Arquitetura da Liberdade: fotolivro (caderno 2)

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pré-existências #BAIXIOS


#1 glicério A conhecida Ligação Leste-Oeste é um eixo que atravessa uma grande extensão do centro da cidade de São Paulo, começando no Glicério, cruzando o bairro do Bixiga (trecho Júlio de Mesquita Filho), Vila Buarque, Santa Cecília e chegando até Perdizes. Na baixada, há projetos que se apropriaram desse espaço negado pela cidade e o ressignificou: a academia de boxe Garrido e a Cooperativa de Catadores do Glicério. Em 2012, em parceria com ambos e dentro do Festival Preliminares, construímos a Bolha Imobiliária, uma arquitetura inflável que evidenciava de maneira poética a questão da especulação imobiliária na cidade (que apesar de haver uma profunda situação de precariedade e vulnerabilidade no lugar, já na época se via um processo de valorização no seu entorno e relação com a cidade a partir do valor de troca - transformação da cidade em mercadoria).

#2 elevado costa e silva Mais conhecido como Minhocão, o viaduto foi construído por Paulo Maluf em 1970, cuja campanha na época era “São Paulo, uma cidade mais humana”. Virando às avessas, ou de fato materializando esse conceito, há alguns anos o viaduto vem sendo ativado temporariamente por usos de lazer, propiciando espaços de troca e encontro (para além da passagem). A partir disso, durante o projeto Balançar eu Adoro, parte do Festival Baixo Centro de 2013, propusemos a imaginação do Parque de Diversões Minhocão, nos apropriando de tal infra-estrutura e adicionando a ela novas camadas de significado e valor.

#3 júlio de mesquita filho O baixio do viaduto Júlio de Mesquita abrange uma área do Bixiga próxima a casa da Dona Yayá e ao Teatro Oficina; uma extensa área intersticial criada a partir da construção do viaduto, mas que resiste ainda hoje como vazio (porém, magnetizado). Um espaço imantado, permeável e potencial. Um entre definido pelos limites horizontais do chão da cidade e da cobertura do viaduto, caracterizado por fluxos e elementos diversos - espaço onde as noções de negociação e agenciamento são levadas ao extremo. A partir deste contexto, este foi o recorte definido no trabalho para serem estudadas as noções de arquitetura da liberdade e da experiência do comum.


pré-existências #LIMITES

#1 muros

#2 carros

#3 casas


#DEMARCAÇÕES

#1 xadrez

#3 praça do fogo

#2 pau de sebo


existĂŞncia #SOM

#1 s/rumo

#2 soundpainting

#3 paisagens sonoras


Essa foi a nossa primeira prática no espaço: realizamos na área mais permeável, aberta (próxima a rua Major Diogo). Chamamos os moradores do baixio, que, curiosos, se aproximaram e participaram da atividade junto com os estudantes da Escola. Dentro dos nichos de papelão, isolados visualmente, percebemos o intenso movimento de carros através dos sons (em cima do viaduto e na rua). Estava muito calor, e estávamos sentados no chão de concreto, que queimava. Onde está a água e a sombra? Ou a cadeira de praia para aproveitar o sol? Ao final da oficina, cerca de 12h, havia um grande fluxo de pessoas passando a pé na rua: mães com seus filhos saindo da Escola, pessoas pra lá e pra cá - indo almoçar, trabalhar...

Adentramos o baixio, fomos além dos limites dos muros que o circundam. Nos apropriamos de um elemento que demarcava um espaço agregador: o pau de sebo (colocado no dia da Festa Junina organizada pelo Terreyro Coreográfico) serviu de guia para orientar a disposição dos nossos corpos no espaço. O muro servia de apoio para 3 barracas de moradores - os quais nunca mais vi. As marcas pretas nos pilares chamaram minha atenção; indicavam resquícios de fogo - frio? comida? Nenhum dos moradores quis se aproximar, apesar de termos ido chamá-los - porém, no meio da prática percebi que um homem havia sentado no pé do pilar (um banco improvisado a 20cm de altura do chão) para nos observar e ouvir cantar.

