Urbanismo de (r)existência

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Urbanismo de (r)existência “La desobediencia civil no es nuestro problema. Nuestro problema es la obediencia civil. Nuestro problema es que la gente del mundo entero obedece las órdenes de unos líderes y que millones de personan han muerto por esta obediencia… Nuestro problema es que la gente es obediente a pesar de la pobreza y del hambre y de la estupidez, y de la guerra, y de la crueldad. Ése es nuestro problema”. Howard Zinn¹

Palavras chave desobediência civil, transgressão, política, democracia, práticas inovadoras, movimento social, ação coletiva, autonomia social, participação cidadã, gestão compartilhada, multidão Resumo O estudo busca discutir possibilidades de descentralização da gestao urbana através da autonomia cidadã; bem como o papel dos movimentos sociais na inovação das politicas publicas e na constituição de uma chamada democracia da multidão. A partir da análise de caso da Ocupação Marconi ­ do Movimento Moradia Para Todos (MMPT) ­, no centro de São Paulo, pretende­se discutir em que medida os movimentos sociais se relacionam com estruturas institucionalizadas de poder, mas também identificar esses movimentos como propositores de novas formas organizacionais autônomas e alternativas.


Introdução Após mais de três décadas de abertura política, os altos níveis de desigualdade social, pobreza, desemprego e violência na América Latina demonstram que os novos regimes democráticos não têm correspondido às expectativas de construção de sociedades efetivamente democráticas. O debate sobre democracia, centrado na preocupação com a estabilidade das instituições e os processos formais do sistema político, coloca em plano secundário os movimentos sociais e as relações de produção, gestão e troca. Em um contexto de uma cidade globalizada, onde o preço do solo cresce a cada dia e não há a defesa do que é público, com um déficit habitacional considerável e uma política pública de alocar habitação social na periferia sem nenhuma infra­estrutura, nota­se que movimentos lutam em São Paulo, Brasil, desde os anos 1970 pelo direito à uma cidade mais justa e inclusiva, fato que levou à própria abertura política. O período de formação desses movimentos no país, entre 1970 e 1980, significou a construção de identidades coletivas em torno de diversos propósitos, como defesa de carências comuns e de uma comunidade ou cultura específica (religiosa, de gênero, ambiental…), transformando questões do dia­a­dia em demandas políticas e instrumentos de defesa dos direitos de cidadania. Tais ações receberam a denominação de movimento social por serem organizações populares localizadas e específicas, no entanto, nos anos 1980, essas organizações mostraram ter um alcance limitado de sua ação política. Esse fato foi atribuído à diversos fatores, como à aparente fragmentação destes grupos de pressão específica, demonstrando dificuldade na articulação com outros atores ou também à fragilidade da sociedade civil frente os aparelhos políticos tradicionalmente instituídos (os sindicatos, os partidos e o próprio governo), em um contexto em que a ordem institucional jurídica pública passou a ter maior legitimidade. Diante de uma falta de vontade política de defender o bem comum e da inexistência da esfera pública no Brasil, a cidade foi mercantilizada e os serviços públicos privatizados ou sucateados. Segundo Kowarick, “na conformação urbana da cidade de São Paulo ocorreram e ainda ocorrem muitas espoliações sociais, discriminações de classes e desigualdades espaciais, que são encobertas e justificadas pelo aparato coercitivo estatal. (...) Vivemos em um contexto de espoliação urbana: onde “o somatório de extorsões que se operam através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo, apresentados como socialmente necessários em relação aos níveis de subsistência, e que agudizam ainda mais a dilapidação realizada no âmbito das relações de trabalho.”³ A problemática a ser abordada no presente artigo versa sobre os movimentos sociais organizados e seu papel na gestão urbana na luta pela defesa do bem comum. A partir do estudo de caso da Ocupação Marconi, do Movimento Moradia Para Todos, no centro de São Paulo, e da residência de 4 meses realizada no local, busca­se entender sua atuação auto­gerida e experimental como resposta autônoma à conjuntura política vigente e como proposição de novas práticas alternativas de construção da cidade e da sociedade. Além disso,


