Chamuças de Bacalhau 6

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Chamuças de Bacalhau De pijama em Rishikesh. Bananas e teleféricos. The Conquest of Haridwar. Experiência sagrada com os vendilhões do templo. Missa aquática com facturas. Nada no estômago a não ser medo. Hotel ou casa do Prince? O que nos irá acontecer?

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VI. Bananas em Pijamas De manhã dissemos adeus a Rishikesh, não sem antes tirarmos uma fotografia vestindo os velhos lençóis e usando as fronhas na cabeça. O indiano que nos fotografou naquelas figuras devia achar que já tínhamos passado para lá de Bagdad, mas nós também já não estávamos preocupadas com a opinião pública lá do sítio. Despedimo-nos dos turistas conselheiros que nos disseram adeus com um lencinho e desejaram muita sorte para o desfecho da nossa aventura. Dissemos “Shanti, Shanti”, porque é isso que se diz em Rishikesh por esta altura e atravessamos a ponte, uma última vez, só porque nos apeteceu. Foi com limpeza que constatamos que o Balú estava com a mesma roupa há três dias e que, de resto, devia passar as noites no carro, e se acham que tivemos pena do desgraçado, estão muito enganados. Não sabíamos muito bem para onde íamos mas sabíamos que era sagrado. Antes de chegarmos ao dito destino parámos numa rua que parecia a feira popular ao Domingo. Na verdade, parecia a feira popular em qualquer dia da semana porque, de um lado e de outro, havia vários templos cheios de bonecada, qualquer coisa à laia do castelo do He-man. O resultado era cómico, e como o Balú não nos conseguiu explicar o que se fazia ali, fomos explorar por nós próprias. Para se entrar para o templo em si, tínhamos que nos aventurar dentro de uma boca de uma cara gigantesca e depois ficava-se na fila para comprar o bilhete. Aquilo era o comboio fantasma sem tirar nem pôr. Com a excepção que tínhamos de ir a andar em filinha dentro do que parecia ser um escuro labirinto, portanto nada de comboios. Nas paredes víamos as cenas sagradas ilustradas com bonecos, é de apontar que alguns se mexiam e tudo. Não posso de deixar de mencionar a minha cena preferida, no qual se via alguém que tinha ficado sem a ponta do nariz à mercê de uma espada e jorrava sangue a fingir. Os indianos que iam à 2


nossa volta benziam-se muito, de olhos bem abertos. Nós olhávamos uma para a outra e rezávamos para que ninguém ainda nos tivesse roubado os sapatos. Depois de comprar bananas para o almoço, seguimos caminho e, antes de conseguimos ficar com sede, já estávamos estacionados num descampado sujíssimo com uma data de criancinhas de olhos muito grandes a pedirem rupias. Escusado será dizer que estas criancinhas nos seguiram pelo menos uma hora, sempre a tocar no braço, e a posar para a objectiva fotográfica. Foi com esta embaixada que chegamos a Haridwar. E foi com uma mímica impressionante e uma série de grunhidos que Balú nos tentou explicar que aquela era uma das sete cidades sagradas, abençoada por Shiva, “aquele deus gigante de 7 metros que ali está” e que Haridwar em hindi significava “Portal dos Deuses” (isto fui eu ver à Wikipédida mesmo agora). Não sei como é Varanasi mas posso-vos afirmar que Haridwar é uma experiência à Golden Age. Ora imaginem o que foi o primeiro contacto de um português com um indiano, lá para 1500 e podem vislumbrar o que se estava a passar connosco. A música para este cenário não pode ser outra que “Conquest of Paradise” do Vangelis, Mami e Rita caminham por entre a multidão insólita. As pessoas olham para nós como se nunca tivessem visto semelhante coisa. E isto passado com vários milhares de pessoas. Ok, eu confesso que dei graças a vários deuses gigantes por estarmos acompanhadas pelo Balú, não que o Balú estivesse com um ar muito seguro de si reparem, eu diria mesmo que seria talvez a primeira vez que lá punha os pés também. E foi meio a medo, meio maravilhadas, que passeamos ao longo das margens do Ganjes, vimos homens e mulheres a lavarem-se no rio, crianças que brincavam em montes de gravilha, velhos de cajado que comiam de latas de metal e padres com pequenos cestos de flores para as bênçãos. Mas não só, vimos vendedores de algodão doce cor-de-rosa choc, bancas com mil espelhos cobertos de conchas, garrafas de plástico azul cueca, templos cor de tijolo plantados dentro do rio e montanhas de pó grená. Assim como nós, centenas de pessoas iam chegando, atravessavam as inúmeras pontes e sentavam-se no chão à espera. E nós lá fomos andando cada vez mais para o interior da cidade, onde nascia o mais caótico mercado que já vi na vida. Nesta altura só não me agarrei ao braço do Balú porque não ia servir de 3


