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1.2 Como os desfiles chegaram à Avenida Tiradentes
das narrações, que se somavam às melodias, havia toda a subjetividade corporal presente nas apresentações. Assim, a apresentação de uma escola de samba no carnaval carrega elementos centrais da cultura negra, como as memórias contidas nas narrativas, o canto, a dança e toda a adaptação desde a expansão do processo civilizatório europeu do século XV, como descreve Leopold Senghor.
É facto frequentemente notado que o Negro é sensível às palavras e às ideias, embora o seja singularmente às qualidades sensíveis –porventura sensuais? – da palavra, ás qualidades espirituais, não intelectuais, das ideias. Sedu-lo o bem-dizer; seduzem-no tanto o teórico comunista quanto herói e o santo: ( a sua voz emocionava os homens) dizia o padre Dahin. O que dá a impressão de que o Negro é facilmente assimilável, quando é ele que assimila. Daí o entusiasmo dos latinos em geral, dos missionários em particular, perante a facilidade com que julgam (converter) ou (civilizar) os negros. Daí o seu desalento súbito perante uma qualquer revelação irracional e tipicamente negra: ( não os conhecemos...não podemos conhece-los), confessa esse mesmo padre Dahin no seu leito de morte, depois de mais de cinquenta anos em África.23
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O longo processo para a realização de um desfile exige captação de recursos, planejamento, ensaios, repetições e sincronismos de técnicas. Contudo a sensibilidade e intuitividade, presente no corpo, na voz, na composição percussiva e consequentemente musical se fazem presentes no jogo de sedução que tornam o desfile atrativo ao público. Se por um lado há toda uma presença do poder hegemônico para “controlar” o que pode ser “perigoso”, há um encantamento pela arte negra que abre espaço para as suas representações, fazendo, portanto, as palavras Sengor coerentes no que se refere às memórias negras trazidas pelas escolas de samba.
1.2 como os desfiles chegaram à Avenida Tiradentes
Existem registros de manifestações populares no carnaval de São Paulo desde o final do século XIX. Denominado de Caiapós, grupos negros que se
23 SENGHOR, Leopol d Séder. O contri buto do homem negro. In Mal has que o Impéri o tecem; textos anti col oni ais, contextos pós-col oni ais. P. 75.
apresentavam com dança e música trajando roupas de malha grossa de cor bege com enfeites na cabeça e na cintura, tocavam instrumentos de percussão, representavam a morte de um pequeno cacique indígena (SIMON, 2007). Os primeiros grupos carnavalescos surgiram na cidade durante a década de 1910. O crescimento urbano e a possibilidade de melhores condições de vida traziam para a capital paulista fluxos migratórios vindos do interior dos Estados de São Paulo e de Minas Gerais, fazendo surgir bairros com presença negra significativa. Neste período destacam-se grupos na Barra Funda, na Bela Vista e na Baixada do Glicério. À medida em que a população de São Paulo crescia, as manifestações carnavalescas também se multiplicavam, chamando a atenção do poder público e dos veículos de comunicação. As primeiras intervenções da imprensa no carnaval popular se deu nos anos 1940 com a cobertura da Rádio Record24 , muito embora existem registros de pequenas notas sobre a manifestação negra carnavalesca em periódicos como “O Clarim d’alvorada” na década de 192025 . Sem lugar definido ou regulamentação oficial, os cordões desfilavam no centro da cidade. Desenvolveu-se uma rivalidade na disputa pelos melhores figurinos, pelos melhores percussionistas e músicos, pelas melhores canções e também pelos dançarinos mais ágeis. Durante a disputa, existiam provocações verbais, confrontos físicos e sabotagens para prejudicar os rivais perante a imprensa. Aparecem registros dos comentários de personagens renomados do carnaval do período.
Cê imagina que o Vai-Vai sai lá do Bexiga pra vim aqui na Barra Funda. E eu saía daqui da Barra funda pra ir lá no Bexiga, e quando se encontrava em frente a igreja de Santa Cecília, o pau comia feio. Chegava no Carnaval, parece que era até marcado, encontrava em Santa Cecília, na rua das Palmeiras, era uma briga tremenda, nego se machucava. O Vai-Vai foi outro que deu muita dor de cabeça pro Mocidde e pro Camisa Verde. Acontecia muita pancadaria.
24 VON SIMSON, Ol ga Rodri gues de Moraes . Carnaval em Branco e negro: Carnaval Popul ar paul istano: 1914-1988. São Paul o: Edi tora da Uni vers i dade de São Paul o, 2007. P200.
25 LOPES DA SILVA, Zel i a. A memóri a dos Carnavai s afro-paulistanos na ci dade de São Paul o nas décadas de 20 e 30 do s éculo XX. In Di ál ogos – Revi s ta do departamento de hi s tóri a e do programa de pós graduação em Hi s tóri a da uni vers idade Es tadual de Mari ngá. Vol ume 16, p. 41.