serão mobilizados autores de diversas origens, costurando pensamentos da sociologia, geografia urbana, filosofia e arquitetura. Na primeira seção do artigo, será analisado o caso escolhido, entendendo seu potencial como laboratório social experimental em processo. A Ocupação Marconi é um edifício de escritórios construido em 1937, abandonado pelos proprietários em 2009, e ocupado em 2012 pelo Movimento de Moradia Para Todos (MMPT) no centro de São Paulo, uma região com infra­estrutura, oportunidades de emprego, opções de intermodalidade e, em contraste, com muitos edifícios abandonados. É interessante pensar na Ocupação Marconi como um espaço que propõe uma lógica alternativa de construção de cidade; um microcosmo de experimentação de práticas construídas com a acumulação de conhecimento através do tempo e da vivência. A Ocupação consiste em um espaço que simula novas regras de convivência e propõe a construção de uma comunidade, a partir da criação de laços afetivos e de uma estrutura de apoio à pessoas permanentemente sujeitas à instabilidade e vulnerabilidade, colocando em questão relações de produção, pertencimento e a sustentabilidade dos processos. Na segunda seção, será discutida a noção de transgressão, restrita a determinado espaço­tempo, uma vez que é uma proposição de resistência e oposição ao vigente e constituído, o qual está sujeito à mudança. Entende­se a atuação dos movimentos sociais, além da participação em espaços institucionalizados, como um posicionamento à margem: uma pressão realizada ao poder estabelecido para ter suas demandas ouvidas e para readaptar a atuação do mesmo. O que é transgressivo hoje, que propõe lógicas alternativas, está sujeito a tornar­se parte do sistema vigente amanhã: a exceção vira regra. É entendida, portanto, a possibilidade de atuação dos movimentos sociais como propositores de mudanças no sistema, uma vez que suas ideias e soluções sejam internalizadas pela instituição, contribuindo assim para a inovação da gestão urbana. Na terceira e ultima seção, pretende­se versar sobre as noções de democracia da multidão e a construção do comum, a partir do entendimento do filósofo Antonio Negri, buscando entender como poderia se dar a descentralização da gestão urbana, fortalecendo a autonomia cidadã e a multiplicidade de singularidades, a partir, no entanto, da constituição de um consenso. “Considerando­se a crise das utopias totalizadoras do passado (nacionais­populares, socialistas, etc), pergunta­se sobre as possibilidades das redes de movimentos, através de seus processos articulatórios, virem a se constituir em espaços de construção de novas utopias ou novos modos de vida alternativa. (...) [pergunta­se] Se o pluralismo ideológico e organizacional presente nestas redes será a expressão da construção de um imaginário e de uma prática mais democrática e mais tolerante à diversidade social, mas não à desigualdade, produto da exploração e da discriminação. (...) Finalmente, em que medida a atuação das redes de movimentos nos campos cultural e político constituem­se em possibilidades de penetração/participação da sociedade civil na transformação da sociedade política propriamente dita.”4


Ocupação Marconi: laboratório experimental autogerido em processo “Some people see the camp as a leftist think tank that is promoting political change, while others of us view the camp as an important experience in its own right that is attempting to build the world we want to see. What is important is the sense of community that is created and all the work groups and different forms of self­organization.“ Jeffrey F. Juris ­ Reflections on #Occupy Everywhere

O Edifício São Manoel, na rua Marconi com a Barão de Itapetininga, à um quarteirão do Teatro Municipal e do Anhangabaú, no centro de São Paulo, foi o primeiro edifício de escritórios projetado pelo arquiteto francês Jacques Pilon, em 1937. Abandonado desde 2009 pelos proprietários, o prédio foi ocupado em outubro de 2012 pelo Movimento Moradia Para Todos. Durante o processo de ocupação, os ocupantes resistiram à repressão da polícia por 48 horas, e depois disso, começaram a adaptar o prédio de acordo com suas necessidades: habitação e seus usos complementares. Por meio de uma estética do emergencial e possível, os residentes recém­chegados adaptaram as instalações, como elétrica, hidráulica e esgoto, e continuam a consertar os problemas até hoje, conformando um espaço em mudança permanente, em resposta as necessidades e oportunidades que surgem. O Edifício São Manoel tem 14 andares e 15 salas por andar, que se tornaram apartamentos para as famílias associadas ao Movimento. Pessoas de diferentes origens, muitos lugares do Brasil e outros países da América Latina, mas também estudantes que colaboram com a causa, com o funcionamento do edifício e suas funções, e famílias que não podem pagar o valor do aluguel no mercado convencional. A maioria dos moradores é de trabalhadores autônomos e famílias, incentivados pelo Movimento a voltar a estudar. Por essa razão, o local pode ser compreendido por essa pluralidade de singularidades: interesses, propósitos e necessidades distintas, que se juntam em um espaço­tempo específico, por uma causa comum. O espaço adquiriu um caráter de uma casa coletiva e explodida: os apartamentos (antigos escritórios) possuem 12 metros quadrados, existe somente um banheiro por andar, uma cozinha comunitária no prédio inteiro e máquinas de lavar roupa que são compartilhadas entre os vizinhos. Uma creche, uma biblioteca, um cineclube e um espaço de reuniões foram criados, estreitando as relações entre os vizinhos e com o próprio espaço. Os elevadores estão desativados, inclusive devido ao custo elevado de manutenção. No entanto, as escadas e os corredores são o coração do prédio: espaços de troca, encontro, brincadeira e conflito. Contraditoriamente, por uma decisão da coordenação do Movimento, não há um refeitório onde as pessoas possam comer junto; o medo de se criar espaços de convívio, onde as pessoas possam se encontrar, articular e criar é visível.


