualquer participante uma visão integrada do tema proposto na trilha. Pois “A trilha” é um instrumento que une o corpo, a paisagem e os sentidos. Pelo exposto, pode-se afirmar que as trilhas interpretativas permitem ampliar o olhar sobre a multiplicidade de signos e símbolos que permeiam as paisagens das grandes cidades que, ou são ignorados, ou passam despercebidos diante dos olhos de grande parte dos sujeitos que transitam por elas cotidianamente. Em grande medida, isso ocorre em função da vida acelerada e atribulada inerente aos moradores das metrópoles que há muito deixaram de viver no que Santos (2008) caracteriza enquanto “tempo lento”. Ora, se as próprias existências não percebem, ou não lançam olhares a esta diversidade cultural, o que se dirá do turista, quer é um transeunte em meio a um mundo de novidades que ofuscam o ver, o perceber e o sentir. 90
Ressalta-se, novamente, que a trilha interpretativa é um instrumento metodológico capaz de criar envolvimento cultural e comprometimento afetivo, uma vez que elas promovem o encontro de diferentes instituições, existências e trajetórias, fomentando distintos olhares sobre o lugar, a existência e as mudanças espaciais e territoriais. Por meio das trilhas interpretativas, o conhecimento humano pode ser explorado nas suas diferentes composições culturais, tais como a escolar, popular, religiosa, alternativa, bem como as culturas (re) significadas e os patrimônios materiais e imateriais. Ao extrapolar os muros das instituições, as trilhas interpretativas promovem o (re) encontro dos diferentes agentes socioculturais em espaços urbanos de relevante significação histórica, política, espacial e cultural, proporcionando elementos que contribuem na ampliação do olhar sobre os lugares e suas relações.
TRILHAS
memorias de uma
crianca TEXTO
Lohany Arnos FOTO
Jéssica Chiareli
DIAGRAMAÇÃO
Vinicius de Morais
Memórias são a base de todas as coisas boas que estão no coração. Lembranças do passado, do tempo de criança, vivência esquecida que uma rua, uma árvore ou até uma caminhada, nos fazem recordar. Retornar à cidade de Goiás, depois de anos, trouxe sensações que fizeram emergir em mim uma garotinha, descobrindo um livro que conta a história de um mundo novo. Por que as ruas da cidade são de pedras quadradas e não de asfalto? Por que as ruas são tão estreitas e íngremes? Por que as casas têm uma arquitetura que ela nunca viu? Essa garota, aliás, nem sabia o que era arquitetura. Ela se sentia “Alice no país das maravilhas”, caminhando por uma trilha de descoberta, trocando memórias e experimentando coisas novas. A conectividade com a natureza, com os ancestrais, com os mortos e com as pessoas a fez lembrar de quem ela foi um dia. A curiosidade não mudou, mas as memórias estavam esquecidas e abandonadas, precisavam de algo para ser ativadas. As fronteiras foram ultrapassadas, e a menina surgiu, com um olhar questionador, procurando respostas em tudo. Olhos negros e grandes, procurando saber a história daquele povo, daquela cidade, foram guiados por uma conterrânea que ama suas raízes, que tem orgulho de pertencer à cidade de Goiás. A geógrafa Cinara conduziu o grupo por caminhos desconhecidos por turistas. Falando com amor da parte mais pobre da comunidade, do bairro Alto Monte conhecido como “chupa osso” e seus mistérios. A energia que fluia de cada um, a roda e o trabalho em equipe, fizeram dessa experiência algo marcante em minha vida. Todos tinham um conhecimento para compartilhar: o poder das folhas de algodão, sua manga favorita... Até algo que vivi no teatro pude ver se repetir na trilha, a brincadeira da sombra se parece muito com a do espelho. Todos repetem o mesmo que o primeiro da fila faz, isso demonstra uma entrega total do grupo. Voltamos a ser crianças, cada um tem sua vez de ser o mestre e guiar. O primeiro nos faz marchar, o segundo girar, o terceiro pular e com essa alegria percorremos a ladeira. O sol quente aquece nossa alma, enquanto o riso ilumina o rosto. Todos fazem novamente a roda, cruzamos o barbante com o outro e dizemos porque ele nos encanta. No final todos fazem um agradecimento ao rio, que o calor vai refrescar.
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TRILHAS
Veredas alternativas pela
Cidade de Goiás TEXTO
Adriana Rodrigues ILUSTRAÇÃO
Heitor Vilela DIAGRAMAÇÃO
Rayanne Bueno
O cemitério - Ponto de partida Os mortos nos trazem lembranças, lembranças nos trazem os mortos Lembranças nos trazem lugares, lugares nos trazem lembranças. Lembranças de quem e do que somos, lembranças do que vivemos Lembranças de quem e do que amamos, lembranças do que repudiamos Lembranças do que aprendemos Lembrança de que um dia morreremos. 94
Gabriel Eu sei quem sou por causa do outro Eu sei quem sou por causa do lugar O outro não existe sem mim Nós não existimos sem o lugar Carregamos alteridades, lugares e tempos Carregamos recordações e memórias Olhar curioso de criança A vida a nos observar Revivemos épocas, momentos, a saudosa infância Cantamos canções, contamos histórias.
Árvore de significados Caminhando a passos lentos Com reflexões no pensamento Direcionamos o nosso olhar Entre tantas possibilidades, que folha vou pegar? Folhas dançantes ao vento Folhas verdes, folhas de chá Folhas murchas, folhas secas Com o passar do tempo Folhas do conhecimento Folhas flores, folhas de sabedoria Folhas que revelam culturas Folhas que revelam lembranças Folhas a nos conectar.
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A periferia e os ossos Subimos e descemos ladeiras Sob o sol a escaldar Reconhecemos e identificamos fronteiras A nos unir e a nos separar Lugar de conflitos, lugar de confrontos Lugar de palavras, lugar de encontros Pela palavra hå vida Na vida, confluências a poetizar Intimidade, diferença, cultura Liberdade, criatividade, ternura Aprendemos fronteiras atravessar.
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Interpretando a trilha Em veredas alternativas estamos a andar Eu sou a sombra do outro A sombra do outro está a me imitar Corremos, dançamos, pulamos Gargalhando, gestos inventamos, a brincar E brincando, aprendemos Que temos muito a ensinar Que seguir a estrada da vida É mais divertido com alguém a acompanhar
Subvertemos as fronteiras, ressignificando-as Identidade e culturas estão a transitar Contemplando, interpretando e experienciando Pessoas, ruas e a natureza a nos cercar Amizades e lições que não esqueceremos jamais Contraditórios e raros tesouros encontramos Nas veredas alternativas de Vila Boa de Goiás.
TRILHAS
dan F
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TEXTO
Elisama Ximenes FOTOS
Nilton Rocha
DIAGRAMAÇÃO
Rayanne Bueno
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Era manhã de sexta-feira, pelas ruas da Cidade de Goiás pisavam uns pares de pernas curiosos e ansiosos pelo início da jornada. Ali era um pedaço do antigo estado, não é a toa que antes a cidade chamava-se Goiás Velho. As casinhas históricas que faziam paisagem ao início da caminhada denunciavam o porquê. Mas os novos olhos arregalaram e começaram a se encantar mesmo quando o guia os levou para uma parte menos popular da cidade. De fato, muitos deles já tinham tido contato com o lugar. Eventos culturais já os motivaram a estar ali antes. Porém, seus pés só conheciam os paralelepípedos e seus olhos as casinhas minimalistas e tradicionais. Foi sagaz da parte do guia levá-los à parte em que o chão variava entre asfalto e barro vermelho – típico do cerrado. As casas, agora, já não eram baixinhas, coloridas e de arquitetura clássica. A arquitetura era mais atual, porém simples com paredes ainda no concreto. De um lado, estavam as árvores distorcidas. Umas enfeitadas de cajus; outras, de manga; e, no chão, folhas caídas. Do outro, as casas simples com varais repletos de roupas, compondo a fachada.
