Chamuças de Bacalhau Milagre indiano: pastelaria alemã. Saber que estamos a ser enganadas sabe pior que leite de iaque. Consulado em alerta vermelho. Rishikesh tem duas pontes. Tentativa de bebedeira. Sonhar com tigres ao som do mar.
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V. Who Framed Portuguese Rabbit?
“Ahhh. Nada como uma cama fria para afastar a preguiça.” Umas horas em Rishikesh e já falava como um verdadeiro guru. De facto, até já tomava banho como um verdadeiro guru, que é qualquer coisa como saltitando e dizendo palavrões, entre grossas pingas de água gelada. Depois daquele vigor todo, só mesmo a paisagem para alegrar a alma. Espreitei pela janela e inspeccionando a zona, dei com um maravilhoso cafezinho em cima de uma colina, ao pé da ponte suspensa. De longe, podia ler-se German Bakery. Não faço ideia que tipo de bakery fazem na Alemanha, mas recusava-me a voltar à sopa de tomate logo de manhã. Deixei a Rita a acordar e fui desbravar terreno. No caminho, comprei umas calças roxas à Alibabá por 100 Rs, que iam ficar maravilhosas com a camisola cor de laranja. Esta ousadia cromática só se pode consentir ou no Carnaval ou na Índia, claro está! Quem nunca passou quatro dias a comer picante, não sonha o que se sente ao fincar o dente num croissant com chocolate feito nos Himalaias. Não me venham com histórias de autenticidade e viver a Índia verdadeira. Aquilo eram croissants, pãezinhos de leite, apple strudels e eclairs. Aquilo era a “Musica no Coração” dentro de uma vitrina. Sentei-me ao sol e comi desvairadamente, mas devagar, aquelas iguarias acompanhadas por leite de iaque! Não me apetece comentar a bebida neste momento. Fiquemos pela pastelaria maravilhosa. A Rita, chega entretanto e afinfa-lhe na patisserie enquanto enaltece as belezas naturais daquela esquina: os pedintes que dormem e os macacos que
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brincam. Uma holandesa mete conversa, perguntando que língua estranha era essa que falamos. “Português, minha senhora, já fomos donos de metade do mundo, narram as nossas lendas na pré-primária.” Ahhh, como é bom falar inglês com turistas. Meia hora de café e já estamos a contar a nossa aventura; o caos de Nova Deli, a família porreira, o driver iletrado, as noites mal dormidas. É no meio desta troca de cenas que somos alertados, por mais do que um dos turistas, que nos ouve, que estamos a ser enganadas à grande por esse tal de Prince. “Como enganadas? Mas eles foram tão simpáticos, nós é que lhe pedimos ajuda e tudo…” Pelos vistos a ajuda pagava-se. O dinheiro que íamos dar, daria para viver na Índia não 20 dias mas um mês inteiro, com dormidas, transportes, comida e souvenireszinhos para a famelga. E pagar antecipadamente era a loucura pois eles ainda nos deixavam apeadas numa berma qualquer. Em poucas palavras, tínhamos caído no truque mais velho da Índia. Ficamos chocadas, depois furiosas, depois tristes, depois furiosas outra vez e depois assustadas porque não sabíamos como íamos sair desta. Um argentino, que andava ali há dois meses “à procura de qualquer coisa”, disse-nos logo que o melhor era esquecer o dinheiro e não dizer mais nada ao Prince. Basicamente fugir! Eu ripostei logo que “fugir era o tanas que não tinha andado 2 meses a fazer figuras tristes nos Armazéns do Chiado para agora perder 250€ com um indiano qualquer.” A Rita decide então telefonar para o Atish que logo comenta que 500€ não é tão caro assim, isto porque não sabe ele que não estamos a dormir no Ritz cá do sítio. Mas avisa-nos que é melhor ter cuidado com a família de indianos que isto nunca se sabe. “Wrong answer Atish” Agora a Rita começa a ficar nervosa e eu por acréscimo. 3
“E se telefonássemos para a embaixada a contar tudo?”, “Rita não achas que estamos a exagerar um bocado?” Bem, meia hora depois e já estava o consulado avisado que andávamos a ser enganadas e queríamos sair fora da jogada e que para o caso de desaparecermos saberem quem prender. Despedimo-nos dos amigáveis turistas, prometendo dar notícias e ainda fomos mandar um email ao Prince a pedir “uma factura descriminada” das despesas (olha quem!!) O Balú esperava por nós no Hotel. Tínhamos combinado com ele mais cedo mas “bolas não íamos andar às ordens de um indiano”. Passamos mas foi o dia a andar pela vila ao longo do rio. Aqui o Ganges tem uma corrente forte e é esverdeado, reflectindo as montanhas. Nas margens, onde não foram construídos os degraus sagrados (Ghats), ficam minúsculas praias, onde mulheres lavam e batem na roupa (batem realmente na roupa com um pau!?). Aproveitei a Riviera para ir meter os joelhos dentro do Ganjes e tirar a primeira das fotos-fetiche.