Para viver na Marconi, o residente deve pagar um valor acessível de aluguel, assim como contribuir para as atividades coletivas, como trabalhar na portaria e na cozinha comunitária, limpar o andar, comparecer às reuniões, formações políticas e protestos do movimento. A idéia dos coordenadores é de empoderar as pessoas para que desenvolvam habilidades individuais e pessoais e contribuam com a coletividade com o que elas sabem melhor, por meio de workshops, cursos, e da formação de cooperativas. Um exemplo é a padaria, que funcionou por um período sob a coordenação de um dos habitantes do prédio, que parou de trabalhar fora para começar essa nova produção dentro da Ocupação. Além disso, existe uma abertura para a proposição e autonomia de cada morador: ao ir morar no prédio, é sugerida a seguinte ideia libertária “você tem um prédio de 14 andares, o que quer fazer?”. Há mais de um ano de existência, a Ocupação e o Movimento vêm encontrando impasses e dificuldades em sua organização e luta, respectivamente. A sustentabilidade dos processos, tanto a curto quanto a longo prazo, se mostra variável, uma vez que para os moradores da Ocupação o dia­a­dia é muito cansativo, com muito trabalho e muitos comprometimentos. Além disso, referente ao respaldo institucional e o papel de pressão do poder público, alguns acordos paliativos já foram firmados, que vão na contramão da causa defendida pelo Movimento. Enquanto se luta para alcançar a moradia popular no centro e locação social, processo no qual não existe propriedade privada e as pessoas têm direito de uso do imóvel, pagando um aluguel acessível, acordos foram feitos de alocação de famílias associadas ao Movimento na periferia. A própria gestão dos edifícios no centro já reformados e com a situação legalizada continua sendo difícil, assim como o pagamento das unidades adquiridas, uma vez que os edifícios já reformados entraram nas limitações do programa Minha Casa Minha Vida, sendo venda das unidades e não aluguel. Outro impedimento da ampliação da luta do Movimento é a relação com a sociedade civil: ainda há muito preconceito e negação da necessidade dos movimentos. Por ignorância, a sociedade em geral associa os Movimentos à desordem e baderna, por terem uma atuação transgressiva e fora dos formatos tradicionais. Apesar disso, o Movimento conserva boa relação com órgãos públicos, como a Defensoria Pública, e é bem presente no cenário jurídico e nos espaços institucionais de participação, como os Conselhos e Fóruns promovidos pela Prefeitura (sobre o Plano Diretor, Gestão de ZEIS, entre outros). Além disso, o MMPT faz parte da Central de Movimentos Populares, CMP, órgão que faz a articulação entre diversos movimentos e tem peso institucional. “A CMP é fruto de um processo histórico de resistência e dos movimentos sociais populares, em especial das lutas sociais dos anos 1980. Foi fundada no I Congresso Nacional de Movimentos Populares, realizado de 28 a 31 de outubro de 1993, realizado em Belo Horizonte­MG. No encontro de fundação, estiveram presentes 950 pessoas oriundas de 22 Estados do País e representando vários movimentos, tais quais os de prostitutas, negros, mulheres, crianças e adolescentes, homossexuais, moradores de rua, portadores de deficiência, índios, movimento por transporte, moradia, saúde, saneamento, direitos humanos, entre outros, demonstrando a amplitude e a diversidade ali


