Chamuças de Bacalhau Duas viagens de autocarro num só dia. Começas por comprar bolachas e acabas, às escuras, na casa de banho de uma velhota. É o que dá escolher o livro pelo cheiro a amêndoas. Morrer na Í ndia enquanto jovem é um chique relativo. Vida dentro de um aquário. Três desejos não realizados. Sonhar com Barry Lyndon.
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XVII Viva la Carrinha Mágica
Eram seis da manhã quando o despertador tocou (fuck). Uma vez mais, fomos feitas toupeiras, às apalpadelas pela cidade que ainda dormia. Desta vez o caminho foi mais fácil porque era sempre a descer. Só as vacas mugiam à nossa passagem. Quando saímos das muralhas apanhámos um riquexó que nos prometeu levar ao autocarro. Ainda era de noite quando entrámos para o nosso velho meio de transporte. Tivemos logo uma discussão enorme porque não quisemos separar-nos das malas. Acabámos por ir mal deitadas em cima delas porque, de qualquer forma, também não tínhamos muito espaço no nosso lugar, uma desgraça. Passei as seis horas de viagem a dormitar. A única coisa que me estragava os planos era a buzina do autocarro. Parecia a banda sonora de um filme de terror. Nunca ouvi nada tão sinistro e fui o tempo inteiro a rezar ao deus elefante para que não tivéssemos um acidente, eu ia detestar morrer a ouvir aquele requiem de trazer por casa! Quando chegámos a Jodhpur, fomos despejadas numa bomba de gasolina. Estávamos absolutamente moídas e cheias de vontade de ir à casa de banho. Neste ponto tudo se passou muito depressa. Apanhámos um riquexó para os autocarros seguintes, comprámos um bilhete em sleppers (segundo o trafulha já só podia ser em sleppers), atravessámos a rua para comprar bolachas e fomos a uma loja de tintas pedir para irmos à casa de banho. Estávamos com um ar tão desgraçado que os homens devem ter achado que andávamos há dez anos a fazer uma peregrinação a Meca e lá nos deixaram entrar em casa de uma velhota. A dita velhota tinha uma casa de banho sem luz e que se resumia a um buraco. Não prometi ser higiénica porque não conseguia ver um palmo à frente dos olhos. A senhora não falava inglês e ficou ali connosco à espera que o negócio fosse feito (bizarro demais para esquecer). Viemo-nos embora porque o autocarro ia partir. Tudo isto se passou em apenas quinze minutos e de mochila às costas. Quando finalmente dei por mim, estava deitada dentro de um aquário.
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Esta
história
de
sleppers
é
uma
coisa
bestialmente
estranha.
Basicamente íamos deitadas ao comprido com as malas a fazer de almofada, dentro de um compartimento em vidro, cuja “porta” deslizava tipo vitrine de mercearia. Os bolos e as chamuças devem sentir-se mais ou menos assim. Como ficávamos à altura das cabeças dos tipos que iam de pé parecíamos uns cãezinhos na montra da loja de animais. Eu que estava rabugenta como tudo, deitei-lhes a língua de fora, peguei na manta e tapei o vidro com ela. Ficou perfeito e ganhou logo um ar Moulin Rouge. Durante sete horas ficámos naquela posição, a Rita ia mal disposta, a ouvir musica e eu tentava ler, sem entusiasmo, as aventuras pseudo-romanticas da irlandesa quase frígida sob a mística influência de Quetzalcoatl e de mais uns quantos mexicanos (é o que dá escolher o livro pelo cheiro a amêndoas, devia era ter trazido “A Virgem e o Cigano” que dava mais safadice de certeza). Passámos por paisagens tão diferentes como desertos áridos e florestas viçosas, o autocarro ia devagarinho a subir os caminhos da montanha e eu nem queria olhar para o lado, não fossemos cair num precipício. De qualquer maneira se ficássemos numa ravina era chique a valer, seria para sempre aquela tia que tinha morrido na Í ndia. Com um retrato sempre jovem no móvel poeirento. Já imagino as conversas “Quem é esta avô?”, “Oh é a tia-avó Mami, ficou pelas Í ndias”, “Uau, era bonita a valer”, “Sim, e ficou debaixo de um camião, agarrada a rolos de papel higiénico”…bem talvez não fosse assim tão chique, afinal. Acabámos por ver um belo pôr-do-sol, a única diferença é que não íamos a camelo, mas o sítio cheirava a qualquer coisa semelhante. Chegámos a Udaipur à noite. O mal destas viagens de autocarro é que demoram mais seis horas do que é agradável, nunca se sabe quando é que se vai à casa de banho e pode-se sempre morrer pelo caminho. Mas tínhamos chegado a mais um destino.
Udaipur estava com as luzes apagadas por isso não vimos nada de especial. Eu estava-me a sentir particularmente pegajosa e já não me lembrava te estar tão cansada desde, bem, acho mesmo que nunca tinha estado tão estoirada (nem mesmo depois de 9 dias seguidos de Estoril Open sem fazer nenhum, vestida à tenista-sexy, credo). Só precisava de três coisas: uma bela refeição, uma casa de banho decente e uma noite descansada. Mas ainda não sabia outras três coisas, que esta ia ser a noite 3
mais mal dormida de sempre, que não ia ter uma casa de banho só para mim e que o jantar ia estar frio. É por estas e por outras que a ignorância iguala a felicidade. Infelizmente, ninguém é ignorante por muito tempo. Tínhamos a referência de um hotel chamado Pushkar. Partimos do princípio que um hotel chamado Pushkar devia honrar o próprio nome, com características irmãs às da bela cidade. Mas não, esta guest house, de Pushkar só tinha a arquitectura, a casa de banho era uma e comum para todo o hotel e nem electricidade tinha, e eu precisava tanto de filosofar demoradamente. Bem, o quarto era cómico. Tinha espaço para a cama e nada mais. A porta e a janela não tinham vidro mas uma espécie de uma rede e uma cortina. Ainda por cima o dono tinha sido particularmente arrogante e nem sequer quis regatear. Eu, pela primeira vez, estava furiosa. Nem falei muito ao jantar para não dar bronca. Mas aquilo não podia estar a correr muito pior. Estávamos no terceiro restaurante que tínhamos tentado, e ouvíamos um grupo de italianos a rir a falar altíssimo. Tudo me estava a enervar, os sons pareciam mais agudos, os empregados mais idiotas, a comida mais picante. Quando finalmente nos deitámos reparamos que se ouvia tudo dentro do quarto. Pudera, estávamos a dormir praticamente no corredor. E foi assim que batemos no fundo e ficámos a noite toda em claro a ouvir uma partida de bilhar entre três irlandeses que estavam no bar do telhado. Cada vez ficavam mais bêbados e mais javardos. Cada vez se ouviam mais tacadas para acertar no buraco e eu por dentro dominava a raiva. Filhos da mãe. Lá acabei por dormir uma hora, que nem descansada foi porque sonhei com o Barry Lyndon (sem a musiquinha tão linda). Acho que foi um dia com irlandeses a mais. Ai, Udaipur não estava a correr nada bem…
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