Chamuças de Bacalhau Hello to the Queen Vs UltraLevur. Índia Minha de mota. Aprender a gostar de Chai. A Rita dança músicas do Rajastão à volta da fogueira. Estranha Menage a Trois. Sozinha com medo de tigres mas feliz.
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XI Who’s Gonna Drive me Home? Acabei de acordar. São para aí 10 da manhã (?!) e está calor. A fina cortina filtra a luz e o nosso quarto fica de varias cores. Ouve-se uma musiquinha doce tipo Hari Krisna qualquer coisa. A Rita dorme completamente enfiada no saco de cama, amorosamente abraçada ao passaporte. Como não há electricidade fui tomar banho de lanterna, coloquei-a no lavatório e fiquei uns quinze minutos meio sonhadora a ver a luz passar pela água quente e pelo vapor. Aparentemente fiquei tempo demais nesta contemplação e gastei a água toda, a Rita está agora a tomar um banho tão gelado que até canta! Saio do quarto. Que maravilha, os quartos dão para um terraço que se abre para o pátio. É tudo tão caiado que achei que estava no mediterrâneo. O pátio é um rectângulo grande com terra batida e flores, numa das extremidades tem um altar ao próprio do Sai Baba e ao lado uma vedação com uma vaquinha. E há música no ar. Cá em baixo, à entrada, onde é o restaurante quase esplanada,
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ficam duas grandes mesas corridas. Sentei-me ao pé de uns franceses que já tinham acordado e que devoravam uma espécie de sobremesa de chocolate. Como andava recentemente viciada em UltraLevur pedi um pão e duas bananas e o empregado olhou para mim como se eu fosse idiota. Aos poucos todos foram chegando, inclusive um mini gatinho que se veio aninhar ao meu colo. Tomámos o pequeno-almoço ao sol com o Antoni a explicar-nos que aquela sobremesa era, nem mais nem menos, que o famoso “Hello to the Queen”, sendo o mesmo composto por banana aquecida, bolacha esmigalhada, gelado de nata e carradas de chocolate quente. Depois daquilo a pessoa podia ir desta para melhor que a vida já tinha valido a pena. O mini gatinho olhou para mim com um ar de quem concordava e eu decidi que mais 3 UltraLevur e estava pronta para dizer “Olá à rainha”! Enquanto os franceses faziam planos para a tarde eu fui-me sentar numa varanda ao sol, ao pé de uma velhota indiana que descascava feijão verde. Voltei ao México com o D.H. Laurence e sorri àquela minha Dolce Vita. Às tantas a Rita veio buscar-me e fomos todos para o telhado. Ahhh que vista soberba de Pushkar, construída à volta de um lago em pleno deserto, com crianças a lançar papagaios de papel feitos à mão. Achámos logo que devíamos fazer a mesma coisa e chegamos à conclusão que não era assim tão fácil, porque aquela porcaria passava a vida a cair. Concordámos assim que aquilo afinal era uma grande estupidez e que giro, giro, era irmos dar uma volta de mota, e lá fomos nós à “Easy Rider”. Três dos franceses tinham-se ido embora e só tínhamos sobrado nós, o Antoni, o rapaz moreno que designaremos como “o do Gamão”, a Rapariga Shanti das Massagens e o Rambo da Picheleira, de caracóis, sendo estes dois últimos, namorados. E assim foi a Rita de mota com “o do Gamão” e eu atrás com o Antoni. Olhámos uma para a outra num “seja o que deus quiser” e agarramo-nos a onde dava. Tenho a certeza que enquanto viver nunca me hei-de esquecer desta viajem de mota, primeiro porque estava com o coração na boca a pensar a cada segundo que nos íamos espetar mas porque, ao mesmo tempo, algo me dizia que aquilo sim era viver. Em breve perdemos o rasto da mota que levava a Rita, não percebi se iam à frente ou se iam atrás mas também não importava, desde que lá chegassem.