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Em fila indiana, os andarilhos descobriam, relembravam, cantavam e admiravam. Vez em quando paravam e conversavam sobre o que viam e sentiam. E era impressionante como que, ainda que vivendo a mesma experiência, as percepções variavam. Aquelas pessoas que estavam ali para estudar fronteiras, de repente, eram a própria fronteira. Tinha sido isso desde o início da caminhada, primeiro entre a cidade turística e a cidade periférica e, depois, entre a cidade periférica e a mata. Só que compunham uma fronteira diferenciada. Eram dessas que não são fixas, migram e dançam em ziguezague. Trazendo um pouco de lá pra cá, de cá pra lá. Pouco antes do fim da jornada, cada um escolheu uma folha que encontrou no meio do caminho. Era curioso perceber como aquelas folhas conseguiam resumir aquele território tão dividido cultural e fisicamente. Talvez a explicação seja justamente dessa dança feita pela própria fronteira andarilha. Dança que não homogeneizou – ainda bem que não –, mas que, no vai-e-vem de pedacinhos do outro lado, conseguiu captar a essência daquela velha cidade no meio de Goiás. b
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PARTILHAS
PARTILHAS
Janaína menina
TEXTO E VÍDEO
Adriana Rodrigues FOTOS
Elisama Ximenes
DIAGRAMAÇÃO
Rayanne Bueno
Os olhos negros de Janaína curiam a chegada das visitantes, há uma recíproca estranheza no ar, mundos a desvelar. Janaína assiste a um filme, pinta as unhas e ainda conversa com universitárias recém-chegadas, o gelo a derreter-se. Pela terra, Janaína e as estudantes embarcam numa viagem rumo ao conhecer-se, da qual ninguém volta sem estar modificado. As meninas ansiosas por explorar fronteiras, talvez as próprias, precipitam-se com muitas perguntas, mas o primo de Janaína, William, que a princípio parece tímido, torna a conversa mais natural. A parcela é o cenário para descobertas e trocas. Mói-se cana, chupa-se cana e o pó da terra vai grudando na sola dos pés. Ao anoitecer, pela estrada, Janaína e William contam para as meninas as adversidades e as alegrias de morar na fazenda, da luta pela terra, da época das barracas de lona, as dificuldades com o ônibus que os leva a escola. Na passagem pela plantação de eucaliptos realizam-se infantes desejos. Chegam à casa de dona Maria. A senhorinha e o marido redescobriram o prazer de viver na roça, trocaram a agitação de Goiânia pelo sossego do campo. O passado ressuscita na voz de dona Maria em contos sobre a mocidade. O cricri do grilo embala a prosa. Criada a afeição, dona Maria insiste que as universitárias voltem a visitá-los. Sob o céu enluarado, os jovens tornam para casa com planos para o dia seguinte. Janaína, William e as meninas confabulam como amigos desde sempre. Pés nas fronteiras, de todos. De manhã, a mata é mistério, mas Janaína a conhece muito bem e guia as estudantes pelos trieiros até o pedaço de natureza verde e vivo. Trieiros recortados de histórias da represa proibida, trieiros recortados por fotos de qualquer coisa bonita, cercas, tocos, folhas, animais, céu, encantos pelo caminho. Janaína conta da criação de abelhas, ela e a mãe Doraci queriam fazer algo que gostassem e que incrementasse a renda. Eis um trabalho bonito e doce! — Lá estão os caixotes... - aponta a moça acostumada com as árvores. — É lá que as abelhas estão, fabricando o mel. Mais adiante um riacho pintando de água o denso verde da mata. Frutos, bichos, medos, mais fotos. Moças brincando de criança pelos cipós. E enfim a represa proibida, só proibida. O azul do céu é a tela, o verde das árvores é a moldura, a represa inerte, a figura principal e o cavalo baio ao fundo, o coadjuvante, na aquarelável paisagem. Belíssima!
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Janaína e seu coração querem ir a um lugar especial antes do almoço. Pé na estrada rumo à casa do jovem Adílson. Adiante se vê a terra lavrada pelo arado e homens simples trabalhando, gentis a acenar. Janaína e William levam seus violões. Uma coisa incrível nessa terra: todos recebem os estranhos como se fossem velhos conhecidos com ternura e carinho, acompanhados de um bom café. Após a formal apresentação das universitárias à família de Adílson, desatam-se prosas e risos. O rapaz Adílson é o homem da casa, desde os dez anos quando o pai faleceu, estuda e faz todos os serviços da fazenda. Herói da mãe. Amor de Janaína? Adílson começa a tocar violão, Janaína o acompanha com a voz e com os olhos e William tenta acompanhar a notas no violão. Elis, uma das estudantes, se junta ao coro sertanejo. Ana, a outra visitante, inicia um sensível diálogo com vó Osvarda, que abre seu coração, saudoso dos bons tempos de sua infância e também de seu falecido marido. Com a voz embargada, vó Osvarda diz não reconhecer-se no mundo de hoje, para ela tudo é muito diferente. O passado confronta o presente num clima melancólico. O festim está muito bom, mas é preciso ir, já é hora do almoço e o momento de as visitantes partirem se aproxima. Despedidas e promessas de retorno. Franguinho caipira na panela e suco de laranja do quintal, almoço na roça é outra história. Barriga cheia, pé na areia; Janaína quer que Elis e Ana conheçam a sua amiga Natália, que mora perto dali. Chão, cercas e céu. As quatro meninas conversam, trocam experiências. O telefone toca, é hora de ir embora. Os pés apressados marcam a terra no caminho de volta e tímidos pingos de chuva salpicam as costas das garotas. A Kombi está na porta, os companheiros das universitárias as esperam. É hora de retornarem a Goiânia. Agradecimentos e despedidas. Dias bons. Família acolhedora. Novos laços, novos amigos. Ainda bem que existem as memórias. Adeus assentamento Dom Fernando, adeus Sítio Divino Pai Eterno, adeus Janaína. Clique e assista o vídeo “Janaína”
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PARTILHAS
William
TEXTO E FOTO
Elisama Ximenes DIAGRAMAÇÃO
Vinicius de Morais
“Vruuuum” A máquina de moer cana canta em ritmo uniforme. “Vruuuuum” faz isso enquanto engole a cana e cospe seus pedacinhos. “Vruuuuuum” a cantiga saúda Seu Eurípedes que, com seu chapéu de palha, enfia a cana por um lado e contempla os pedaços saírem do outro. Seu Eurípedes mal olhava para outros cantos, a concentração no ritual e os ouvidos à cantiga eram rígidos e o possuíam de tal forma que ele mal percebera minha presença ali. Já eu, depois de uns minutos sequestrada por aquela cena, resolvi fugir com o olhar e reparar nos bastidores. Ali no canto, encostado ao pau que sustentava a estrutura que protegia a máquina do sol, estava William. Chupando um pedacinho de cana, o garoto observava o trabalho do tio. Nos olhos dele pude reparar um estranho encantamento. Estranho porque em todas as conversas que tive com William, ele fazia questão de expor o seu desapontamento em ter saído da cidade. O estranho naquela família de pai, mãe e filha gostava mesmo era da vida de vendedor de feira. Não desgostava por completo da vida rural, mas sua paixão mesmo era pela vida na cidade. Entretanto, seu jeito de lidar com a vida no campo tornava seu discurso controverso. Era clara a admiração que sentia pelo trabalho do tio, a não ser que ele soubesse disfarçar bem. Pode ser também que ele não estivesse observando o tio coisa nenhuma, estava com a cabeça em outro lugar distante e, por isso, o olhar brilhante. Mas a concentração dele - que o fazia acompanhar com os olhos o trajeto da cana por entre a máquina – parecia verdadeira demais. E não era só isso: William, mesmo entre suas falas “eu gosto mesmo é da cidade”, fazia questão de nos mostrar os detalhes da terra. Falava com empolgação da cana que na verdade era produzida para alimentar o gado, por exemplo. Oferecia com orgulho um pedacinho da cana que ele mesmo pegou para eu chupar. E, com um sorriso no rosto, esticava o braço com as mãos que seguravam a faca e o pedaço de cana cortado para mim. Talvez William realmente gostasse da cidade e sentisse saudade de lá. É compreensível isso vir de um garoto que foi morar no campo com uma nova família. Mas, nas entrelinhas, ele disse com muito mais freqüência que também gostava daquela vida de escorar num pau, chupar um pedacinho de cana, escutar a cantiga “vruuuuuum” cantada pela máquina que o tio manuseava de forma tão bonita que merecia aquele brilho em seu olhar.