representadas. Seu eixo central de atuação é das Políticas Públicas com Participação Popular, um instrumento de articulação dos movimentos populares.”5 Transgressão: o papel dos movimentos sociais na inovação da gestão urbana “When a social movement adopts the compromises of legislators, it has forgotten its role, which is to push and challenge the politicians.” ZINN, Howard. Are We Politicians or Citizens? In: The Progressive, May 2007. “To transgress is to go beyond boundaries set by law, discipline or convention. It implies a naughtiness, or wayward behaviour, and acts as a challenge to the establishment. This challenge is not reactionary for the sake of reaction, but acts to question aspects of established practice that typically remain unchallenged. (...) Transgression is a challenge that forces a recalibration of what is accepted, what is the norm” Chris Jenks, Transgression, Routledge (London), 2003.

“There is no social or political change without the movements and programmes that transgress supposedly stable institutionality” Bernard Tschumi

A transgressão supõe um contexto temporal e cultural: atividades de resistência e marginais em um espaço­tempo são normalmente incorporadas pelo mainstream (tendência dominante), deixando de ser transgressivas, portanto. Nesse sentido, muitas vezes as atividades da margem passam a ser representativas do centro, a borda reforça e redefine o centro. O que é transgressivo aparece e desaparece, desestabilizando, de forma a questionar e tensionar os limites estabelecidos e provocar uma mudança. Segundo Marcos Nobre, em Participação e deliberação: teoria democrática e experiências institucionais, as arenas de macroestruturas de um regime democrático (eleições periódicas e livres, separação de poderes, regime de governo, respeito a direitos e garantias individuais, etc.) e da criação de novos espaços de participação e deliberação (que desafiam as macroestruturas) são arenas de disputa imbricadas e indissociáveis. Dessa forma, podem ser entendidas também como o centro e a margem, no que tange que a atividade ou organização transgressiva desafia a capacidade da macroestrutura de dar abrigo a essas novas formas de participação, assim como por vezes coloca em xeque a lógica mesma do arranjo macroestrutural em vigor.


Não é possível sistema democrático sem situação e oposição, sem centro e margem, sem poder instituído e movimento popular. Hoje, com a ideologia da governabilidade, os movimentos sociais fazem o papel da oposição, da transgressão, do corpo regulador da atuação do Estado, que tensiona o estabelecido. O processo de ampliação dos direitos de cidadania se dá necessariamente através das lutas sociais: a iniciativa de um governo de ampliar as política públicas em benefício da maioria da população se dá a partir de uma pressão, não é um fato espontâneo. O sistema democrático, para funcionar, pressupõe o papel ativo dos cidadãos; “a transformação da condição de espoliado em ator social e político”, como define Lucio Kowarick. Segundo Vladimir Safatle, as mobilizações sociais hoje operam à margem de estruturas institucionais tradicionais e se organizam em torno de temas, de causas pontuais: “você se organiza para certos objetivos, cria estruturas ou fóruns ligados a eles; depois, eles se dissolvem.” No entanto, para obterem resultados mais concretos, os movimentos precisam de anos ­ para saírem da borda, serem incorporados, e terem suas demandas ouvidas e respondidas, de forma a despertar de fato um processo de inovação na gestão urbana. Democracia da multidão e a construção do comum ‘a reinvidicação por serviços urbanos começa a transformar o morador em um “tipo especial de habitante”, um cidadão em formação. (...) trata­se do “surgimento de um habitante mais exigente a respeito de sua cidade” e de uma cultura politica que nasce da reivindicação do ambiente urbano enquanto “uso, desfrute dos serviços e rede de relações e participação”. (...) compreender o novo morador das cidades e como ele pode tornar­se cidadão ativo, para além das formas de associação convencionais (...) A população enfrenta os problemas cotidianos por meio de uma teia de relações informais e de laços pessoais, de amizade, compadrio e conterraneidade que definem formas de solidariedade e ajuda mutua. É assim que associações comunitárias passam a ser descritas como parte fundamental do percurso de uma democratização substantiva, que passará pela multiplicação das organizações populares e pelo seu robustecimento, potencializando as malhas de solidariedade orgânica em uma verdadeira rede de organização autônoma da população. Segundo eles, ela (uma ordem igualitária) precisa ser formulada de baixo para cima, de modo que “os diversos grupos populares, através de suas organizações e expressando suas diferenças, participem da construção de uma nova organização social”, baseada em “amplas liberdades populares”²’ Pedro Fiori Arantes, Em busca do urbano

