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Laerte Temple 61 e

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Thais B. Lima 53 e

Thais B. Lima 53 e

Foto: livrosepessoas.com centrar na obra, mas era interrompido com frequência por vendedores, religiosos pregando conversão, entregadores, pedintes e a molecada querendo a bola que caiu no jardim e a diarista com lista de compras. Consertou rachaduras, goteiras, telhado e calçada. A rua virou corredor comercial e vieram as lojas, inferninho, escola infantil, bares com música alta, 3 linhas de ônibus com ponto em frente à casa, trepidações no asfalto e muito barulho. Mais material para o livro. Paz eterna era algo difícil de se alcançar! Gabo decidiu morar na roça. Arrendou uma chácara num pequeno município, junto a um riacho. Vida rural, ar puro, paz e sossego, mas tudo terminou com as invasões de terras e a polícia aparecendo para procurar receptadores, cativeiros, plantação de maconha e fazer reintegração de posse. A chácara vizinha virou espaço para eventos, com festas até a madrugada, bêbados, trânsito, brigas e polícia procurando drogados. O riacho transbordou e inundou a casa. “Paz eterna” estava quase pronto e Gabriel Marques procurou um editor e um agente literário que gostaram do original e o aconselharam a sair da roça conturbada para finalizar a obra o quanto antes. O livro prometia! A secretária do editor ajudou a alugar um bangalô na praia. Quando a maré subia, ninguém entrava e ninguém saia, mas isso não era problema, pois forçava-o a dedicar-se apenas à obra. Aí chegaram veranistas, acampamentos, barracas de caipirinha, quitutes, tatuagem, torneio de surfe e grupos de funk e pagode. Assim que Gabriel Marques entregou o texto, teve uma crise de estafa e foi internado numa clínica de repouso. Repouso? Um colega de quarto era um pastor evangélico com 8 filhos e 11 netos que se revezavam em visitas diárias. Os fiéis, não podendo entrar na clínica, cantavam hinos na calçada. Um policial internado com esgotamento nervoso e sequelas do trabalho tinha alucinações constantes, convulsões noturnas, comandava ordem unida e quebrava tudo. O enfermeiro que aplicava tranquilizantes era tão delicado quanto quem injeta os temperos no frango da padaria. Gabriel Marques, o Gabo, acabou sofrendo um AVC, não resistiu, finou-se e encerrou a temporada terrena sem ver o lançamento do seu livro. No velório, apenas seu agente literário, o editor e a secretária. Foi sepultado em caixão simples, direto na terra. Está na Bíblia: do pó vieste, ao pó retornarás. - Pelo menos na última morada ele vai ter Paz Eterna – disse o agente. - Sei não – falou a secretária. Dá uma olhada nos vizinhos: um político corrupto, um roqueiro metaleiro, um sindicalista e um condenado por violação de cadáver. Acho que ele não terá muita paz. - Bem – disse o editor – pelo menos terá fama póstuma. “Paz eterna” é recorde de vendas e renderá muitos milhões. A Netflix já me procurou para comprar os direitos. Se não inventasse de morrer, seria milionário.

‘Causos’ do Nordeste A canoa do meu avô

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Tony de Sousa Cineasta

Ela ficava a maior parte do tempo ocupando quase toda extensão de um alpendre lateral da casa. Emborcada sobre uns troncos de árvores. Só era desvirada quando se aproximava o inverno. Ali pelo início de junho, mais ou menos. Aí meu avô dava uma verificada no casco, por fora, e depois, com a ajuda do meu tio Jose e tio Paulo desvirava a canoa, dava uma olhada por dentro, verificava se havia algum buraco, alguma fresta a ser remendada. Aí remendava e fazia a vedação passando piche. Hoje existe outros materiais mais fácies de se lidar para fazer essas vedações. Como já devo ter falado em algum lugar, meu avô era marceneiro. Possuía todas as ferramentas de um marceneiro em casa. Trena, formões, plaina, serrotes, enchó, pua, lima, martelos, malho, nível, etc. Por isso eu achava que a canoa tinha sido feita por ele. - Padrinho, essa canoa foi o senhor que fez? - Não. - E quem foi? - Meu pai. - E o pai o do senhor não ensinou como faz? - Antes me responda: o que o meu pai é de você? - Avô! - Não. Avô sou eu. Meu pai é seu bisavô! - Bisavô? - E o bisavô ensinou ao senhor como se faz uma canoa? - Sim. - E quem ensinou para ele? - Um índio. Canoa de Garapuvu ganha forma no Hotel Sesc Cacupé - divulgação

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