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PARTILHAS
SHOW DE GATO
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TEXTO
Elisama Ximenes ILUSTRAÇÃO
Heitor Vilela DIAGRAMAÇÃO
Rayanne Bueno
Acham que só sei miar, mas também sei escutar. Só assim pude notar um pessoal estranho e falante na velha cozinha de Sr. Atair. Fazia um tempo que não via tanta gente lá. Entre conversas, risadas e tentativas de viver a vida do campo, admiravam meu pêlo preto manchado de branco e iluminado com os olhos verdes. Também se impressionavam com o bigode grande e branco e falavam sobre ele com umas frases do tipo “nossa, que lindo!”. Acham que só sei miar, mas também sei observar. Sempre observo a família de Sr. Atair matar uma das galinhas ou dos frangos com quem eu convivo todos os dias. No início, confesso que estranhava, mas com o tempo acostumei. Mas hoje, vi naqueles rostos a mesma expressão que eu tive no inicio, não fosse a diferença da expressão deles estar regada à fome. Um deles cuidou de matar a galinha. Pela primeira vez, o que vejo sempre acontecer, parecia um evento esporádico digno de espetacularização. Os passos seguintes do processo também foram espetacularizados – umas meninas miravam uns objetos estranhos para as pessoas que depenavam a galinha já morta, depois apertavam um botão e sorriam para o que observavam ali. Vez em quando, resolvia dar uma passeada por entre aquela gente. Roçava em algumas pernas e elas quase não notavam de tão extasiadas que estavam com a talvez nova experiência. Então, as incomodava com o rabo. Só assim me olhavam e me miravam aquele objeto e, assim como fizeram com a galinha, apertavam o mesmo botão. Não sei para o que servia aquilo, mas sei que parecia bom pelo sorriso que abriam, em seguida. Uns pareciam ter tido alguma experiência com aquilo, mas outros pareciam muito perdidos e eram os mais encantados com a atividade nova. Acompanhei alguns deles até a horta e, se pudesse, até riria da forma vagarosa e minuciosa com que observavam as alfaces e couves. Depois, com um cuidado de quem pega em vidro, retiravam uns ramos da terra. Era até mais bonito de observar. Senti-me vendo a cena de sempre, só que em câmera lenta. Acham que só sei miar, mas também sei contemplar. O fiz com aqueles estranhos deliciando-se com a comida feita por eles próprios depois de muita experimentação e tentativas frustradas. Nunca achei tão bonita uma refeição humana. Coisas simples que vejo no meu dia-a-dia de gato da roça, mas que hoje foi um dos shows mais bonitos a que já assisti. E a melhor forma que encontrei de demonstrar tal admiração foi o roçar dos meus pêlos e rabo, de gato, por entre aquelas pernas de gente encantada. 111
PARTILHAS
vag
caçado
TEXTO
Jéssica Chiareli
DIAGRAMAÇÃO E ILUSTRAÇÃO
Vinicius de Morais
galumes
ora de
“Olha só isso?”. “O que é?”. “Um vagalume”. “Mas ele tá vivo?”. “Tá sim, quer ver?”. “Verdade, tá mesmo”. “Ontem eu peguei sete”. Disse com os olhos mais brilhantes que 70 vezes 7 dos bichinhos que iluminam as noites na roça, feito luz andante de natal, feito miniestrelas guiando reis magos, feito vaga sem lustres em que se estaciona motores vivos de fina carcaça.
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Vitória da Silva Matos tem apenas nove anos, mas já é uma especialista na arte da caça. Numa só noite é capaz de encontrar e capturar dezenas de vagalumes. Sua técnica surpreenderia até mesmo os doutores da área. Uma verdadeira menina prodígio. Ao contrário dos amadores, Vitória sequer toca os bichinhos, e nem necessita de equipamentos caros e sofisticados. Um copo de vidro e uma folha de papel são suficientes. Depois de juntar os iluminados voantes nas paredes cilíndricas de vidro, a desbravada caçadora observa a lindeza das luzinhas num cômodo escuro. Logo a luz, dessa vez da lâmpada, é acesa pela irmã mais velha, Francielly, de 14 anos. Já passou a hora de brincar e é preciso ir dormir. Pela manhã, as meninas ajudam com a limpeza da casa – “mas só quando não tem tarefa e trabalho pra fazer”, lembra a mãe, Rosângela Maria– e depois as duas vão para a escola, percorrendo cerca de 22 km até uma das cidades próximas, Itaberaí. Rosângela, mãe das meninas e também de Renato, o filho mais velho, cuida principalmente da cozinha. Mata e prepara a galinha caipira, cozinha o arroz, o feijão, e toda a carne do congelador de uma só vez quando a energia cai. “Já aconteceu de ficar sem energia dois dias”, conta lembrando que quando não havia luz elétrica a preocupação era menor. “Quando não tinha energia era melhor. Não tinha geladeira e eu não precisava ficar preocupada se a energia ia voltar ou não, se a comida ia perder ou não”. Além do que, sem eletricidade, as caças da Vitória eram mais abundantes. Mesmo com trabalho suficiente para um expediente inteiro que é cuidar de casa, a mãe também ajuda na lida com os três alqueires de terra conquistados há quatro anos pela família, após outros quatro anos de luta. De joelhos ela joga um bocado de terra nos buracos feitos por Renato, coloca a muda de maracujá e cobre a raiz da planta com mais terra. As unhas, que antigamente eram pintadas de francesinha, passaram a ser pintadas de grãos de chão. Mas Rosângela não se importa, “troquei os 15 reais que pagava para a manicure por duas horas a mais de sono”, diz a quem questiona. Na cidade não dava mais para viver. Muita gente, muitos perigos, muitas dificuldades e nem um pedaço de chão para chamar 114
de seu. Ali havia esperança, grilo, besouro, galinhas, porcos, cinco vacas e, agora, os pés de maracujá. Ah, também tem os pés de laranja, mandioca e mamão e, claro, os vagalumes. Ali a família consegue se alimentar do suor com um gosto bem menos salgado na boca. Mas não muito tempo atrás, essa mesma terra que hoje é casa de tanta raiz, era casa de nada ou de uma raiz só. Em seguida foi casa de uma luta que também era uma só, mas nem por isso sozinha. Foi na verdade de mais de 30 famílias, que hoje dividem o direito de se alimentar da terra, e da terra alimentar o mundo. Parece bonito e simples, mas a verdade é que não. “Fiquei acampado quatro anos. Era muito difícil. Quando eu ia pra Goiânia e ficava com a mulher e os meninos dava vontade de desistir, mas chegava o dia de voltar e eu animava de novo. Chegava aqui e ganhava mais força”. Assim era a vida de Francisco até que conseguiu se mudar com Rosângela e os filhos. O pai não tem mais que se enrolar na lona da barraca e dormir de pé sob a tempestade que inundou seus pertences no acampamento, não tem mais que dormir a dois metros do chão para não ser picado por cobras, pois hoje as tempestades são mais serenas e as cobras não tão peçonhentas. E mesmo com as pragas na plantação, mesmo com os bichos que comem as galinhas, com falta de energia elétrica constante, com as cinco bocas para alimentar, mesmo com tudo isso, sorrisos se abrem feito leque pra dizer: aqui é o meu lugar no mundo. O que só se percebe e é mantido quando se tem a destreza de uma caçadora de vagalumes, que mostra o quanto é fácil matar um leão por dia. Difícil mesmo é caçar e iluminar-se com pequenos bichinhos voantes, sem os matar ou deixar que morram com sua luz.