muito. Mas não me apetecia nada estar ali, era gente a mais e eu de menos. Comecei a ficar impaciente e nervosa e quando parecia que as coisas não podiam ficar pior, diz o nosso querido driver que estava na hora de subirmos ao templo sozinhas. “São só 80Rs e uma viagem de teleférico, eu espero por vocês cá em baixo.” “Mas esperas mesmo” dizia a Rita “Não sais daqui ouviste?!” Por esta altura também só não me agarrei à Rita porque também não ia servir de nada e só subi ao templo porque queria fugir dali. Olhando para trás posso garantir que este teleférico foi o meio de transporte mais seguro da nossa aventura. E posso acrescentar com uma fé completamente garrida que a pessoa que nele desceu não foi a mesma que nele subiu. Mas vamos devagar que aquilo também ia. Era a primeira vez que estávamos sozinhas no meio da confusão e eu era a coragem personificada, eu e o Leão do “Feiticeiro de Oz”. Mas fingi que estava em Barcelona a subir a Montjuic, o que não era assim tão diferente se ignorássemos tudo o resto. No topo havia um templo onde se estava a passar qualquer coisa envolvendo cocos. Fomos atrás da multidão a copiar tudo o que era gesto. Mas como não tínhamos comprado o coco não participamos no ritual. Mas também não fez mal nenhum porque sempre que parávamos para olhar para o fenómeno alguém nos vinha fazer uma pinta na testa e pedir dinheiro. Algumas rupias mais pobres e com a testa bastante pintada começamos a relaxar, e foi mais à vontade que decidimos almoçar a coisa mais parecida com um hambúrguer que havia no snack-bar de apoio ao templo. Confesso que ao partilhar um prato de arroz com a Rita me voltei a sentir criança, quando fazíamos aquelas visitas de estudo a Badajoz e, com poucas pesetas para gastar tínhamos que comer o mais baratinho. Lá estávamos nós, meio embuchadas com tanto arroz quando um grupinho de mulheres nos começa a fazer sinais. “Olá, e isto agora, o que é?” E elas olhavam para nós, soltavam risinhos e diziam adeus. E depois de algum cepticismo lá fomos fazer o reconhecimento. “Eu Tarzan, tu Jane” foi mais ao menos assim que conhecemos um grupo de senhoras que eram de Pushkar. Confesso que não foi fácil voltar a confiar numa indiana baixinha e querida, mas passado um minuto de abracinhos e risinhos já era tudo amigo do peito! Este encontro fez nos tão bem que juramos que afinal os indianos eram todos amorosos contudo que Nova Deli fosse bombardeada. 4


