Chamuças de Bacalhau

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Chamuças de Bacalhau A aventura começa com um prólogo piroso em forma de gelado. Conta-se como Mami e Rita se conhecem em cima de um capot de um Peugeot em pleno Salão Automóvel e decidem ir à Índia. Pequeno almoço sobre os Himalaias.

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Prólogo piroso em forma de gelado

“Duas enormes bolas de gelado de nata derretiam num banho de chocolate quente temperado com bolachas sadicamente esmigalhadas, levavam ainda, alguns cajus e uma neve de coco....Nem cheiro a caril, nem sabor a picante! Esta audácia calórica pedia-se assim: "I Want a Hello to the Queen" e trocavase por Gandhis com formato rectangular. Ela estava sentada numa fofa almofada, com rabo estupidamente escaldado pelo Sol goês, o cabelo a pingar sal e o passaporte misteriosamente escondido algures no bikini. Pediu o "Hello", enquanto empurrava dois Imodiuns com uma Coca-cola, com o ar de quem metia uns ácidos antes de entrar para a missa! O rádio da cabana-esplanada rezava um velhinho-Hari-Krisna que tinha levado uma recente remisturada à Café del Mar. Já o dito Mar azul portava-se de acordo com o protocolo "Paraíso" enquanto as vacas pastavam relva imaginária na areia dourada. "Madam. One Hello to the Queen." "Uau", pensou ela com um quê de divertido cepticismo ao lembrar o belo buraco que tinha por nome WC, "espero realmente que os Imodiuns resultem..." Pegou na colher e, recolhendo uma bela amostra de todos os ingredientes, provou a sobremesa. A primeira colherada levou-a imediatamente a uma corrida desvairada por Nova Deli, ouviu as buzinas dos carros em contra-mão, cheirou a sujidade de PaharGanj, o bairro-do-inferno, o medo do desconhecido, o dinheiro roubado, a língua queimada do picante... Levou rápido outra colher à boca que ardia, desta vez só com gelado, e o ar fresco dos Himalaias arrefeceu-lhe os pés, lembrou-se de andar pelas pontes de Rishikesh e Haridwar, as cidades sagradas, em pijama e lençol, de rezar com o Fogo ao pôr-do-sol, de comer croissants e beber o leite espesso de um yake infelizmente ordenhado, blherrrg! Outra colherada para chegar a Jaipur e ao pior-hotel-da-galáxia-NormanBates-estás-cá-hoje?, ao passe majestoso das velhas elefantas exploradas por gordos indianos, aos esquemas dos tapetes, dos lenços, dos gurus, das portagens e, temperando tudo isso, o exótico sabor da paixão em… francês?! A colher a seguir trouxe bastante chocolate, por isso levou-a a Pushkar, à cidade onde todos querem voltar, espirrou com o ar gelado da noite que passou debaixo das estrelas depois de uma bizarra menage-à-trois e queimou a língua com o Chai que bebeu num copo velho e riscado em pleno deserto, romanticamente atravessado de mota (a rezar aos santinhos para não se espatifar toda). Mais um bocadinho de gelado para chegar a Jodpur, e ouviu um zumbido de um mosquito sem medo do azul da cidade misturado com as rezas dos muçulmanos perdidas no ar, os olhos lembraram-se da vista imponente do grande forte rendilhado, da confusão do mercado, de enterrar o nariz nas exóticas especiarias, do belo australiano paranóico… Como estava distraída nem deu pela colher cair na areia e, quando a levou à boca, misturada com a bolacha, voltou a Jaisalmer, a velha fortaleza de areia, aos templos janaínos perdidos, aos camelos mal cheirosos, à lua cheia 2


