Chamuças de Bacalhau A última viagem de comboio. É fácil ser-se magro quando se é janaiino. A derradeira viagem é de riquexó. Como tomar banho de lavatório? O avião do terror. Entre uma sandes de queijo esquisito que cheira a bisavô enterrado e o vomitado de bebe indiano. O Grande Final.
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XXXI Never Ending Story
-COFEEE-OFEEE-OFEEE-OFEE- berrava o indiano ao meu lado. -Ahhh seu estupor, já começaste? Ritaaaa tira-me estes gajos daqui. -Madam want cofeeee. -Vai mas é ver se chove pá! Bem, estávamos de regresso ao comboio, eram 6 e meia e começava o canal de vendas directas. Nem me senti com vontade de mandar vir tal era o sono, a dor de barriga das especiarias todas e a dor do escaldão. Ir à casa de banho no comboio era a beleza que se sabia, lá tentei enfiar as lentes de contacto às cabeçadas com o espelho podre. Passámos grande parte da viagem na plataforma entre carruagens, em frente à porta, a ver a paisagem. O ar era bom, o comboio ia rápido e misturava as cores todas do campo, dos desertos, das aldeias, das manadas que pastavam, das palhotas de bosta de vaca, tudo. Nesta viagem conhecemos também um casal de janaiinos que tinham ido viver para os Estados Unidos, tiveram-nos a contar o que podiam comer, que era nada que um dia estivesse estado vivo (ui), e aconselharam-nos um templo hari krishna em Bombaim. A verdade é que não houve templo para ninguém, mal chegamos à caótica estação de Bombaim tentamos arranjar logo boleia para o aeroporto. Andava um Sihk com um ar manhoso atrás de nós e lá entramos para o táxi dele. O táxi tinha um ar ainda mais manhoso e velho e ainda não tínhamos andado um minuto, quando a Rita me lança o seu sinal de pânico e “stoppp, stop, queremos sair” O homem não percebia porquê mas não se brinca com a intuição Ritiana e lá ficamos as duas apeadas, no meio do nada, entre mil maldições cuspidas pelo taxista. Felizmente que na Índia tudo se perde para tudo se voltar a encontrar e ainda não tínhamos dito Ganesh já tinha aparecido da poeira um sujeitinho 2
guiando um ferrugento Riquexó. Nem pensámos duas vezes, se era a última viagem por Bombaim, tinha de ser num riquexó, poupamos 200Rs e ainda conseguimos comprar um maço de cigarros já estreado (pois cá fuma-se a granel) e depois de muito transito lá acabamos por chegar! O aeroporto internacional de Bombaim ainda estava em obras e cheirava a novo, coisa rara nesta nossa peregrinação plebeia. E de tamanho era pequeno, pelo menos a zona do check-in. Como ainda faltavam algumas horas para o avião, resolvemos ir tomar banho. Abordámos a casa de banho dos “phisically chanlendge” vulgo deficientes, e lavámos cabelos, dentes, pés e tudo o que havia pelo meio. Era cómico ver a cara das pessoas quando viram sair do WC reservado, duas miúdas completamente encharcadas. Mas fartas de gente surpreendida à nossa volta, já nós estávamos. O free-shop estava confinado a três lojinhas com preços exorbitantes e só consegui comprar umas bolachas, o resto do dinheiro gastei-o a fazer negócios escuros com um empregado do café, que me vendeu à candonga, 1kg de preparado de chai. Era só juntar água e tinha-se chai em qualquer lugar. Depois de quatro horas à espera lá entrámos no avião, “Jet Airways here we go again”, eu estava finalmente descansada, se a viagem corresse como a primeira ia ser um repouso divino até casa. Mas não foi bem isso que aconteceu. O avião estava apinhado de gente, parecia o 746 que sai do Marquês de Pombal para a Damaia, a vomitar povão por tudo o que é costura. E, horror dos horrores, eu ia ficar na cadeira do meio! A Rita estava à janela e ao meu lado esquerdo estava um indiano gordo com os seus 27 anos, ocupava a cadeira toda e ainda resvalava para a minha. Há que dizer que não dormíamos há quase 48 horas e que ainda não tinha comido nada de jeito nesse dia, de modo que estava enjoada que nem um peru. Lá vieram as lindas hospedeiras com uns sprays desinfectantes e depois de toda borrifada lá me espetaram com uma sandes de queijo esquisito que cheirava a bisavô enterrado. Só de cheirar aquilo deu me logo para ir para a casa de banho vomitar a alma, só que o mesmo deve ter acontecido ao resto da população flutuante e toda a gente se lembrou de fazer o mesmo antes de mim.