Diante da atual falta de vitalidade das instituições democráticas tradicionais e da inexistência do público no país, a democracia que se vive é de fato pouco democrática. Além disso, hoje em dia, esse “tipo especial de habitante”, citado por Pedro Arantes, está se fazendo mais presente e mais organizado diante do poder estabelecido. De que maneira fomentar ainda mais o surgimento, organização e articulação de atores sociais? De que maneira ampliar o horizonte


do debate político democrático no país? Como tornar a ideia de democracia uma prática? Como garantir a defesa do bem comum, do público? Como se tangibilizam as demandas de democracia real? É evidente que existem espaços de participação institucionalizados, no entanto, o momento histórico que se vive hoje exige a reconstrução da democracia em novos termos: torna­se visivelmente necessária a criação de instituições democráticas novas, de mecanismos de participação e deliberação diretos e descentralizados, assim como a incorporação de demandas e soluções propostas pelos movimentos por parte das instituições formais. Marcos Nobre coloca a questão sob a seguinte ótica: é necessário estabelecer uma arena legítima de disputa (limites, uma moldura flexível, de forma a alargar o espaço de disputa), no entanto, é fundamental também a exploração de tal moldura. Tal exploração se dá por meio do debate público, de campos de convergência e divergência, de discussão, a qual pressupõe atores ativos e presentes. Segundo Kowarick, é importante a criação de espaços institucionais, como conselhos, uma vez que são instrumentos com potencial democrático amplo e acessível e que permitem que uma parte da sociedade mais organizada possa ter voz. Novamente, entretanto, a eficácia do espaço de participação depende diretamente da força do movimento envolvido. Além disso, tanto Safatle quanto Negri reiteram a necessidade de um movimento saber se organizar institucionalmente ­ seja para fazer­se ouvir no campo do poder público, quanto para disputar instituições como a mídia. Porém, não necessariamente essa organização se dá em um formato convencional (como de sindicatos, partidos, etc), mas esse modelo ainda deve ser criado e explorado. Vladimir Safatle também coloca “Não existe política completamente à margem da estrutura institucional, da mesma maneira como não se pode fazê­la só dentro das instituições. Há uma região limítrofe, que é necessário saber operar. Precisamos ir além do pensamento binário, do “ou totalmente fora, ou totalmente dentro”. Há algo no meio do caminho, que você opera pressionando de fora. Isso, ainda não conseguiu constituir. Só há um grupo que conseguiu fazer isso: os lobistas. Os lobbies estão semi­institucionalizados. Operam de fora, forçando a estrutura institucional. É necessário uma espécie de lobby popular, que seja contraponto ao lobby econômico.”6 Entende­se, portanto, o papel dos movimentos sociais como estruturas transgressoras organizadas, que operam dentro dos mecanismos tradicionais, mas também à margem, pressionando o sistema estabelecido e provocando mudanças. Somente a partir do “protagonismo e da participação de uma sociedade civil propositiva e ativa”7, do empoderamento e engajamento da população nas práticas sociais de gestão, que a pluralidade de demandas e lutas pode reverberar nas estruturas institucionais tradicionais, refletindo as diversas alternativas geradas pelo debate democrático e possibilitando que minorias tenham peso nas decisões feitas pelo sistema tradicional.