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VERANEIOS
VERANEIOS
entre o te e a mater
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Levantei meio dormindo e dei alguns passos cambaleantes até o banheiro. 5:30 da manhã era o que marcava no visor do meu celular, pensei duas ou três vezes em voltar pra cama e dormir, me imaginei enfrentando a mesma fila longa para tentar entrar no ônibus já lotado. Lembrei de todas as pessoas que quase matavam uma a outra por um lugar para sentar, lembrei do longo caminho até a universidade. Senti vontade de desistir. Abri o chuveiro, me enfiei embaixo dele, 10 minutos depois eu finalmente estava acordada. Quando cheguei ao terminal para pegar o primeiro ônibus, dos três, que preciso para chegar a UFG, vi uma mulher grávida segurando, pela mão, uma criança que tinha pouco mais de dois anos. Quando ela parou ao lado da fila enorme, uma mulher, bem jovem, resmungou “não tenho paciência para essas pessoas que chegam tarde e querem entrar na frente dos outros”, a mulher continuou no lugar que era seu por direito fingindo não ouvir o que a outra disse. O ônibus parou. Foi a mesma confusão de sempre, eu não entrei, tinha gente demais para um ônibus só. A mulher grávida também não. Imagino que em meio a confusão generalizada que existe para tentar entrar no ônibus, ela ficou com medo de se ma-
erminal rnidade TEXTO
Jéssica Cardoso DIAGRAMAÇÃO E ILUSTRAÇÃO
Vinicius de Morais
chucar e desistiu. Era como se mil animais de um rebanho corressem atrás da ultima presa do mundo. Enquanto eu pensava o quanto essa situação é desrespeitosa, continuava a observar a mãe de quase dois filhos que continuava ali em pé, no meio da confusão. Vinte minutos depois outro ônibus parou, a mulher grávida conseguiu entrar, eu também. Quando me sentei ao seu lado, nos bancos que não estavam reservados, ela me perguntou as horas e disse que estava atrasada para ir ao médico. Era o último exame da gravidez e ela estava sentindo tanto mal-estar que tinha medo de parir antes da hora. Me surpreendi ao saber que a hora certa de ela parir era às 10 daquela manhã . Respondi que eram dez para as sete. Ela agradeceu, e disse “espero que o ônibus ande logo, eu não posso me atrasar”. Eu não sei explicar o porquê de esse fato ter me marcado tanto. Aliás, eu sei sim. Sei por que na fala da mulher eu percebi uma das maiores fronteiras que vivo todos os dias. Não é apenas a dificuldade que o transporte público oferece, ou as duas cidades que tenho que atravessar diariamente. O problema são as dificuldades que existem em romper as fronteiras. O grande abismo entre o sair e o chegar, dependendo de um serviço que embora seja pago, e caro, é chamado de público. 119
VERANEIOS
de todos os
olhos TEXTO
Renato Veríssimo DIAGRAMAÇÃO E FOTO
Vinicius de Morais
Dizem que os olhos são janelas da alma. Por eles, é transmitido aquilo que está apenas por dentro, dizem. E, quem dera fosse somente assim, certo? Nós com nossas certezas que não mudam, quem dera fosse fácil viver sem prestar atenção nas mudanças que olhar outras coisas nos trás. Os olhos são um limite, entre passado e futuro, entre o que conheço e o que ainda não vi. Dos sentidos, a visão é, por meio do olhar, a maior conexão com os sentimentos. Portanto, não são janelas da alma, mas sim janelas do mundo. É o olhar que traduz a fronteira daquilo que somos e podemos ser, é uma fronteira atravessada diariamente, a fronteira das contradições. É com o olhar, no sentido da percepção, que se traduz a cidade, as resistências, os campos, a diferença. Perceber é o passo fundamental da criação e da mudança. 121
VERANEIOS
NÃO H
BANCAS A Não há mais bancas amarelas. Foi-se junto o riso e a alegria. Hoje só corredores e passarelas desabitadas. Homens trabalhando, quebrando e reformando. Nada de gritaria quando os usuários passam. Apenas o barulho das máquinas. Famílias deslocadas para um local afastado e quente. Um mausoléu branco e grande. Uma sauna. O amarelo mesclado com o branco. A alegria se foi, nem cliente aparece, vendedores sentados tentam livrar-se do calor. Tudo para, sabe-se lá quando, impressionar o governador no dia em que ele vir nos visitar. Há rumores de que mais terminais devem passar pela tal reforma. Famílias perdem seu sustento sem ter onde trabalhar. Usuários cansados pegam ônibus lotado e correm riscos.