vermelha, ao sabor da última Coca-Cola do deserto (e isto não é uma expressão), ao enfezado jardineiro pedófilo, credo! "Bring me water please!" A água Kingfisher (decorem o nome), levou-lhe a areia da boca mas trouxe-lhe Udaipur, a cidade do lago, ahhh lembrou-se do luxo dos marajás, do branco ofuscante dos palácios flutuantes ao Sol e claro, da casa de banho sagrada e do Octopussy show, todas as tardes no telhado - James Bond sob fogo de artificio… Já só tinha direito a mais duas colheradas, percebeu com uma certa pena, que até na Índia o doce tem um finalmente. "Bem, vamos a isto" pensou e, com a pressa, engasgou-se num caju. Enquanto não lhe dava a fatal sulipanta, lembrou-se do dia-e-da-noite-mais-longos-doMundo, 26 horas deitada numa jaula a lavrar precipícios até Mumbai, mais as 7 horas deitada num comboio que nunca dormia, aos solavancos, com os cabrões dos pregões dos vendedores, lembrou-se das dores, dos medos, das terríveis idas à casa de banho e de repente... uma palmada nas costas, trouxea de volta à praia. Respirou o ar quente e sorriu aliviada com a sobrevivência (qual tartarugaDarwinista) metendo à boca a penúltima colherada. Como estava cheia de coco, empurrou-a sedutoramente para o cheiro intenso a fruta ao Sol de Goa, para o verde fresco da vegetação tropical, para as plantações de especiarias onde se come com as mãos impronunciaveis iguarias com um ar prémastigado, cobriu-lhe o corpo molhado com pós coloridos do Carnaval relembrando o Holi, que lavou nas praiínhas onde Vasco da Gama um dia tirou os calções. O próprio do Éden com um pseudo-Adão americano... "Não. Não vou comer a última colherada!" levantou-se e exclamou cheia de dignidade e ainda mais nostalgia! "Recuso-me a dizer Goodbye to the Queen!" e, deixando cair a colher na areia, pensou que ainda tinha muito que saborear…. Deixou ficar algumas rupias, ajustou o passaporte, irritantemente escondido dentro do bikini XXL e pôs se a caminho em direcção ao pôr-do-sol mais piroso de sempre. O indiano de serviço, naquela tarde tropical de Janeiro, olhou para ela e encolheu os ombros com apatia, depois reparou no prato inacabado e, olhando em volta para ninguém o ver, comeu a última colherada mística para sentir a razão de tanto desfrute. Misteriosamente soube-lhe a ... gelado com chocolate.” Poiso a caneta no caderno amarrotado e olho epicamente em frente, qual Lawrence da Arábia em tecnicolor. Estou num café à beira do Tejo, enrolada na manta colorida que nunca cheguei a lavar e que os amigos juram trazer todos os “aromas” da Índia, também apelidados de pivete insuportável “já-me-lavavasessa-merda-não?”. Não fosse ela e o duvidoso bronzeado, nem eu própria acreditaria, debaixo desta fria chuva, que ainda há uns dias estava a viver a minha estranha aventura. Por isso tenho que a contar, tenho que pegar nas fotografias, nas músicas, nos bilhetes, nos papéis desordenados e nas

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recordações ainda intensas, porque aqui está uma odisseia digna do século, bem, pelo menos para quem nunca tinha passado além de Espanha. Por isso peço outro chá com leite (na vã esperança que me saiba a qualquer coisa ligeiramente exótico) e estreito mais a manta ao corpo, faço uma reza inventada a Ganesh e começo exactamente pelo primeiro capítulo, no qual a autora se resolve, qual Almeida Garrett versão internacional, a parar de afagar com os pés o chão do quarto para viajar para fora da sua terra. Dedicando as patuscas narrações que daqui saírem, a outros viajantes utópicos, para que levantem finalmente da Ocidental e fofa cama para descobrir essas inóspitas terras onde ainda se anda de pernas para o ar.

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I. Leaving on a Jet Plane Inspirada por sei lá que loucura ancestral do Luso povo, também eu, criatura feminina e frágil, de sono raro e mais leve que de princesa com excesso de cafeína, resolvi meter a vida dentro da mochila e partir, com uma amiga, numas Descobertas parte II. O nosso plano é a Índia, só a Índia e nada mais que a Índia. A Índia do Vasco da Gama, do Taj Mahal, das especiarias e dos monhés. O país das monções, do caril, das chamuças, do transito, dos cheiros (todos os cheiros do mundo a entrarem pelo nariz a dentro sem pedir licença) e da pobreza, pois claro, que “lá eles morrem nas ruas e tudo!” Basicamente é isto que sabemos sobre a Índia e ah, sim, que também tem o seu quê de triangular. Por isso, durante dois meses andámos a alimentar o nosso suíno-das-moedas com os tostões possíveis para não desandar para o Além, sem ter antes tido um mês épico para contar, um dia, às empregadas do lar da última idade. Prometemos ainda, aos amigos e à família narrar as aventuras todas sem censuras, não correr riscos absolutamente nenhuns e, como se não bastasse, ainda fizemos um inquérito sobre que fotos tristes devíamos tirar, a saber: a voar num elefante, a comer qualquer coisa esquisita, a abanar a anca num filme de Bollywood, a fingir que pegamos no Taj Mahal e, como não podia deixar de ser, a apanhar todo o tipo de bactérias no belo e perfumado Ganges, sobretudo naquelas partes em que todo o género de cadáveres e dejectos bóiam fatalmente. São hoje, dia 9 de Janeiro e chegámos à Portela. Neste ponto, a algazarra é intima, por fora somos duas miúdas ensonadas carregando mochilas com o mínimo possível, sendo isso exactamente: 2 pares de calças, 5 tops, cuecas e meias q.b, 1 camisola fininha, 1 mini kispo castanho, 1 necessair para qualquer redundante necessidade (cenas para os dentes, champôs e cremes e bastante maquilhagem pois “sabe-se lá se não conheço um Marajá?”), 10 rolos de papel higiénico bem amassados, medicamentos para todos os sintomas que atacam o viajante mais incauto, 2 bikini XXL (“que lá eles são uns porcalhões e tiram fotos para por em sites pornográficos”), 2 toalhas, um pijama e todo o tipo de 5