Um fato interessante é a própria diversidade de perfis de pessoas que lutam por uma causa comum, como se vê no caso estudado da Ocupação e inclusive nas Revoluções de Junho de 2013. “O conceito negriano de multidão se revela (...) ao abordar as formas de resistência ao poder instituído por parte dos mais diversos tipos de minorias ­ sociais, sexuais, racias. Pensar a multidão é pensar a produção do comum, observando um conjunto de singularidades, identidades únicas que se afetam, mutuamente, em um processo que reúne potências, mas também dissensos. As singularidades interagem e se comunicam socialmente com base no comum, e sua comunicação social por sua vez produz o comum. A multidão é a subjetividade que surge dessa dinâmica de singularidade e partilha. ”8 Entretanto, a multidão não é somente política, mas também estética: a ação do sujeito é de resistência, mas também é ativa, criativa, livre, e essencialmente coletiva. Diferentemente da noção de indivíduo, a singularidade pressupõe relação, cooperação, construção de afetividade e confiança através da comunicação e da criação de linguagem artística. Os cidadãos tornam­se cada vez mais conscientes de seus papéis e responsabilidade de participar da construção do modo de vida que acreditam, da realidade que buscam, cotidianamente. É o que ocorre na Ocupação Marconi. Muitos se associam ao Movimento e passam a morar na Ocupação somente pela possibilidade de um dia conseguir uma casa própria (uma busca individualista), porém, ao longo do tempo passam a entender a importância da luta e da proposição de uma forma alternativa de vida, de trabalho, de realidade e relações (utopia comum). Do ponto de vista de Negri, vida, produção, trabalho e capacidade de governo se integram. Cada vez mais, se vê a criação de um projeto comum de trabalho e modo de vida, a vontade de se construir uma nova realidade e se disassociar, fato que também é visível na Ocupação, uma vez que o Movimento não luta somente por uma casa, mas pelo estabelecimento de outras relações de produção, de trabalho, de afetividade, de troca. O comum é a atividade produtiva e cooperativa da multidão. E diante da crise da capacidade do governo, do welfare e da “democracia” vigente funcionarem na garantia de acesso aos mais básicos serviços, é necessário buscar um esquema organizativo novo; um regime político baseado na institucionalização do comum. E só assim, será possível exercer uma posição de contra­poder social e de garantia de acesso ao bem comum, o qual não precisa se dar através da propriedade, mas sim do direito de uso, de compartilhamento.


“No mundo atual, o conceito recorrente de commons discorre sobre a ideia de que a produção da riqueza e a vida social são fortemente dependentes de comunicação, cooperação, afeto e criatividade coletiva. O “comum” seria, então, aqueles meios de recursos compartilhados, que são gerados pela participação do muitos e múltiplos, que constituem, alguns diriam, o tecido produtivo essencial da metrópole do século 21. Se fizermos essa conexão entre comum e produção, temos que pensar em economia política: poder, as rendas e os conflitos. O comum pode ser definido por ser compartilhado por todos, sem tornar­se privado para qualquer autor individual ou instituição. Comum (ou bens comuns) incluem recursos naturais, espaços públicos urbanos, obras criativas, e os conhecimentos que estão isentos de direitos autorais. Em muitas cidades globais, as discussões em torno do bem comum têm sido relevantes, especialmente com a crescente pressão da privatização e controle dos governos sobre os recursos compartilhados da comunidade. As perguntas, então, seriam: pode o bem comum nos fornecer conceitos e táticas alternativas ao poder dominante, para uma sociedade mais democrática, tolerante e heterogênea, que permita maior participação e coletividade? Podemos abrir as diferentes definições de comum (ou bem comum)? Existem diferentes formas de compreender e discutir o bem comum através de várias práticas? Devido à nossa tradição do privado e do público, da propriedade e do individualismo, os bens comuns ainda são difíceis de ver para os nossos olhos de final do século 20. Qual é a riqueza comum da metrópole contemporânea e como ela pode ser localizada? Como o comum está sendo protegido das privatizações e das parcerias público­privadas do neoliberalismo totalitário? Que novas práticas de “fazer comum” vem surgindo de junho de 2013 até hoje?”9

Notas 1. Howard Zinn (1922 – 2010) foi um historiador americano, autor e ativista político e social. Zinn escreveu mais de 20 livros, dentre eles o best­seller A People's History of the United States. 2. KOWARICK, Brant e Camargo. São Paulo 1975: crescimento e pobreza, p.155 3 KOWARICK, Lucio. A espoliação urbana. Paz e Terra, São Paulo, 1979. 4 WARREN, Ilse Scherer. Redes de movimentos sociais. Edições Loyola, São Paulo, 1993. 5 http://cmp­sp.blogspot.com.br/ 6 Safatle: juventude perdeu o medo do capitalismo. Disponível em: http://outraspalavras.net/posts/safatle­juventude­perdeu­o­medo­do­capitalismo/ 7 ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo. Debate Boitempo Editora. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6Hq6VPYQ_­0&list=UUzwfw0utuEVxc4D6ggXcqiQ 8 SATURNINO, Andrea Caruso, BAMBOZZI, Lucas. Exposição Multitude, Sesc Pompéia, São Paulo, 2014. 9 Mapping the Commons http://mappingthecommons.net/pt/hipotese/


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