Chamuças de Bacalhau 21

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Chamuças de Bacalhau Ir ao WC no comboio é pior que os Jogos sem Fronteiras. Goa é tipo videoclip do Manu Chao em tons de verde-Sumol. No Paraíso peca-se tudo. Santas prainhas da Gama. Se a vaca é sagrada, o prato é altar. O “povo eleito” e o LSD. O lobo mau e a cabana de palha.

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XXI Quem tem medo do lobo mau?

Acordei e não percebi logo onde estava, mais uns minutos e lembrei-me – O comboio! Sai da cama “de pijama” e olhei para as 6 pessoas que ressonavam à minha volta (que lindo que é o mamífero em cativeiro). Fui às apalpadelas até ao WC, e fiz a higiene possível na espartana e nojenta casa de banho da carruagem (coisa difícil e estúpida como as fantásticas provas dos Jogos sem Fronteiras). WC que não é mais que um buraco no chão que dá para o exterior, prometendo algumas correntes de ar e muita bagunça. Havia uma espécie de lavatório sujo e um espelho velho que tentei usar para enfiar as lentes de contacto de qualquer maneira. Os dentes foram esfregados a seco (já que não me arriscava com a água de lá), e vim a chorar de flúor de volta para a cama. Comi pão, bananas e uma overdose de Ultralevur quando, de repente, o comboio parou. Eram 9 da manhã. E era Verão também. Saímos na estação mais perto de Arambol. Não é propriamente uma estação, é um “sítio”. A paisagem à nossa volta tinha mudado completamente. Não se viam casas sequer, estávamos no meio de uma floresta tropical. Não sabíamos muito bem para onde ir por isso decidimos andar pela estrada em terra batida, e esperar ao pé de uns nativos, por um autocarro. As coreanas das mascarazinhas também queriam ir para Arambol e decidiram seguir-nos. Num quarto de hora chegou o autocarro. Parecia que tinha saído de um videoclip do Manu Chao, era pequeno e colorido, e tinha estofos de zebra e autocolantes por todo o lado. Subimos e pagamos 15 Rs. A viagem foi feita com uma lagrimazinha de emoção. Tínhamos mesmo entrado no Paraíso. A paisagem à volta era verde-Sumol, havia palmeiras por todo o lado, rios e

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arrozais, papagaios e outros bichos. Tudo era relva, e sol e sombras frescas. Os locais andavam em motas velhas ou bicicletas, as mulheres estavam bronzeadas e enfeitavam os cabelos com flores. Mami e Rita só diziam “que espectáculo, que espectáculo”. Havia pequenas aldeias perdidas no meio de autênticos oásis, cheirava a fruta ao sol e a festa. Parecia que estávamos num filme. Fomos largadas em Arambol, no centro da vilazinha. E fomos logo resgatadas por uma velhota que nos queria impingir um quarto. Carregámos as mochilas mais 20 minutos, e chegamos à conclusão que o dito quarto ficava na pobre casa de uma anciã centenária, e nós estávamos à procura de qualquer coisa com menos 80 anos, por isso fomos perguntando onde era a praia. Estávamos ofegantes do calor e da mochila. Eu tinha pela primeira vez, trocado as pesadas botas pelas havaianas, mas claramente ainda estava com roupa a mais. Algures encontrámos um velhote que nos apontou a praia. Enquanto entrávamos numa rua com tendinhas a vender tudo e mais alguma coisa, o ambiente tornava-se cada vez mais jovem e colorido, o coração batia cada vez mais de excitação. Já nos cheirava a mar, apressámos o passo por entre os milhares de coqueiros que faziam de floresta, de repente, como nos desenhos animados, afastamos as árvores com as mãos e encontrámos…. Oh, só duas portuguesas há 20 dias na louca Índia, conseguem perceber a beleza, a emoção, o êxtase e a absoluta maravilha de se ver uma praia! Uma praia até perder de vista, uma praia de areia branca e música no ar, uma praia de…. Não interessava continuar a ode, atirámos as malas para o chão e fomos a correr para a água, tipo aquela malta que chega aos 40 sem nunca ter visto o mar e depois quando lá chegam é de qualquer maneira. Ah, a água era quente e transparente, tipo calendário de bolso da Piz Buin, nos 80’s. O que nós chapinhamos e saltamos, aquilo era melhor que a Lagoa Azul, aquilo era melhor que Acapulco nos anos 50, aquilo era melhor que a Quarteira antes do ser humano existir, aquilo era melhor que tudo.