preconceitos e ideias tontas. Constam ainda, uma lanterna, os típicos carregadores para o telemóvel (que não servirá para nada) e máquina fotográfica, venda para os olhos e tampões para os ouvidos, 1 almofada insuflável, 1 livro do D.H Lawrence passado na cidade do México (necessidade de escapismo?), 1 rede mosquiteira camuflada com capacidade para 30 Seals, 4 GNRS e 2 Bombeiros obesos, e chinelas. Junto ao corpo levo, na bolsa beije mais foleira da galáxia (oferecida pelo Natal, sob o meu olhar desanimado que gritava “livra como é feia”) os meus mais que tudo: o passaporte, o boletim de vacinas e o cartão Multibanco. Nos pés as inseparáveis botas (reparo agora que só uma é que está engraxada, fino a valer!) e na barriga aquela sensação de estar prestes a fazer uma grande asneira. Acreditem ou não, caros confidentes, tudo isto pesava apenas 14 kilos (o que equivale mais ou menos ao meu computador portátil) e já era um boi! A Rita despede-se do namorado repetidamente, enquanto eu aproveito para ir pela quinta vez à casa de banho. Fala-se uma última vez com a mãezinha ao telefone e promete-se que “vai tudo correr bem, sim senhora. Ora que ir à Índia é bem mais seguro que ir a Chelas, pois não querem lá ver, beijinhos, beijinhos”. Uma vez feito o check-in e apalpadas por todo o lado, lá vamos nós com uma hora de antecedência para a zona de embarque porque, ao que consta, a Rita tem um pequeno historial de perda de aviões e mais vale não abusar da sorte. Aproveito o nosso tempo de espera entre os outros patrícios para as apresentações. Eu sou a Mami e a Rita é a Rita. Sendo este livro um filme indiano (há agora um flashback) onde podem apreciar de olho atrevido, eu e a Rita, um ano mais novas, a conhecermo-nos enquanto fazemos poses semi-eróticas ao lado dos últimos modelos da Peugeot, no Salão Automóvel. Ainda na onda de Bollywood podem maravilhar-se a ver-nos dançar em cima dos capôts ao som do “Eu Gosto é do Verão”, parece bonito de ver mas foi qualquer coisa parecida com o tipo de tortura macabra que a inquisição faria nos dias de hoje e, como podem calcular, não há nada que una mais duas almas que o cativeiro e a desgraça (fim do flashback/chamada para o avião). Não interessa saber em que escolas andámos ou em que firma somos exploradas, só têm que perceber que, neste ponto, não existem pessoas mais diferentes no mundo que nós as duas. Eu sou sonhadora e responsável, a Rita é prática e louca. Eu trouxe-a porque precisava de