Rishikesh é a capital do Yoga. Centenas de turistas de todo o mundo pagam balúrdios para se enfiar numa cela de um Ashram, comer cenouras e rezar mantras o dia todo. E tirando estes, vêem-se mendigos que fumam erva e apanham sol. Consideram-se Hollymans e tentam sacar dinheiro ao fazer as bênçãos. Vendedores de fruta e de sumos de cana, misturam-se com vendedores de postais e autocolantes de deuses. Barquinhos fazem a travessia e burros carregam tijolos. Tudo muito Shanti. E depois existem os templos, que podem ser só montras ou edifícios abertos, com pátios de acesso ao rio. Todos têm cores, música, correntes de ar e sapatos à entrada.
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Para um cristão, habituado à soturna grandeza das catedrais, o hinduísmo é de uma liberdade inebriante. Somos convidadas a entrar à vontade nos templos e não existem barreiras, portas ou seguranças. Quem lá está, pega-nos pela manga e mostra-nos os deuses, fazendo-nos repetir os seus difíceis nomes: Saraswati, Bhuvaneshwari, Danwantri, “ahh este conheço eu, é o macaco, Hanuman”, “yess, very good Hanuman”. No fim, lá nos põem a pinta na testa e pedem uns dinheirinhos. Aí vamos nós, abençoadas por aquele panteão todo. E com isto andámos maravilhadas, atrás do nosso guia meio estúpido, que só conseguia ensinar que Rishikesh tinha duas pontes. Demos a volta à vila dos dois lados, comprámos bananas e uns pãezinhos de leite. Quando íamos a subir a íngreme ladeira, pensei que aquilo mais parecia a Beira Baixa (estamos sempre a tentar encontrar Portugal no resto do mundo). Foi aí que a Rita teve uma ideia genial. O que nós estávamos a precisar mesmo, era apanhar uma piela ancestral no terraço do hotel, para esquecer as amarguras. “É pá Rita… é mesmo isso. Umas cervejinhas ao Sol vão fazer milagres.” E lá fomos nós, à procura das cujas, em tudo o que era tendinha ao longo do caminho. Depois de 10 respostas negativas acompanhadas de risinhos parvos é que nós percebemos que “aqui na cidade sagrada não se bebe álcool”. Fuma-se todo o tipo de ervas rasteiras, mas nada de destilações, meus amigos! É claro que os emails que o Prince nos ia mandando não discriminavam absolutamente nada. Basicamente só diziam que “já gastamos uma data do vosso dinheiro em reservas de hotéis óptimos por isso não se armem em parvas agora.” Ignorámos! Depois de uma fresca banhoca resolvi vestir-me a preceito.A calça roxa, a camisola laranja as meias da neve brancas que quase não couberam nas havaianas. Foi nesta delícia que fomos espairecer para o café da esquina e fizemos gestos obscenos a tudo o que nos pedia rupias. 5
Cabe dizer, que estes 20 metros de caminho percorridos, sozinhas, nos davam um certo medo mas nos deixavam bastante orgulhosas da nossa independência. No café, encontramos os velhos amigos que tínhamos feito de manhã que nos propuseram ir fazer yoga ou ir à procura de um Guru brasileiro que havia por lá! Como não valia a pena explicar a esta gente que se nós quiséssemos gurus brasileiros tínhamos “Jesus Cristo é o Senhor” aos Domingos, ali na Almirante Reis Ficámo-nos pela pastelaria, que experiência mais beatifica que aquilo não existia. Interessa também dizer que nestes dias passávamos por todos os estados de espírito possíveis. Tanto estávamos maravilhadas num segundo, como desesperadas no outro, mas o resultado era sempre estupendo. A noite foi passada entre planos mirabolantes para sairmos da nossa jogada indiana. Só sabíamos que no dia seguinte íamos para outra cidade sagrada e depois dormiríamos em casa do Prince, o que não nos deixava nada descansadas. Como decidimos poupar nos Atarax para situações mais desesperadas, passei a noite de olho aberto. Soprava um vento viking lá fora que batia na montanha e fazia o barulho do mar. Lobos uivavam mais alto que os sinos e acreditem, que de uma maneira estranha, aquilo era tudo muito bom. Às cinco da manhã começam-se a ouvir as rezas de um guru ao megafone e depois veio a música e no meio disto tudo acho que só adormeci para sonhar com tigres.
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