Chegamos no espaço e nos posicionamos em linha, na área próxima ao pau de sebo, acompanhando a viga que é repetida no centro do espaço, conformando a perspectiva que o define. Talvez por essa conformação, todas as pessoas passavam curiosas observando os movimentos, mas nenhuma se aproximou. Alguns eram moradores do baixio (debaixo da cobertura do viaduto), mas também pessoas que cortavam caminho por ali. Durante a prática, pudemos perceber o intenso uso do entorno neste horário “comercial”, pelo ruído de serras e de obras.


existência #MOVIMENTO

#1 (v)ir

#2 espiral(ar)

#3 estímulo-resposta


Depois das últimas práticas terem acontecido em lugares consideravelmente permeáveis, nessa oficina resolvemos explorar o espaço ao longo de sua extensão - ir e vir que demora 5min40s. Lugares antes “intransponíveis” foram atravessados (principalmente os extremos do baixio, quando o viaduto encosta na rua 14 de julho e na altura da rua Abolição, onde há a maior concentração de pessoas morando). Notei que próximo à rua 14 de julho, mesmo com o pé direito baixo, é um espaço muito utilizado, onde qualquer fissura ou brecha é aproveitada. Através da caminhada, foi possível perceber as curvas da infra-estrutura, que criam inflexões no percurso aparentemente retilíneo.

Através da prática, andando em uma espiral que partiu do centro da Ágora, foi possível perceber a quantidade de limites e barreiras que dificultam maior permeabilidade e fluidez do movimento do corpo no espaço: muretas, canteiros, carros, rua... Desvios e variações em altura e velocidade foram parte da sequência de ações, que materializaram o percurso aparentemente óbvio de uma maneira inesperada.

Movimentar-se e agir de acordo com o outro, com ou sem pretensåo. Deixar-se guiar pelo movimento involuntário e afetar pelas intensidades, velocidades e variações do espaço. Interação cinética - individual ou coletiva - que não se resume em si, mas afeta necessariamente o espaço em que a ação foi realizada, mesmo que de maneira sutil.


existência #MATÉRIA

#1 suspenso

#2 reflexo

#3 coletor


Tensionar os limites do corpo e do espaço entre. Suspender o tempo. Esticar o espectro de possibilidades que habitam o lugar através de uma ação efêmera. Povoa-se o vazio ao magnetizar o espaço a partir da instalação de dispositivos praticáveis que propõe um comportamento livre do corpo (em diversas dimensões, direções, sentidos). Propõe-se um olhar de usar a infra-estrutura de suporte para a ancoragem de diversos elementos e propiciar diversos usos.

Compor com o espaço. Revelar, através da reflexão dos espelhos, espaços despercebidos, invisíveis - potenciais? Expandir o espaco e se aproximar das pré-existências. Propõe-se então trabalhar com recortes, facetas de um espaço porvir. Durante a experiência, pessoas olhavam curiosas - e algumas rondavam o espaço como que demonstrando onde os limites foram ultrapassados.

A atividade propôs um espaço comum: os limites são esgarçados a partir da ação de cada um em relação ao outro e ao espaço ao redor, deixando somente os rastros deste movimento. A tinta marca o rastro da ação, agressão à membrana permeável que separa o dentro do fora, em permanente oscilação.


coexistĂŞncia #PRESENTE

#1 samba

#2 cultivar o bixiga

#3 futebol


Convidamos os moradores em situação de rua que habitam o baixio para tomar um café, que se tornou uma desculpa para o encontro: um elemento atrativo que criou uma atmosfera para o surgimento de outras relações. Pessoas passavam na rua e observavam, curiosas - porém não se aproximavam. E quando íamos chamá-las, diziam estar com pressa. Os instrumentos improvisados possibilitaram o samba, uma linguagem acessível, com códigos conhecidos, propiciando uma criação de vínculo e afeto - com o outro e com o espaço. Foi criada assim certa intimidade, que fertilizou futuras ações e transformações no lugar. Através dessa ação, foi possível conhecer os atuais usuários do espaço e as redes sociais nas quais estão inseridos.