Você passa a mão num pedaço de elástico, desses fininhos. Amarra uma Gilete na ponta e para pra assistir o desfile. Mas você não fica na frente, você fica aqui atrás, e cada um que passa você estica o elástico, solta e vai no couro do instrumento. Passa um outro e a mesma coisa. Então quando você acaba de passar, você ia olhar...quatro, cinco instrumentos furados, tudo rasgado. Sabe quem inventou isso? O Desprezado, do Beixiga.26
Nas décadas de 1940 e 1950 os bairros populares foram se multiplicando, ora pela atividade industrial que se intensificava, ora pela expansão territorial da cidade. Neste contexto, moradores de novos bairros tornam-se presentes nos festejos carnavalescos com seus cordões locais, desfilando pelos bairros vizinhos ou mesmo integrando-se às já conhecidas agremiações, como os bairros Casa Verde e Vila Matilde. Além disso, os veículos de comunicação passaram a patrocinar concursos e premiações para os melhores cordões carnavalescos, estabelecendo uma competição ao estilo do carnaval da cidade do Rio de Janeiro, tamanho prestígio e visibilidade que o festejo carioca tinham nas periferias negras de São Paulo. Contudo, foi com a oficialização dos desfiles, em 1968, que os grupos carnavalescos se tornam muito numerosos. Esta oficialização trouxe uma rigidez na forma de desfilar, com regras, quesitos e condutas baseadas no desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, estimulando que os velhos cordões se tornassem escolas de samba. Com esta medida, as escolas de samba ganham visibilidade e espaço na cidade e amplia-se as coberturas da imprensa. Apesar disso, muitos sambistas entendiam que perdia-se, neste momento, a espontaneidade do desfile, uma vez que a presença de um estado ditatorial trouxera controle e censura para as representações artísticas. As opiniões sobre esta transformação ainda trazem muita controvérsia entre os mais velhos envolvidos naquele processo. A oficialização vai de encontro, ainda, com uma proposta governamental de “vigiar” as manifestações populares da cidade de São Paulo, uma vez que
26 Depoi mento de Seu Zezi nho do Morro da Cas a Verde à Ol ga Von Si mon em 1981, di s ponível no acervo vi rtual do Mi s (Mus eu da Imagem e do Som de São Paul o).
as manifestações ‘oficiais’ para o carnaval popular estavam somente restrita aos desfiles organizados pela prefeitura, além de incentivar e divulgar a “democracia racial” muito presente nas políticas culturais do período ditatorial. Durante a década de 1970, multiplicam-se pelos bairros periféricos da cidade as escolas de samba. Assim, ganham, ano após ano, maior número de componentes, verbas publicitárias mais generosas, apoio governamental para construções de suas quadras de ensaio e, consequentemente, desfiles mais caros e vistosos. Intensifica-se, neste período, um intercambio com sambistas e pessoas ligadas ao carnaval carioca e, consequentemente, uma profissionalização da atividade carnavalesca. Em 1968, o desfile carnavalesco oficial da cidade de São Paulo foi no Vale do Anhangabaú, sendo transferido, em 1970, para a avenida São João onde permaneceu até 1976. A mudança do desfile para a avenida Tiradentes vai de encontro à “necessidade” de adaptar o espaço físico ao evento que crescia a cada ano.
As reivindicações para a alteração do local de desfile vinham-s e intensificando como apontam estudos sobre o carnaval neste período, assim como a maior participação popular. Quando as cinco maiores escolas do Grupo I desfilavam pela avenida, a polícia Militar (mais organizada que no ano passado) fazia cordão de isolamento atrás dos sambistas, separando as escolas da multidão, que invadiam a Avenida São João para sambar.
O público foi calculado em aproximadamente 200 mil pessoas. Uma minoria acomodada nos 100 palanques e a maioria espremida atrás dos cordões de isolamento27.
Em 1977 foram ampliadas as arquibancadas para o público e, apesar da cobrança de ingressos, algo que não havia sido feito nos anos anteriores, o novo espaço para o carnaval contava com facilidades dos deslocamentos para os foliões que utilizavam o metrô, além de oferecer melhores condições para a cobertura jornalística. O Estado de S. Paulo reporta que aproximadamente 200.000 pessoas passaram pela Avenida Tiradentes no carnaval de 1977.
27 Fol ha de São Paul o, 2 de março de 1976. P. 9. Conti do em: TEREZANI, Deni s . Da Aveni da São João à aveni da Ti radentes : uma anál i se das repres entações jornal ísti cas s obre a reconfi guração dos des fi les carnaval escos da Ci dade de São Paul o (1967-1977).