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HÁ MAIS
AMARELAS TEXTO E VÍDEO
Lohany Arnos
DIAGRAMAÇÃO E FOTO
Vinicius de Morais
As reformas da administração, da condução não parecem estar sendo feitas. Enquanto isso, a população tem que sair às ruas com placas nas mãos. Foi-se a sensação do pertencimento. O espaço ficou quase vazio, não fossem as pessoas sentadas ou deitadas nas bancadas. Pés que sobem e descem pelos corredores, porque mais uma vez o ônibus vai atrasar. Clique e assista o vídeo “Alegria do Pertencimento”
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VERANEIOS
... e no meio
o do nada, tudo. TEXTO
Leandro Stoffels DIAGRAMAÇÃO E ILUSTRAÇÃO
Vinicius de Morais
Formosa do Rio Preto é o nome, e uma boa descrição da cidade que o carrega. Nesse município de pouco mais de 22 mil habitantes (menos do que o Setor Oeste, em Goiânia) e mais de 16 mil km² de extensão (maior área municipal do Nordeste) as ruas são pontuadas por árvores, especialmente oitizeiros, e expõe uma limpeza rara de se ver em cidades baianas. Lixo também não se vê nas águas que leva em seu nome. “Rio Preto” que, por sua vez, deriva de sua profundidade e das vastas matas ciliares que o cercam, fazem sombra e escurecem suas águas limpas. Localizada no extremo oeste baiano, na divisa com Tocantins e Piauí e distante 1026 km de Salvador, é o ponto dentro do território do estado mais distante de sua capital. As mais próximas são Palmas (496km), Brasília (795km) e Teresina (908km). Nesse isolamento, mesmo possuindo uma área maior que a de países como Líbano e Jamaica, a cidade é pouco conhecida até entre outros baianos. Os poucos que a conhecem, geralmente a associam ao rio que a corta, ou ao seu principal evento cultural, a vaquejada. 125
“A segunda maior vaquejada da Bahia”, como gostam de destacar seus organizadores, acontece há mais de 30 anos, sempre na última semana de maio. Além do evento esportivo em si - bastante popular no interior do Nordeste - onde vaqueiros precisam derrubar bois e vacas puxando-os pelo rabo, o Parque Municipal recebe durante o evento, shows públicos de bandas de forró e cantores de brega romântico. Nesses quatro dias de festa, a cidade recebe milhares de visitantes, quase todos formosenses que migraram e mantém laços com a cidade, ou habitantes de regiões vizinhas. Outro evento anual que busca reunir tanto aqueles que moram na cidade, quanto os que se mudaram para outros lugares (especialmente Brasília, onde vive a maior comunidade formosense fora da Bahia) é a ‘Festa de Arromba’. Organizada sempre no início de janeiro, para aproveitar o fluxo de pessoas que voltam à cidade para passar o Natal e o Reveillon com a família. A festa tem como público alvo “pessoas casadas ou acima de 30 anos” e para participar é preciso receber um convite, comprar uma mesa na festa com amigos ou família e levar suas bebidas e comidas. O principal evento religioso ainda é a festa do Sagrado Coração de Jesus, padroeiro da cidade. A festa acontece sempre em julho. Mas, dias antes, começam as esmolas por todo o município e uma novena que culmina em uma missa seguida de um almoço para milhares de pessoas, feito com as arrecadações dos dias anteriores. Além do catolicismo, outras formas de religiosidade se expressam principalmente no bairro mais negro e pobre da cidade. Terreiros escondidos em quintais de casas, um templo do Vale do Amanhecer e um número exponencial de congregações protestantes dividem espaço nesse pedaço de terra que recebe o nome da católica “Santa Helena”. Outras expressões culturais, entretanto, têm perdido força com o passar dos anos, como a dos “caretas”. No mês que antecede o carnaval, jovens (quase sempre rapazes) se reúnem para sair em grupos nas ruas durante a tarde, fantasiados com capa, chocalho e máscaras assustadoras, as ditas caretas. Nos últimos anos, os grupos têm se tornado mais raros. Aparentemente, os formosenses que hoje têm entre 12 e 21 anos têm outros interesses, que não se vestir com roupas quentes nas tardes de verão baiano para sair assustando criancinhas. 126
Além da luta para sobreviver ao intenso ritmo de mudanças, comum a todas as tradições, a cultura formosense também sofre pelo intenso isolamento. A produção acadêmica sobre os aspectos humanos da cidade é quase nula. As memórias de quando só se podia chegar à cidade por meio de balsa e que ainda nem havia sido emancipada, hoje vivem apenas no relato oral dos poucos sobreviventes dessa época e em três livros escritos por uma delas, a professora Ester de Araújo Dias, ou Dona Tézinha. A cidade e sua cultura quase nunca são mencionadas e registradas por mídias ou produtos culturais de alcance estadual ou mesmo regional. Uma exceção foi um personagem em uma recente novela das seis, Cama de Gato. Segundo boatos que circularam na cidade na época, uma de suas autoras, Duca Rachid, seria casada com um filho da terra e passava as férias aqui. Apaixonada pela cidade, teria colocado a menção como uma homenagem. Se isso é verdade, entretanto, os homenageados não se agradaram. O tal personagem se dizia formosense e sempre saudoso de sua terra e do seu rio, o que realmente é comum entre os que se mudam daqui. Porém, o ator usava um sotaque soteropolitano fortíssimo, o que pouco reflete o da cidade, com pouca influência litorânea, mas carregada de relações com os sertões da Bahia, do Piauí e do Pernambuco. Mais uma vez, os formosenses viram sua cultura engolida por um sistema de poder que legitima a expressão dominante - a do litoral, da capital Salvador - e invisibiliza aquelas que estão mais distantes do centro do poder aquisitivo e político. Praticamente invisível ao resto do mundo, Formosa do Rio Preto não tem um filho ilustre, alguém cujo nome seria reconhecido facilmente fora daqui. Talvez porque nessa comunidade “todo mundo conhece todo mundo”, como sempre se diz. Aqui qualquer pessoa sabe o nome e o endereço de quase todos que vêem na rua. E se não sabem, é fácil descobrir. Não com a ajuda do Google. Basta perguntar para a pessoa ao lado.
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VERANEIOS
200 km TEXTO E FOTOS
Denise Pires
DIAGRAMAÇÃO E ILUSTRAÇÃO
Vinicius de Morais
Às duas da manhã a pequena cidade de Faina dorme, o sol está para outros povos, só existe o silêncio. Mas, na casa de Dona Marica já se sente o cheiro do café sendo coado. Vaidosa, ela coloca os brincos e passa o batom. Está pronta para a viagem. Sai de casa deixando marido e filho para trás. O percurso até o hospital Municipal é longo. Na caminhada, apenas ela com seus pensamentos, muito deles esperançosos, sabe que Deus a acompanha de onde é que ele esteja. No hospital de Faina não há o tratamento que a senhora de 66 anos precisa. Então, aguarda o motorista da prefeitura chegar, como faz há quatro anos, três vezes na semana. Goiânia, 200 km. Às três da manhã o amanhecer ainda é distante, mas Dona Marica já está na estrada encarando uma longa e desgastante viagem. Logo avista a ponte do Rio Ferreira, sabe que quando atravessá-la não estará mais em casa. Pensa em tudo o que deixou, o sossego, os amigos, a família, os cachorros. Cruza a primeira fronteira de muitas que a separam da hemodiálise. 131