Quando voltámos de teleférico viemos com uma polícia. Sendo uma policia uma mulher indiana vestida de caqui que anda acompanhada por um bastão com um metro só por causa do Karma. Fizemos uma converseta deveras agradável e quando saímos tudo nos pareceu belo e seguro. Era de loucos esta mudança de temperamento, mas a Índia é mesmo assim. Demos outra oportunidade ao mercado e desta vez conseguimos apreciar a luz que era filtrada pelas grandes árvores e que se misturava com a poeira levantada pelos cavalos que passavam, puxando as carroças. Pareceu nos tudo muito místico e eterno como se já estivesse a acontecer há séculos e séculos. Habituamo-nos ao andamento das gentes e eu tirei cerca de 179 fotografias de todos os ângulos possíveis, rezando para que alguma saísse focada. Segundo o Balú estávamos à espera do por do sol para assistir à grande celebração. Que devia ser o paralelo da missa das 7 cá destes lados. Por isso voltamos à zona dos Ghats e basicamente andámos para traz e para a frente. Numa dessas deambulações reconhecemos o grupo de mulheres de Pushkar! “Portugal”, gritaram elas. “Pushkar”, gritámos nós. E depois de muitos abracinhos, que elas eram aí umas 10, seguimos caminho com um Balú francamente surpreendido. Não querendo ferir absolutamente nenhum credo religioso, passamos a narrar a nossa experiência divina. Foi depois de muito assédio que lá demos 5 Rs por dois cestinhos de flores e entrámos num transe místico no qual só a Madonna e alguns dos Beatles sonharam chegar. Olhem para nós, estamos cada uma com seu “padre” na margem do rio, e repetimos umas palavras esquisitas que eles nos dizem. É obvio que sai tudo mal e pelo que sei posso estar a recitar o “Another one bites the dust”. E às tantas chega a uma parte em que ele diz “all familly name” e eu repito, e ele diz “no, no, say all familly name” e então eu digo todos os nomes que me lembro até à quarta geração. E então veio o grande final onde ele disse “now say, 100, 200, 300” e eu repito “no, no, you have to say 100, 200…”. Não estava a perceber nada daquilo, e a Rita tão pouco que há uns bons dez minutos que achava que o padre lhe estava a perguntar a idade e insistia “são 23, olhe que são 23”. De repente, qual Espírito Santo percebemos que eles 5


nos estavam a perguntar quanto dinheiro íamos dar…… Dar dinheiro? Dinheiro? Nós? Nós que andávamos a comer bananas há dois dias? Nós que tínhamos sido enganadas pelos conterrâneos? Nós que dormimos cheias de frio? Tomámos banho de água gelada? Nós que estávamos à beira da bancarrota emocional e não só?! Ala que se faz tarde, e lá fomos nós as duas a fugir depois de ter acendido a velinha a dizer que “não pagávamos nem mais um tostão seus caloteiros.” Deixando dois padres abismados com tamanho desrespeito pela poupança aforro de uns quantos seres divinos. Amaldiçoadas até D.Afonso Henriques lá fomos arranjar um bom local no meio da barafunda para assistir à celebração. Sentamo-nos na margem oposta e esperámos com expectativa. Havia uns homens a apregoar não sei bem o quê com uns caderninho de facturas na mão. De vez em quando alguém o chamava e pagava-lhe uma nota recebendo em troca o recibozinho. Balú sorria, como só uma ovelha consegue e nós olhávamos uma para a outra como quem não está a perceber patavina mas já se começa a habituar. Os últimos raios de sol batem nos templos aquáticos cor de laranja, e começam-se a acender fogos que queimam cestos de flores em ambas as margens. Dos megafones sai um mantra bem shanti e os sinos começam a tocar. Nos quinze minutos que o sol demora a morrer, ateiam-se fogos por todo o lado e as gentes ficam em silêncio até ao momento em que lançam as mãos ao alto e dizem umas palavras. Nós imitávamos tudo, feitas parvas, mas estávamos completamente maravilhadas, em poucos minutos uma cidade com milhares de visitantes tinha parado para rezar. E toda a gente estava sentada no chão concentrada a feliz. Ninguém olhava para nós de lado como se não pertencêssemos, pelo contrário. E sentimos que, apesar de toda aquela maluquice que estava a ser a Índia, tudo ia acabar bem, tipo Disney. Bem, mais ou menos! Depois daquilo fomos a flutuar para ao carro, não sem antes comprarmos exactamente 5 bananas e esperar que o Balú fosse comprar um DVD de músicas para ouvir no carro. É claro que se percebêssemos que ele queria ouvir aquilo no auto rádio podíamos ter avisado que talvez não resultasse mas não havia vocabulário em comum para tanto.