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Também não sabia onde é que íamos mas sabia que íamos depressa. Em poucos minutos de confusão pelas estreitas ruas de Pushkar (mesmo à James Bond) no meio de vacas, vendedores e turistas, lá conseguimos sair dos limites da cidade. Ohh, eu sentia-me celebérrima ali, atrás do francês, de cabelos ao vento. Sempre que me agarrava cá atrás ele acelerava mais para ver se me metia medo e se me agarrava a ele (tipicoooo). O que teve que acontecer bastantes vezes por questões de segurança apenas, claro está. A seguir a Pushkar há uma espécie de deserto do género do Arizona, sem os cactos, mas com aquelas árvores achatadas à savana africana. O passeio demorou aí uma hora, sem grandes certezas. O cinematográfico cabelo ao vento depressa se revelou uma péssima ideia porque ia para todo o lado e rapidamente se transformou numa feia confusão de nós e pó. Mas de resto estava a ser de sonho. Pode entrar agora uma banda sonora a condizer com o dourado do deserto, as montanhas, as criancinhas que saltavam e diziam adeus, os pastores, as aldeias remotas, as mulheres que passavam carregando palha. Senti que tudo estava no lugar certo. Suponho que não se tem esta sensação muitas vezes na vida, mas naquele momento não me ocorria absolutamente mais nada. Só percebi que tínhamos chegado ao destino quando paramos por baixo de umas árvores imensas, daquelas que se encontram ao pé dos templos (gostava tanto de vos conseguir explicar estas árvores centenárias). Já lá estava uma mota e lembrei-me da Rita, onde é que ela estaria? Começámos a andar e chegámos a um templo branco escondido entre as montanhas. Uma delas tinha pintado em cor de laranja a cabeça de um elefante que reflectia num lago, onde eu vi o pássaro mais azul do mundo, palavra. Havia uma calma infinita e nós andávamos devagar para não acordar nada. Passámos o templo onde se viam uns velhos e descemos uma ladeira. Ao fundo, numa espécie de vale ficavam duas árvores gigantescas, com lianas verticais, já lá estava a Rita à nossa espera. Havia uma sombra boa e dois cãezinhos vadios que estiveram a aturar-me enquanto eles os três decidiram subir à árvore. Quando a fome começou a apertar, o Rambo e a Miúda das Massagens chegaram com batatas fritas, bolachas e pão. Comemos nas escadas brancas ao pé do lago, enquanto bebíamos um Chai oferecido por um velhote. Caramba, enquanto viver nunca mais me irei esquecer do sabor daquele chai num copo de vidro velho, a ferver nas minhas mãos enquanto ouvia o “Mausam” dos Nithin
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Sawney a meias com o Antoni. Depois disso ficamos todos calados. Não havia nada a acrescentar. Perfeição. Passámos a tarde a subir ao monte, tropecei em tudo o que era pedra mas valeu a pena. Do topo via-se o deserto, de um lado e do outro abriam-se grandes vales desenhados por um qualquer rio ancestral. Isto constatei eu enquanto olhava para a lua branca à espera da noite para ser vista. Ao descermos encontrámos umas pastorinhas, eram seis miúdas que andavam com as cabras. Aproximamo-nos devagar do sítio onde estavam, e elas riam-se meias tímidas e falavam de nós. Comeram das suas latinhas e puseram-se a jogar um jogo do género do “mata”. Tentamos trocar nomes. Não havia língua alguma a fazer ponte mas de alguma maneira compreendíamo-nos. Quando os rapazes se aproximaram elas fugiram. Pelos vistos mulher é mulher em todo o lado! Com o pôr-do-sol voltamos às motas. A viagem de regresso podia ter sido em