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A partir deste momento, o diálogo entre as duas viajantes não ia muito além da glória daquelas santas praiínhas que o nosso grande Vasquinho da Gama tinha um dia descoberto. Assumimos logo que aquele amor todo ao território só nos podia vir já nos genes lusos. Que Goa era o Éden, o Shangrilá, o Nirvana, eu sei lá. Goa é que era! Depois do banho decidimos ir procurar casa. Percebemos que na imensa praia, por entre coqueiros havia inúmeros aldeamentos de cabaninhas. E por isso fomos visitar algumas. À quarta encontramos o ideal. Ia-nos custar 250 Rs e chamava-se Cock’s Town (?!). Tinha uma série de cabaninhas em círculo e uma espécie de esplanada num restaurantezinho à entrada. Era muito calmo, e tinha a tocar um mantra muito chill-out-shanti. Escolhemos a primeira cabana, que era como a do porquinho mais novo, feita de palha. Depois de deixarmos as malas fomos mapear o território. A única coisa verdadeiramente chata é que tínhamos que andar sempre com a bolsa do passaporte atrás, mas tirando isso estávamos em liberdade. Andámos e andámos e andámos mais um pouco, quando tínhamos calor íamos para dentro da água, estava tão bem temperada que se podia dormir lá dentro, era surreal pensar que estávamos em Janeiro. Sempre que tínhamos fome, parávamos numa esplanada de palha e comíamos. O dinheiro que levávamos dava para fazer banquetes, mas invariavelmente ficava-me pelas naans e pela coca-cola, devido à minha bela condição orgânica. O dia foi passado neste sem fim de pecados. Suponho que é isso que se faz quando se chega ao paraíso, peca-se tudo! Andámos pelas tendinhas a ver coisas para comprar, a ver estrangeiros jovens e felizes. Toda a gente aqui é jovem e feliz, e a que já não é jovem é tão feliz que parece jovem também. Com isto tudo a noite foi chegando e tínhamos decidido ir jantar fora. Não tínhamos grande alternativa, até porque a praia, à noite, transformava-se no pátio de uma animada celebração gastronómica. Fomos tomar banho ao “resort”, ou seja, um duche fresquinho às escuras num barracão velho, e levamos a lanterna a jantar, porque de repente, a única luz vinha das estrelas.

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Escolhemos um belo restaurante e deslumbrei-me com um grandessíssimo bife. Um bife de vaca, de uma parte qualquer tenra da vaca. As benditas vaquinhas que se passeavam gordas e tentadoras à frente dos nossos garfos tinham uma vida ambígua em Goa, terra com mais cristãos de hindus. E como se aprende nestas alturas, para comer e para beber, não há como o cristão, vocação que remonta já às Bodas de Canaã, claramente! Foi por isso que ao ver “beef” no menu eu nem quis saber de mais nada. E apareceu-me, na nudez do prato branco, esse naco macio e saboroso a acompanhar o arrozinho solto. Que manjar, caríssimos! Posso confessar que ali, naquele momento, também eu adorei a vaca. Depois do banho e da refeição. Eu sentia-me como quando era criança, no fim de um dia de verão, em cheio. A bem dizer, cheia de sono. A Rita encontrava-se num estado igualmente letárgico, e sorria de satisfação. Decidimos então voltar para o nosso calmo refugio para passar a mais sã das noites. Só neste paraíso poderíamos finalmente fazer as pazes com o sono, mas a valer. Por isso pegámos na lanterna e fomos às apalpadelas, pela areia fresca, descobrir onde ficava a nossa cabaninha. -Rita, lembras-te onde é que ficava a nossa cabana? -Sim, acho que era mais ou menos por aqui. -Pois também acho, mas não era ali aquela? -Não, não pode ser aquela, aquela tem…. Aquela tinha à porta 200 israelitas, entupidos em LSD e outras iniciais, a dançar à epiléptico, no mais belo e psicadélico concerto de música trance, que já ouvi (o Boom ao pé daquilo é uma colónia de férias). Era um estranho espectáculo, sobretudo porque estava tudo praticamente às escuras, não fosse uma outra luzinha saltitante. Portanto, o nosso perfeito Éden tinha-se transformado num after-hours, made in Israel. E para dizer a verdade, estávamos ligeiramente apreensivas para nos meter lá no meio. Decidimos por isso, fazer tempo, para ver se aquilo acabava entretanto, ficámos assim sentadas na fogueira que ardia alegremente, uns metros à frente do “resort”.

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Passados cerca de 20 minutos, estávamos rodeadas de israelitas, exemplares perfeitos da espécie profeta-dos-ácidos, que nos tentavam impingir as ditas substancias e aliciar ao ritual de dança desenfreada que estava a ser executado pelo povo eleito. Posso acrescentar, sem embaraço, que a última coisa que me estava a apetecer naquele momento, era uma orgia de notas electrónicas e barbas por fazer, por isso pusemos o ar mais invisível do mundo e corremos para a nossa cabana. Quando chegamos lá dentro, reparamos que o dito casebre (que neste momento abanava por todos os lados) não dava propriamente para fechar por dentro. Como o único objecto que havia no “quarto” era a cama, decidimos empurra-la contra a porta, para esta ficar barrada. Em menos de um fósforo enfiamo-nos por baixo do mosquiteiro. A música era ensurdecedora, e nós, os porquinhos mais novos, já nos tínhamos arrependido de ter escolhido a casa de palha. Pois o lobo mau tinha chegado, e a turba dançante tinha começado a bater e uivar à nossa porta, literalmente. E passámos a noite sem saber se a cabana iria ou não pelo ar….

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