O caminho até a cidade de Goiás é traiçoeiro, cheio de curvas sinuosas e agressivas, a mulher olha pela janela do carro e avista as cruzes das vítimas que a estrada já fizera. Pensa no perigo que corre constantemente para se manter viva. Sua vida naquele momento está nas mãos do motorista que lhe é apenas um conhecido. Um pouco mais à frente, a torre da Igreja de Nossa Senhora do Rosário se sobressai na paisagem, mesmo aquela maravilhosa obra arquitetônica em estilo neogótico já se banalizara. Da Rodovia Raul Caiado Fleury passa para a GO 070. Observa as esculturas artesanais à margem da estrada, que sempre são seu objeto de desejo. Após ter deixado a cidade de Goiás, chega ao pequeno Povoado de Areias, nunca deixa de fazer o sinal da cruz ao passar pela Igreja de Nossa Senhora Aparecida. Quando o relógio se mostra a seu favor, faz questão de parar. Mesmo com dificuldade de locomoção, sobe os degraus que a leva ao interior da Igreja e tem o seu momento com a santa padroeira do Brasil. A mulher da fé inabalável pega a estrada rumo à Itaberaí com as forças renovadas, sabe que é com sacrifício que se alcança uma graça. Goiânia, 122 km. A Serra Dourada fica cada vez menor até desaparecer completamente das vistas. O trajeto entre Goiás e Itaberaí não apresenta grandes surpresas. Atravessa a cidade passando pelos comércios à beira da estrada que já lhe são tão conhecidos. Na saída, é incomodada pelo odor desagradável exalado pela famosa granja que emprega tantos itaberinos. Goiânia, 90 km. 132
A cada quilômetro percorrido, é possível perceber a vegetação se modificando, as árvores aumentam de porte, troncos e galhos menos contorcidos. O relevo plano é propício pra a lavoura, e quanta lavoura! Milho, soja, no horizonte é só o que existe, é tudo o que a vista alcança, parece infinito. Na cidade de Itauçu cumpre-se com a tradição de parar em uma das duas grandes lanchonetes à beira da estrada. Dona Marica tem a sua segunda parada que lhe renova as forças. Não mais em termos espirituais, mas em termos fisiológicos. Goiânia, 60 km. Já em Inhumas, o solitário e único prédio da cidade, a faz lembrar o quão longe está de casa. Nesse ponto da viagem, há apenas duas cidades que a separa da hemodiálise e quatro a distanciam de sua família. Goiânia, 40 km. A próxima cidade faz fronteira com Goiânia. Em Goianira já é possível avistar os altos prédios da capital. Dona Marica atravessa a última cidade que a separa de seu tratamento e vai de encontro com o amontoado de prédios. Goiânia, 20 km. O trajeto é cercado por uma série de outdoors que fazem propaganda dos condomínios planejados à margem da GO 070. Frases criativas e cores vivas os fazem parecer convidativos, principalmente após percorrer 230 km. Afastados do centro da cidade, prometem mais contato com a natureza, prometem uma vida bela. Dona Marica sabe que não é possível viver em um lugar assim tendo como única fonte de renda a aposentadoria, e nunca será. Mas sabe também que jamais deixaria os amigos que cultivou durante toda uma vida e nem a liberdade que tem em Faina. Na chegada da cidade, é cumprimentada por uma placa que diz: Bem Vinda à Goiânia. Agora ela é só mais uma paciente. Não vê a hora de voltar para casa. Faina, 230 km. 135
PROSAS
PROSAS
filho
o da terra TEXTO, FOTOS E VÍDEO
Adriana Rodrigues, Elisama Ximenes, Gabriela Marques, Jéssica Chiareli, Leandro Stoffels, Maiara Dourado e Palloma Biasi DIAGRAMAÇÃO
Vinicius de Morais
Nascido no interior de Goiás, Seu Altair acompanhou a luta pela reforma agrária no estado desde o seu princípio. Filho de camponeses, nascido e criado no campo, não se contentou quando a cidade foi imposta como única alternativa de vida e único lugar onde seria possível conseguir o sustento. Quando ainda era menino e ajudava os pais na roça, Altair começou a encher a cabeça com perguntas que precisavam de respostas. Por que dar a metade para o patrão? Como falar de democracia no Brasil sem reforma agrária? De quem é a culpa pela fome? São algumas das inquietações que Seu Altair, filho da terra - como ele mesmo se define - levanta durante esta entrevista.
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Becos Comunicantes - Para começar, seu Altair, o senhor poderia se apresentar um pouquinho para a gente? Contar um pouco da sua história? Altair - Bom dia a todos e a todas, meu nome é Altair, minha terra natal é Anicuns, sou filho de camponês. Meu pai é trabalhador rural, minha mãe é trabalhadora rural. Então, na verdade, um pouco assim da minha apresentação: eu cresci com meus pais, ele eram meeiros, eles pegavam e iam nas grandes fazendas, combinava com o fazendeiro e a gente ia trabalhar, tocar roça na meia, então chamado de meeiro. Você planta a lavoura, quando você colhe, dá a metade pro patrão e você fica com a outra metade, e eu ainda assim bem pequeno começava a me questionar: “Por que que tem que fazer isso?”; tendo em vista que o grande problema era porque a gente num tinha terra. Só que eu questionava muito meu pai, eu num compreendia muito assim essas questões que eu poderia chamar dos desafios políticos das questões sociais das famílias, de uma maneira especial, do campo. E aí, quando me casei em 1977, a minha esposa, a Nair, também filha de um agregado de fazenda no município de Anicuns - os pais dela eram meeiros também - e eu cansado com essa batalha eu fui pra Goiânia em 1979. Em 1979 eu cheguei em Goiânia e já tinha meu filho, o Junior, meu primeiro filho, e fui trabalhar de vigilante, fui trabalhar de segurança bancário, segurança nos bancos. Trabalhei em todos os bancos ali de Goiânia, eu poderia dizer isto. Daí despois abriu um concurso pra trabalhar na Caixego, Caixa
Econômica do Estado de Goiás, fizemos um curso de regime militar, só que meu contrato era de 6 horas e eu trabalhava 12, e eu só recebia 2 horas extras por mês. Então, todos os dias, eu trabalhava 4 horas de graça pra Caxego e eu sempre fui indignado com isso, eu nunca aceitei ser explorado pelo patrão, por ninguém. E aí nós se organizamos pra mover uma ação na justiça contra a Caxego. Aí o Departamento Pessoal convidou nós pra fazer um acordo, aí nós fizemos um acordo e recebemos nossos direitos, as horas extras atrasadas. E os outros vigilantes que não tiveram coragem de mover ação na época em que nós entramos na justiça contra a Caxego pra receber esses direitos trabalhista, que nós recebemos, aí eles ficaram com ciúme e foram agir da mesma forma nossa. Aí a Caxego pra fazer pressão neles, pra não mover ação, mandou nós embora. Aí eu fui pro Finsocial, daí eu já morava na Nova Esperança, participei da luta urbana, na luta do Jardim Nova Esperança, juntamente com o Rubinho que era um líder lá da Organização Urbana. Aí eu saio do Nova Esperança e vou pro Finsocial e coloco um comércio. Eu tinha um Secos e Molhados. O nome do meu comércio de fantasia: “Mercearia AutoChopp”. Só que eu fui perceber também que ficar só nas periferias vendendo cachaça era uma situação muito difícil pra mim, e eu também dei conta de que o meu trabalho era só trabalhando com os produtos das grandes indústrias. Então eu tinha esse desejo, essa necessidade de ter uma terra pra mim trabalhar, e aí tinha o seu Francisco, que hoje até já é falecido, ele era marceneiro. Ficava na fazenda, montando fazenda, fazendo curral, e ele tava no Faina trabalhando como marceneiro, montando uma fazenda. E aí, através dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais juntamente com a Diocese de Goiás, a CPT, Comissão Pastoral da Terra, eles começaram a articular pra fazer uma ocupação na Fazenda Mosquito, isso já em 1995. Isso significa que já estava acontecendo a abertura política,