África. Aquele dourado todo da savana, um vento seco, já mais frio e o cabelo embaraçado. Enquanto a Rita ganhava distância, eu e o Antoni ficamos para trás com o Rambo, que entretanto tinha tido um furo no pneu. Decidimos parar numa terriola para o mudar, enquanto bebíamos Chai numa espécie de mercearia ao pé de um grupo de criancinhas que se ria de nós e fugia. Em dez minutos voltamos ao Dakar, e viemos de mão dada sempre que não era preciso travar. Íamos devagar porque era suposto não acabar nunca, chamei a esta sensação o “ter dezassete anos outra vez e usar a palavra fixe, vezes demais”. Quando chegámos ao hotel, encontrámos a Rita a jogar Gamão com o francês, tudo bebia chai enrolado às mantas e havia musiquinha e animação. Ao pé de nós, nas mesas corridas estava a ser montado um jantar bufet, ia custar 150Rs e dava direito a uma festa no pátio, com música e bailarinas do Rajastão à volta da fogueira. Uh, que fim de dia ideal. O meu mini gato veio ter comigo e agarrei-me a uma pratada com tudo o que tinha direito. Fomo-nos todos sentar à volta do pátio, onde ardia uma fogueira com o que parecia uma família do deserto sentada em amena cavaqueira. Os homens falavam e tocavam e as mulheres fumavam, às vezes duas delas punham-se a dançar e a rodopiar com aqueles vestidos pesados cheios de cor e metal. Era tudo muito excitante e exótico ao som daquelas flautas que encantam as serpentes. De repente uma delas veio buscar a Rita para dançar. E aí está ela de joelhos no chão a abanar os braços ao som dos tambores, que risada, podem imaginar o jeito dela.
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Com o tempo também isso acabou e as pessoas foram para os quartos. Alguns de nós e outros estrangeiros ficámos a falar, à volta da fogueira, sob as estrelas. Falámos de filmes e, acreditem ou não, acaba por ser um elo de ligação espantoso. Toda a gente conhece a pirosada do Titanic. Lá para a meia-noite decidimos ir para o quarto. E pelos vistos essa noite teríamos uma surpresa. O Antoni tinha ficado sem quarto e ia dormir connosco. Oh my God. Olhei para a Rita e contei-lhe tudo “Ohhh Rita, o Antoni quer me saltar para cima. Espero que não se atire a mim a meio da noite”. A Rita só se ria e declarou “Eu é que não durmo com ele, sou uma mulher casada.” Para aliviar o ambiente, decidimos fumar uma ervinha. Ou melhor quem decidiu foi o Antoni e a Rita que eu jurei para mim mesma que me queria manter sóbria nessa noite triangular. Passados quinze minutos de fumo estava tudo mais relaxado e apagamos as luzes. Mal eu adivinhava o longa que aquela noite iria ser. Bem, mas voltemos à menage á trois. Para quebrar o gelo a Rita decidiu propor o seguinte jogo sedutor: -Pessoal, vou propor o seguinte jogo sedutor. Cada um de nós trauteia uma música e os outros têm que adivinhar (?! É bem, Rita.) Aquilo começou pelo Esquadrão Classe A, continuou com os Marretas a Missão Impossível, o Jurasic Park e acabou com o Titanic, claro. Sei o que estão a pensar. O ambiente não era propriamente erótico e ainda bem. Que eu não queria cá francesices a três. -Bem, boa noite pessoal. Olha que eu! Ainda há duas noites estava a sonhar com este tipo e agora cá o tenho. Nem precisei de fazer nada, foi só dizer Ganesh três vezes e catrapus na minha cama. Estava eu a ponderar se me havia ou não de dar ao desfrute, quanto… -Ó Mami…. -Rita. -Estas acordada? -Estou. O que é que se passa? -Nada. Quer dizer. Acho que não me estou a sentir muito bem….. Acho que não devia ter fumado aquilo.