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Bem, aguenta-se, pensei eu, “shanti, shanti, Ganesh, sais de frutos” tentei acalmar o espírito e decidi ir sentar-me na fila da frente ao pé do corredor onde já estava uma mãe e um bebé. Dormitei cerca de quatro horas de um lado para o outro na cadeira, e só despertei porque de repente o bebé tinha fugido à mãe e estava em cima de mim, com os olhos esbugalhados. Credo, só me faltava esta, aturar um… (Blhééééé) Onomatopeia improvisada para designar o nojento vomitado de que fui vitima da dita criancinha. Toda eu estava suja, a mãe tirou logo a criança com grandes desculpas e eu entrei em pânico. Não há descrição para o cheiro a vomitado indiano. Forcei a fila da casa de banho e fui tentar lavar-me o melhor que pude. Os idiotas dos hospedeiros em vez de irem buscar uma esfregona atiravam-me hot towels e borrifavam perfume, de modo que eu tresandava a tudo quando voltei para ao pé da Rita. Não, isto não pode ficar pior, dizia eu resistindo ao desconforto, é que não pode. Merda pá! A caneta bic com a qual assinava a declaração para entrar no aeroporto tinha acabado de me rebentar nas mãos. Chamem-lhe pressão eu chamo-lhe “Diabo que o carregue”, fiquei com as mãos pegajosas e azuis, ia ser preciso duas semanas para aquilo me sair debaixo das unhas. Foi então que, no auge da fúria, o gordo rapaz que estava ao meu lado decidiu dizer “Wich country?” E eu olhei para ele, sem acreditar que aquilo estivesse a acontecer, e depois olhei para mim, completamente nojenta, cansada, cheia de dores e peguei nas últimas forças para dizer: -
INDIAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA. A risota que se seguiu foi total, não adiantava resistir! Era isso que este
louco país fazia - levou-nos até ao fim da força, estoirou-nos a paciência, gozou com as nossas caras, enganou-nos à grande, vomitou-nos em cima, deu-nos febres, escaldões, problemas intestinais e insónias infernais, tudo isso para nos ensinar a rir, quando só apetece gritar. E foi então que olhei pela janela e vi que estávamos quase a chegar. E fechei os olhos com força para me lembrar de tudo o que tinha acontecido, as
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aventuras malucas, as viagens nos autocarros, as coisas maravilhosas que vimos, as músicas, os sinos e as rezas a toda hora, as águias sempre a planar, os estranhos sabores que nos habituamos a gostar, os cheiros e as cores, e as cidades fantásticas. E lembrei-me daqueles sentimentos contraditórios a toda a hora; o medo do desconhecido, a surpresa, o cansaço, a hospitalidade, a irritação, a alegria, o medo outra vez, a lata dos indianos, o sorriso dos indianos. Imaginei logo o final de um daqueles filmes pirosos que víamos, com toda a gente a dançar feliz, depois de terem desempenhado o seu papel, melhores ou piores. Agora já os reconhecem também, a Luísa, o Prince e os irmãos, as cunhadas, a mãe e os sobrinhos, o Lucky, o Atish, as coreanas, o Antoni, a Premila e o Adolfo, o Guru, os franceses de Pushkar, o australiano doido, o jardineiro careca, o André, as miúdas do porto, o nosso driver indiano, o Ben do Kentucky, os indianos todos que tínhamos conhecido e os viajantes também, e olhem é a vaca dos três olhos, e claro a Rita e eu. Suponho que é assim que acaba a nossa aventura, numa festa gigantesca, cheia de pós coloridos e música estridente, agora toda a gente dança e ri, porque no próximo minuto, nunca se sabe o que pode acontecer….
Afinal, in Índia ….Everything is Possible!
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FIM
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