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já tinha acontecido a eleição que elegeu o Tancredo Neves pelo colégio eleitoral. A abertura politica tava chegando, e em outras regiões do Brasil já tava acontecendo as grandes ocupações de fazenda, ocupações dos grandes latifúndios. E em outras regiões do Brasil, já tava também tendo uma grande articulação da Organização do MST, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Nessa época ainda não tava integrado ao grupo, mas eles organizaram junto aos sindicatos, com apoio da CPT e a Diocese de Goiás, na pessoa do Bispo Dom Tomás Balduíno1, com aquela proposta da igreja, da Teologia da Libertação, fé e política. A organização das comunidades eclesiais de base começava a juntar os camponeses e fez a ocupação na fazenda Mosquito. No 1º de maio de 1985, acontece a primeira ocupação de latifúndio no estado de Goiás. E ai o Seu Francisco, popular “Vô”, chegava lá em meu vizinho lá no Finsocial e dizia: “Altair você tem que ir lá, você tem que ir pra lá pra tá junto com nós”. E aí eu com aquele desejo de ter uma terra, por ser filho da terra, ser camponês, eu topei a parada. Fechei esse comércio meu e fui, né. Eles já tinham acontecido o primeiro despejo, né. Com sete dias que eles tavam lá, chego lá, a polícia com um oficial de justiça rendeu todo mundo, jogou dentro do caminhão e prendeu na Delegacia da Cidade de Goiás. Foram tudo autuado e preso. E aí tinha o Doutor Lourenço, que tava dando uma assessoria jurídica ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais da Cidade de Goiás, juntamente com a Marina Santana que tava recém formada, tinha concluído o curso de Direito, passado na prova da ordem, também tava dando assessoria jurídica. O pessoal conseguiu fazer com que eles saíssem dessa prisão, e ficaram acampados em frente a Prefeitura da Cidade de Goiás. E quando eles estavam em frente, com o acampamento na Prefeitura de Goiás, eu 1 Dom Tomas Balduino – ex-bispo da cidade de Goiás, ex-presidente da CPT – Comissão pastoral da terra e ex-presidente do Conselho Indigenista Missionário - CIMI
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cheguei e integrei essa organização dos Trabalhadores Rurais do acampamento, que era conhecido como Acampamento da Fazenda Mosquito. E eu cheguei lá e olhei a situação que tava aquele pessoal, debaixo duma loninha preta todo mundo assim, muito sofrido né, tinha criança. E eu fiquei por ali assim, olhando, fiquei uns dois dias observando e aí voltei em Goiânia, comentei com a minha família, minha esposa, e voltei. Fui pro acampamento, integrei a Organização do acampamento e aí com essa experiência minha em Goiânia, eu consegui nesses cursos de segurança que eu fiz, eu consegui desenvolver bastante assim, dentro do acampamento, contribuir com eles na organização. A gente conseguiu organizar o acampamento, distribuir as tarefa. A CPT convidou um pessoal do Paraná, da Bahia pra vim mostrar como que tavam as organizações lá, em outras regiões do Brasil. Eles vieram numa comissão, e colocaram pra nós como que eles se organizavam lá. E nós começamos a tá se organizando aqui também. Ai nós fizemos a segunda ocupação na Fazenda Mosquito. Quando nós fizemos a segunda ocupação na Fazenda Mosquito, como tem o governo itinerante em Goiás, no dia 25 de Julho o Íris Resende, que na época era governador, prometeu de que iria empenhar junto ao processo e que iria sair a desapropriação da Fazenda Mosquito, pra que essas família pudessem ser assentadas lá. Dentro de poucos dias aconteceu o segundo despejo. Aí nós ficamos assim, sem saber como fazia. Como tava acontecendo no Sul uma experiência de os camponeses acamparem em frente ao Palácio do Governo, nós também, junto com a CPT, organizamos e acampamos na Praça Cívica, em frente o salão verde, e, acho que essa foi uma luta chave pra que nós pudéssemos alcançar a desapropriação da Fazenda Mosquito. Nós tivemos seis audiências com o Íris Resende, ele muito preocupado, a gente não conseguia, a gente nem ia agendar com ele, ele mandava nos chamar lá no acampamento vizinho dele lá, distância de
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uns oitenta, cem metros, e eles dizia: “olha eu num aguento mais vê vocês acampados ali, vocês tão prejudicando meu trabalho”. E ele queria também, ele tinha por tradição montar no Natal um presépio, num sei se vocês lembram, ainda tem esse presépio lá. Então ele dizia: “eu tenho que montar um presépio, e como é que eu vou montar esse presépio se vocês tão acampado ali. Ai o Dom Tomás, com aquele jeito dele, muito elegante né, dizia: “o presépio já está lá, é um presépio vivo, não é um presépio morto”. Então com isso a gente foi aprendendo, sabe? Aí ele chamou e falou: “oh, eu vou fazer uma única proposta pra vocês. Se vocês num aceitarem, eu vou aplicar os meus recursos em cima de vocês, isso significa, vou despejar vocês dali. Vou mandar vocês pra uma área experimental em Engopa, em Senador Canedo”. Aí nós dissemos: “Mas nós estamos com problema de comida governador, nós num temos comida”. Nós eramos cinquenta e duas famílias na época. Aí ele disse: “Então eu mando comida pra vocês”. “Tão tá, vamos elaborar um documento, uma ata assinada aí com esse compromisso e nós vamos”. Ai, ele elaborou esse documento e nós fomos lá pra área experimental da Engopa, próximo ao Senador Canedo. Só que lá tava faltando nessa cesta, faltava o gás, o café, e tinha mais um outro item pra complementar a cesta. Aí a gente cobrou dele. Ele ficou muito contrariado da gente tá cobrando esses itens dele e disse: “Não, não vai faltar serviço pra vocês, tem serviço lá vocês pode trabalhar pra complementar essa cesta básica de vocês. E também, ele garantiu um plantio de umas, não me lembro mais a quantia, deram uma quantia de dez a quinze hectares pra que a gente colhesse o mantimento pra manter as família. E nesse meio prazo, nós pegamos esses documentos dele, quando ele assumiu esse compromisso com nós, de empenhar junto a desapropriação da Fazenda Mosquito, nós anexamos no processo, que já estava no Ministério da Reforma Agrária, que na época era o Nelson Ribeiro, Ministro da Reforma Agrária, e saiu. O Marco Maciel era o chefe da casa civil, encaminhou pro presidente Sarney, que era o presidente da República, e saiu.