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-Vá Rita, não stresses. Eu é que tenho que stressar com este tipo aqui ao lado que está aqui, está armado em Napoleão. Vá respira fundo e vais ver que isso passa. Caraças só faltava mais esta, a Rita a flipar e o tipo a chegar-se… -Ó Mami… -Rita… -Desculpa lá estar a chatear. -Na boa Rita, não chateias nada. -É que o meu coração está a bater muito forte. Estou um bocado preocupada. -(Porra) O que é que podemos fazer? Queres andar um bocadinho para ver se isso te passa? Levantamo-nos as duas a rir, no meio do escuro. O Antoni só dizia “Is everrything zokey?” e nós dizíamos “Sim, sim está tudo bem, dorme mas é, vamos só lá fora dar uma voltinha” E lá fomos nós para o terraço andar para trás e para a frente, a tiritar de frio. A Rita só se ria e eu rezava para que não lhe desse ali uma sulipanta. Dez minutos depois estávamos de volta à cama. E eu voltava aos meus devaneios. Já tinha passado meia hora e tudo estava silencioso quando…. -Ó Mami…Aii, isto não me está a passar, estou mesmo preocupada, se calhar vou morrer. Que merda e agora. -Ó Rita, isso se calhar é fome. Devíamos comer qualquer coisa. -Pois que seca mas não temos nada aqui. E não sei se há alguma coisa aberta a esta hora. -Bem só há uma maneira de descobrirmos ein? E eu também já estou um bocado farta de estar aqui no meio. Abre aí a luz. Antoni, toca a acordar que temos que ir à vila comprar qualquer coisa para comer. O desgraçado do Antoni estava com cara de quem não estava a perceber nada. Mas isso é normal naquelas coordenadas. Era a primeira vez que dormia com duas portuguesas, afinal! Levantamo-nos os três, enrolamo-nos aos velhos cobertores e saímos do quarto de lanterna em punho. Eram ai umas três da manhã e não se via um palmo à frente dos olhos. Mesmo. Fomos os três bem juntinhos a tropeçar em tudo até à rua e depois até ao centro. A cidade parecia que tinha sido evacuada.
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Do animado mercado, nem vestígios. Só víamos vultos de vacas, cães e pessoas por baixo de cobertores. Algures neste reconhecimento constatámos que não ia chover Chocapic com leite de maneira nenhuma por isso mais valia não sermos assaltados. Voltámos à cama. Já aqui estamos há uma hora, a Rita parece ter adormecido e o Antoni está a respirar tão baixinho que não deve conseguir pregar olho. E eu estou muito quieta inquietantemente. Só me apetece dormir, estou tão cansada e esta tensão... -Ó Mami.. -Porra Rita que susto, achei que já estavas a dormir. -Óh, não consigo. Estou mesmo nervosa. Achas que me podias fazer um favor… -Claro que sim, diz aí. -Achas que me podias fazer festinhas na cabeça e falar um bocado para eu me distrair. Ahhh Ganesh, Incredible Índia. Quem diria que ia acabar a noite na cama ao lado de um francês a dar festinhas na cabeça…..da Rita. Não sei se o Antoni estava a perceber alguma coisa daquilo mas devia achar que éramos perfeitamente doidas. São 5 e meia da manhã e se a Rita não está já a dormir então decidiu fingir. Eu é que já não aguento mais. Levantei-me arrastando dois cobertores e saí do quarto. Fui muito devagar pelos terraços e subi ao último andar. Havia umas cadeiras de palha com costas grandes ao pé da varanda. Peguei em duas e ajeitei-me o melhor que pude. A escuridão era total. Só se via um grande céu estrelado. Finalmente tinha espaço. Finalmente… “Olá, que barulho foi este?” -Antoni o que é que estás aqui a fazer? -Ouvimos uns barulhos estranhos e ficamos preocupados, está tudo bem? -Sim, sim. Volta para a cama. Eu quero ficar aqui. SOZINHA. Foi assim que eu percebi que não queria romances com ninguém. Que esta viagem já era suficientemente louca e excitante por si só, quanto mais para Kamasutras (pensava eu). O céu é gigantesco e o frio é seco. Aqui estou eu feita múmia, só com os olhos de fora. Com medo da escuridão, dos barulhos, da vaca que muge
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assustada, com medo de tigres. Mas nem me mexo, estou no sítio ideal. O que tiver que acontecer que aconteça, sinto uma paz avassaladora. Debaixo deste universo todo sou só eu. Eu toda e feliz. Feliz.
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