Após uma aproximação com o grupo do Terreyro Coreográfico, resolvemos chamar um encontro para pessoas e grupos que já usavam o espaço do baixio e interessados em atuar nele. O primeiro Fogo de Conselho (evento Cultivar o Bixiga) reuniu cerca de 25 pessoas, principalmente atores culturais do bairro (representantes do Cordão do Barbosa) e alguns moradores do entorno. Após as apresentações pessoais e dos desejos para o espaço, jogamos xadrez humano - foi interessante perceber as dinâmicas do jogo de demarcação e disputa por território. O encontro foi importante para as pessoas se conhecerem, no entanto, não teve uma continuidade clara - não foi instaurado a partir daí um espaço formal e frequente de participação e decisão coletiva (as relações pessoais e os encontros informais cotidianos no lugar que se manteviveram como a dinâmica de construção e transformação do espaço, in situ).

Depois de alguns meses frequentando e atuando no espaço, surgiu um novo grupo: meninos e jovens que passaram a usar o espaço para jogar futebol. A chegada deste novo grupo causou uma grande transfomação nos fluxos do espaço, uma vez que sua aproximação não foi nada sutil: antes mesmo de escutar o espaço e suas pré-existências, os responsáveis pelo treino dos meninos começaram logo a intervir no espaço materialmente, demarcando novas fronteiras e se apropriando de lugares antes ocupados. Os limites agora eram novamente redefinidos - no entanto, com pouca flexibilidade por parte daqueles que chegavam, cuja maneira de atuar beirava a privatização. Porém, simultaneamente, foi interessante perceber a dinamização do espaço e a abertura do espectro das possibilidades e imaginários possíveis do lugar.


coexistência #POTENCIAL

#1 crianças

#2 território

#3 lúdico


Nos aproximamos de uma das escolas públicas do bairro, a EMEI Celso Leite. Lá conhecemos uma das diretoras, que nos mostrou total abertura e vontade de colaborar. Propusemos então uma primeira aproximação das crianças com o espaço: uma expedição na qual o foco era o percurso. Os 24 estudantes, acompanhados de 3 adultos, deram uma volta no quarteirão da escola e deveriam extrair elementos dessa experiência (flores, texturas e palavras). Fizemos então uma parada no baixio (na área do tabuleiro de xadrez) para que os alunos montassem as páginas da enciclopédia com seus achados e conversassem. Aí, entendemos a potência de trabalhar com as crianças e com organizações que já articulem grupos específicos. No entanto, ficou claro o embate ainda existente com a realidade do lugar: a relação com os moradores em situação de rua, a “falta de segurança”, e dinâmicas por vezes delicadas que estão sujeitos aqueles que habitam o espaço público no contexto em que vivemos.

Na prática Trajetórias Dançáveis, realizada com as crianças da EMEI Celso Leite em parceria com o grupo de maracatu Batuque Urbano durante a Virada Educação. Durante a manhã, realizamos uma oficina de invenção de trajes, no próprio baixio (como havia chovido, nos deparamos com várias infiltrações. Formaram-se rios que escorriam pelo chão de concreto até a altura da rua Abolição). À tarde, o cortejo partiu da EMEI, passou pelo baixio e foi até a praça Roosevelt para o fechamento da Virada, percorrendo o bairro do Bixiga com a intervenção e agregando integrantes da escola, moradores do baixio, crianças e amigos. Foi interessante de realizar o percurso e conectar pontos significativos do território, abrindo uma fenda no cotidiano esperado da cidade.

De que elementos lançar mão para atrair as pessoas que passam pelo espaço (seus usuários em potencial) para se apropriar? Para o Sarau do Baixio, entregamos flyers para moradores e comerciantes do bairro, chamando-os para participar do evento, vender aquilo que produzem, trazer amigos e familiares. No entanto, no dia do Sarau, somente alguns apareceram. Começamos a arrumar o espaço pela tarde, e logo encontramos os treinadores de futebol - que falaram que os treinos aconteceriam a partir das 18h. Cerca de 50 meninos chegaram, e ao se depararem com os dispositivos e brincadeiras, criaram um movimento tamanho que atraiu os moradores do baixio, do bairro, e pessoas passando do outro lado da rua atravessavam para ver. Perguntavam se aqueles brinquedos ficariam ali todos os dias.


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