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É... Na justiça, contra o decreto de desapropriação do presidente da república, aí foi o outro, uma sabatina de a gente estar acompanhando esses processos, até que deram o parecer favorável ao decreto de desapropriação. No dia 12 de agosto de 1986, o Incra transfere as famílias, nós, para a Fazenda Mosquito. E tinha um empenho muito grande também da CPT juntamente com o Dom Tomas. Tinha que ser na Fazenda Mosquito, porque eles tinham uma visão de que... E era um desejo do Dom Tomas por quê? Primeiro porque é uma região da Diocese, desse compromisso dele com a igreja, né, com os camponeses, que é a Teologia da Libertação, fé e política. E era uma missão dele como bispo, ajudar, contribuir na Reforma Agrária. Um outro ponto que eles observavam, é que se acontecesse a desapropriação da Fazenda Mosquito, iria abrir as portas da Reforma Agrária no Estado de Goiás. E aí tem um outro ponto que é observado por todos que escrevem sobre a história da luta camponesa, reinicia em 1985 aqui no Estado de Goiás, é que tava nascendo também o MST, o Movimento Sem-Terra. E eu fui um dos companheiros que contribui há 25 anos na história da organização do MST no Estado de Goiás. E daí pra cá, começou a encarar os novos desafios que era a complementação da Reforma Agrária. Que é a questão dos créditos de habitação, a questão da educação, a saúde e crédito para que a gente pudesse estar produzindo para garantir a sobrevivência em cima da terra. Então juntou todos esses grandes desafios, e que nós tivemos que encarar isso com muita força, com muita energia e tá articulando também, fazendo reunião com os outros camponeses em nome da organização, já do MST, para fazer mais ocupação de terra, porque a necessidade da Reforma Agrária no Brasil ainda é muito grande. Por exemplo, a Fazenda Mosquito, hoje ela já está completando quase trinta anos de existência da luta da Fazenda Mosquito. Nós temos aí no município de Goiás 23 projetos de assentamento de reforma agrária. No Brasil, nós temos 12 milhões de camponeses sem terra. Nós temos no Brasil, hoje, 12 milhões de camponeses sem terra que sonham, que desejam ter um pedaço de terra pra trabalhar, não conseguem. Então é... Deixando um pouco da história, eu fico assim, analisando, que é uma pena muito grande, e eu fico perguntando pra mim, será se nós não vamos ver acontecer a reforma agrária no Brasil? Como que nós podemos falar de democratização, de democracia no Brasil, se não acontece a Reforma Agrária? Eu acho que só vai acontecer de fato uma democracia o dia em que nós vermos os camponeses assentados, fazer a democratização das terras no Brasil e fazer com que todos tenham direto à educação, ter segurança, uma das grandes, dos grandes problemas que eu acho que o 146
governo, os governantes brasileiros não vão dar conta de garantir, é segurança pro povo brasileiro, enquanto tiver esse inchaço na cidade, as grande favelas. Por exemplo, nós aqui nessa comunidade hoje, o PA Dom Fernando, nós temos 58 famílias, nós dormimos com as portas abertas, nós se sente seguro, não tem problema de segurança, não tem problema de comida, tem o transporte coletivo hoje que busca os alunos do curso inicial até o segundo grau que leva pra Itaberaí. Então eu fico me perguntando pra mim, será se não é hora de acontecer uma reforma agrária com as experiências já que nós temos com essa cultura que o povo brasileiro tem de ter um pedaço de terra, jogar esse povo pro campo, esse Brasil tão grande, com 8 milhões e 500 mil m² de extensão de área territorial que é o Brasil, pra sair das favela e por... E tem uma outra pergunta, tem uma outra pergunta que quando nós tamos fazendo essas reuniões, nós falamos pra os nossos
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companheiros que tão querendo ir pra luta da reforma agrária, o grande desafio nosso é passar essa cultura nossa do campo, de ter amor pela terra, pra essa nova geração que ai vem, penso eu que quem pega esse amor pela terra, que consegue compreender essa natureza, essa diversidade, principalmente agora que o grande debate é a questão ecológica. Produzir comida sem inseticida, sem veneno, produzir comida orgânica, eu acho que é um grande desafio pra nós, que nós temos, e aí eu... Por isso que eu fico alegre, contente de tá conversando com vocês, que sai lá da faculdade e vem pra fazer esse trabalho e conhecer essa realidade nossa. Eu acho que é uma tarefa nossa, é um compromisso nosso, de preocupar com essa situação que nós vivemos hoje. Deixa vocês fazerem pergunta que se não eu falo sozinho. (Risos) B.C. - A gente vive em uma realidade em que não se cria condições para o homem se manter no campo, eu queria que o senhor falasse do que é esse planejamento, ou da falta de planejamento, que o governo tem em manter o homem no campo. A. - Todos nós percebemos que o governo brasileiro não tem um projeto pra reforma agrária no Brasil, não existe, hoje a preocupação do governo é organizar as estrutura para a Copa do Mundo e as Olimpíadas de 2016, e outros projetinhos aí, ou projeto também, que, tá aí caminhando, mas num sabe quando que vai terminar. Então existem duas linhas de pensamento, duas linhas de raciocínio nessa sua pergunta, tá? É o modelo político do capitalismo... É um modelo político do capitalismo. Ser humano, ser brasileiro, ser pobre, ser camponês, não tem esse olhar dos governantes. O desafio é produzir pra disputar a balança comercial, fazer com que tenha um crescimento pra concorrer com outros países diante do capital e que aí me faz lembrar uma fala do Dom Tomas Bauduíno no encontro estadual do MST. Dom Tomas Bauduíno cumprimentou nós e disse: “Então tô aqui muito feliz pelo convite pra falar pra vocês hoje nessa manhã”. Eu tinha duas turmas diferentes, aqueles que tavam acampado debaixo da lona preta e nós que já estávamos assentados. Ele dizia pra nós o seguinte: “Vou fazer duas comparações aqui pra vocês. Qual que é a diferença do trabalhador aqui da cidade, com vocês hoje, que são trabalhadores do campo, da terra?”. Aí ele disse: “O trabalhador da cidade tudo é mercadoria. Vocês são mercadoria. Se vocês quiserem comer um ovo, pegar um dente de alho vocês tem que comprar. E vocês que estão lá nos assentamentos, vocês estão vivendo a cidadania, vocês estão vivenciando esta natureza, vocês estão plantando pra vocês comerem, vocês tem essa alegria de fazer essa partilha uns com os outros”. O dinheiro não tá em primeiro lugar. Então vocês estão vivendo a 149
verdadeira cidadania. Isso é muito bonito, a gente tem essa compreensão. Por isso que eu fico assim, talvez alguns momentos sabendo que tem tanta gente aí passando fome. O dinheiro não tá em primeiro lugar, então vocês estão vivendo a verdadeira cidadania. Isso é muito bonito, a gente tem essa compreensão. Por isso que eu fico assim, talvez alguns momentos triste de saber que tem tanta gente ainda passando fome, é impossível imaginar que num Brasil igual o nosso ainda, no mundo tem gente morrendo de fome. Quem é culpado? Então... Eu acho que é isso, não tem projeto pra reforma agraria, a prioridade é o capital. A disputa dos grandes governantes é o modelo do capitalismo, o agronegócio. B.C. - E como está a questão das ocupações hoje? A. - Então, é difícil hoje, porque como o governo não tem projeto para reforma agraria... Eu conheço, vocês podem ir lá visitar, tem família que tá recém-assentado, que tem 18 anos que tá de baixo de lona preta, 18 anos debaixo de lona preta, não saiu crédito de habitação pra eles, certo? Então, e por mais que os movimentos sociais tenham vontade, só que eu acho que é muito doído, eu também não tenho coragem de convidar uma família pra ir pra luta da reforma agrária e ir pra um acampamento de sem terra, se o governo não tem projeto para reforma agrária, é você mentir mais uma vez pra essa família do campo que deseja ter a terra e não consegue. Sabe? Então, e os movimentos sociais tão defasados, não tem, é... avanço nenhum. Teve uma fase muito boa, muito bonita das ocupações de fazenda nós mesmos ocupamos muitos latifúndios, grandes latifúndios, com muita gente organizada, fizemos a ação radical. Pra ficar registrado, eu ajudei né, concordei com a ideia de abater 53 bois em uma tacada, tá?! Eu concordei com a ideia, votei a favor de que fizesse uma colheita de alimentos com a Scania de 60 toneladas de arroz. Que os acampamentos estavam passando fome, então era ação radical. Isso no governo do Fernando Henrique Cardoso, do Lula pra cá não aconteceu mais essas ações das luta camponesa. Existe, tá aí viva. Certo? Tem problema? Tem! Mas não tá tendo força.
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