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acelerador, ela levou-me porque precisava de travão. Pelo menos é isto que achamos que sabemos… Entrámos a correr na aeronave e penamos duas horas imensamente excitadas até Gatwick onde fazemos um pequeno intervalo para comer um saudoso pastel de nata e cuscuz com qualquer coisa que não consegui decifrar, mas me soube a pato e me caiu mal que nem feijoada requentada. São agora onze da noite e fazemos o nosso primeiro contacto com os nativos indianos. Numa sala de espera do aeroporto, algo à parte, há tipos de turbante e calças de ganga e mulheres de sari, a maior parte deles falam ao telemóvel num inglês de quem vende rosas e a única coisa positivamente bonita, no meio deste exílio, são os casacos das hospedeiras da Jet Airways, da cor do açafrão e um bocado mais compridos que isso. Os únicos ocidentais que vislumbramos são dois backpackers com ar de quem não toma banho desde que o Gandhi ficou careca. Embora não encetemos uma converseta com os cujos não é de ignorar o sentimento de cumplicidade que se cria entre aliens viajantes como nós. A expectativa é imensa e, quando finalmente entrámos no avião da Jet Airwais, ficámos embasbacadas. Aquilo fazia cócegas só de se ver. Não era este senão um autêntico palácio aéreo. Mami e Rita têm o seu primeiro momento de histeria enquanto saltam para as fofas cadeiras, obscenamente anatómicas, e lançando dois gritinhos de excitação começam a mexer em tudo o que é botões do computadorzinho em frente que prometia uma fascinante mescla de filmes de Hollywood e Bollywood, bem como jogos e os últimos Hits do momento. “Ahh, como é perfeita a vida na Índia de Cima”, pensamos nós enquanto nos embrulhamos nas quentes mantinhas e nos abraçamos às grátis almofadinhas, ao mesmo tempo que somos vitimas de uma desinfestação em spray por parte do staff de serviço. Precisaria de um mês indiano inteirinho para constatar que as minhas primeiras impressões eram sempre erradas, mas não nos antecipemos, pois nem a Madre Teresa nasceu já santa! Eis não quando, no meio do idílico, se ouve um sonoro e molhado arroto, enojadas olhámos uma para a outra e depois para o lado e damos com um indiano de turbante que decide ainda aproveitar o facto de ter espectadoras para limpar a tuberculosa garganta. Mal sabíamos nós que este sim, seria o primitivo contacto com a civilização índica e mal sabíamos também que este Sikh, com

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um semblante ligeiramente pederasta, iria arrotar o caril de frango do jantar durante as 9 horas de viagem. Ruminanços à parte, sentíamo-nos umas rainhas rodeadas por requintes orientais previamente embalados. Enquanto as belas hospedeiras nos ofereciam hot towels a torto e a direito (que são umas toalhinhas quentes com um cheiro algo suspeito e que substituem os toalhetes de limão da Tap), jantámos uma comida indizível em pratinhos separados e dissemos oficialmente adeus ao paladar europeu. Tudo isto se passou ao som de músicas hindi que o nosso computador vomitava em jeito de jukebox. Para entrar no espírito vi o Darjeeling Limited e rezei para que a Índia fosse assim mesmo, sem tirar nem pôr. Pelo sim pelo não, ainda arrisquei um visionamento Bollywood, intitulado Rang de Basanti, retratando a fanfarrona juventude indiana wannabe american (podem imaginar a desgraça). O raio das musiquinhas ficaram no ouvido e o gordo actor principal ficou no olho, mal sabíamos nós que este iria ser o galã fetiche da nossa viagem. Passadas cinco horas de voo já estávamos a ferver para sair dali, as próprias casas de banho que a principio apetecia lamber já se encontravam num estado pós-Chernobil e a Rita, impaciente, lavava os dentes de hora em hora. De repente o dia começava a nascer e demorava que se fartava, eu já ia com o nariz gelado encostado ao vidro há uma boa meia hora quando sobrevoámos os Himalaias (que a Deus deve parecer qualquer coisa como uma taça cheia de chantilly). E foi assim que estas viajantes tomaram um pequeno-almoço altamente ocidental “over the Himalaias”, e se isso não é um luxo, copia muito bem! Quando finalmente aterrámos, olhámos uma para a outra de olhos escancarados e gritámos em uníssono, “Estamos na Índia, caraças” (expressão substituta de outra mais forte, pois que este livro ainda vai no inicio e não convém chocar já as avós) mas não saímos do avião sem eu ter que devolver alguns itens ilicitamente apropriados como souvenir e sem mandarmos um último olhar homicida ao Sikh com problemas gástricos. O avião parecia que tinha sido alvo de uma guerra de almofadas mundial com caril à mistura, e as belas hospedeiras de casaco açafrão pareciam saídas do Carnaval de Torres Vedras. Foi com esse ar decadente que deixamos a aeronave, a segurança e tudo o que sabíamos sobre a vida até então….

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