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Uma vez dentro da super viatura voltou a tensão. Já estava de noite e íamos chegar a Nova Deli lá para as duas da manhã. O plano de irmos ter à embaixada a horas decentes tinha sido abortado mas de uma coisa tínhamos a certeza, queríamos sair da jogada com o Prince. Já não olhávamos para ele como um amigo, mas como um estranho sinistro que iria fazer de tudo para nos roubar. A Rita tinha começado a mandar mensagens freneticamente e de repente toca-me no braço. Acho que nunca me irei esquecer da cara que ela fez de terror, quando me passou o telemóvel numa mensagem do Atish que dizia: “Aconteça o que acontecer não vão para casa deles ou vão vos obrigar a pagar o dinheiro e não só.” Acreditem que naquele momento de pânico, no escuro, com 2 bananas e meio no estômago, sem música e com carros em contra-mão, aquela mensagem caiu como uma bomba. Eu, das duas uma, ou entrava em pânico (óptima escolha) ou tomava uma atitude (escolha insane). E este momento é tipo aquele episódio onde finalmente se percebe onde é que o Indiana Jones arranjou o chicote. No meu caso foi eu perceber que tinha uma fibra do caraças para as situações mais desvairadas. Decidimos pois que não podíamos ter medo, íamos telefonar ao Prince e dizer que queríamos ir directas para o hotel para dormir nessa noite. Depois de dura insistência telefónica, deixei claro que íamos dormir ao hotel e ele tinha que ir lá ter para nos dar os bilhetes de comboio. E passámos o telefone ao Balú para o Prince lhe dar a ordem. Mal ele desligou checámos com o Balú se de facto íamos para o hotel e as nossas preces foram confirmadas. Já se tinham passado aí duas horas e nós vínhamos a dormitar quando o Prince telefona para o Balú e pela conversa percebemos que eles estavam a mudar o plano. Volta o pânico, pedimos para falar com o Prince mas ele tinha desligado. Meu Deus, Ganesh, Nossa Senhora, Rodrigo Santoro, alguém nos acuda por favor. A noite adensava-se, a fome apertava e sim, estávamos francamente com medo. Com aquele medo que se tem quando se tem 15 anos e se está sozinha, à noite, na estação de comboios do Entroncamento com 3 expresidiários. Aí percebemos que já não podíamos contar com o bom senso, a cada km estávamos mais perto de perder o controlo da situação. E, foi já na entrada de 7


Nova Deli que a Rita decidiu começar a gritar desvairada “Hotel, temos que ir para o hotel, é uma emergência”, e o Balú alarmado só dizia que não podia ser e a Rita dizia “Tem que ser, tem que ser, que eu….. eu… tenho mesmo de………… ir à casa de banho!” Bem, não se pode dizer que não fosse um argumento tão bom como outro qualquer. Vai daí o Balú pára à porta de um restaurante e diz “Vai aqui.” Não, não, tinha que ser no hotel, no hotel. Agora que penso nisso, é possível que o Balú estivesse tão assustado connosco como nós com eles, até porque nós estávamos completamente histéricas. E deve ter sido pela chinfrineira que fizemos que ele parou, enfim, em frente ao hotel. Digo-vos que em 3 dias, Pahar Ganj passou de “Rua do Inferno” a um canto do paraíso. Ao menos estávamos em território neutro, já podíamos jogar o nosso jogo. O Balú ficou cá fora a telefonar para um furioso Prince, que embora não podendo, acabou por ir ter ao hotel que nem gente grande. Pedimos para a recepção nos chamar quando ele chegasse e fomos get fresh. Foi nesta subida que percebemos que o Für Elise não era um telemóvel mas sim a música que o elevador fazia enquanto funcionava. No comments. Decidimos que era eu que falava e eu fingi que era super decidida e eloquente, ainda treinei o discurso em inglês por dois minutos. O mais importante numa discussão com indianos é nunca perder a vista dos objectivos. Nunca conheci gente mais manipuladora, e mesmo usando a dialéctica toda, estes tipos conseguiriam convencer Aristóteles que afinal era romano. Por isso tinha os pontos assentes numa folha. Por onde quer que desse queríamos a) sair da jogada, b) os bilhetes de comboio c) o resto do dinheiro. Porquê? Porque esta proposta era cara demais para nós e jamais iríamos pagar antes do fim do serviço. E lá descemos nós para ter a grande conversa. Assim que o Prince percebeu o que queríamos fazer disse que afinal não tinha trazido os bilhetes de comboio mas que não nos preocupássemos que amanha tudo se tratava, com muitos sorrisinhos. É bom que assim seja, porque “já avisamos a embaixada, Prince.” Fomos para cima contrafeitas, é obvio que ele nos ia mandar o irmão obeso para nos fazer mudar de ideias. Mas como dizia o cobarde, “Live today, fight tomorrow” Era isso que íamos fazer….

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