Mesmo aquelas pessoas que não compravam ingresso, participavam do carnaval assistindo ao aquecimento das baterias na concentração, observavam as alegorias, os figurinos dos componentes e os últimos momentos dos desfiles na dispersão.
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Horizontalmente no mapa pode-se ver o Rio Tietê e em destaque a Marginal Tietê, com a bifurcação na Avenida do Estado. Em sentido vertical, também em destaque, a avenida Santos Dumont e a avenida Tiradentes. Os desfiles se iniciavam na Ponte Pequena (hoje denominada de Armênia) e seguiam em direção à estação da Luz. A ampliação do espaço físico do desfile oficial e consequentemente a tentativa de maior divulgação do evento vai de encontro com as políticas para a cultura do governo ditatorial brasileiro do período. A primeira delas é o artigo 2º da Lei-Complementar nº4, de 2 de dezembro de 1969, conhecida como lei “disco é cultura”, que autorizava as empresas produtoras de discos fonográficos a
abater do montante do Imposto Sobre Circulação de Mercadoria (ICM) o valor dos direitos autorais artísticos e conexos, pagos aos autores e artistas brasileiros28 ,o que ampliava a divulgação dos sambas e, evidentemente, o alcance dos enredos. O primeiro LP das escolas de samba de São Paulo foi gravado em 1975 com os sambas enredos do carnaval de 1976, novamente, aos moldes do carnaval do Rio de Janeiro.
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Percebemos nesta contra capa do LP gravado em 1976, contendo as canções que as agremiações apresentariam no carnaval de 1977 em São Paulo, o selo “disco é cultura”, caracterizando-a com o favorecimento da isenção fiscal. Em 1975 foi criado a PCN, Política Nacional de Cultura, que tinha como objetivos principais fomentar as atividades culturais (na tentativa de estimular uma coesão identitária nacional) e a ampliação das infraestruturas para os veículos de comunicação. A conjuntura em que o PCN foi criado se caracteriza pela crescente impopularidade do regime ditatorial, aliado aos resultados negativos da
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28 OLIVEIRA, Cl audi o Jorge Pacheco de. Disco é cultura: a expansão do mercado fonográfico brasileiro nos anos 1970. Ri o de Janei ro: Fundação Getúl i o Vargas 2018.
economia que, após o “milagre econômico”, influía diretamente na vida material das pessoas. Alguns sinais de abertura política eram observáveis, entre eles, o PCN, que foi instalado juntamente com um discurso de incentivo às artes populares do Brasil, ao mesmo tempo que reforça o discurso hegemônico de amenizar as diferenças sociais e cultura nacional.
A “mitologia verde e amarela”, sempre re-trabalhada pelas elites brasileiras de acordo com o contexto, assume agora o lema proteger e integrar a nação. Com isso, A cultura popular, elemento central dessa mitologia, é apropriada pela classe dominante através de determinada visão do nacional popular que representa a nação de forma unificada. (BARBALHO, 2007, p.42-43).29
O PCN apresentava nove diretrizes, das quais três, foram decisivas para influenciar as apresentações artísticas das escolas de samba: apoiar a produção e a difusão da música nacional; apoiar a dança nacional; difundir a cultura nacional a partir dos meios de comunicação em massa. Ponderando as palavras de Barbalho (2007) e comparando-as com os enredos apresentados no carnaval do período ditatorial, percebemos que há algumas agremiações aderem ao alinhamento governamental que já era maciço no carnaval do Rio de Janeiro e passa a se concretizar também em São Paulo, além do surgimento dos LPs das Escolas de Samba de São Paulo, e a tentativa de tornar este novo produto semelhante às produções cariocas. Contudo, as produções artísticas são heterogênicas, e a negritude é representada de diferentes formas e o caráter contra hegemônico também se faz presente, de forma variada, oscilando de ano em ano. Não se espera de narrativas carnavalescas uma plena coerência política e ideológica, principalmente quando se trata de um concurso, com jurados escolhidos pela PAULISTUR, empresa de Turismo e Eventos da cidade de São Paulo, intimamente ligada aos órgão repressores do governo , da mesma forma que não podemos desprezar as diferentes formações, realidade geográfica, realidades materiais, comunidades mais ou menos influentes nas escolhas da escola, o que trouxe para os desfiles diferentes percepções de negritude.
29 AZEVEDO, Sôni a Cri s ti na s antos. Di tadura Mi litar e Pol íti ca nacional de cul tura (PCN): al gumas refl exões acerca das pol íti cas cul turais. Revi s ta Bras il eira de Soci ol ogi a. V. 4. n 4: 2016. P.320.
O carnaval abre espaço para diversas manifestações culturais que não raramente apresentam-se antagônicas ideologicamente. Sendo assim, há um campo muito fértil para a discussão sobre a perspectiva hegemônica de cultura. Utilizaremos a perspectiva de hegemonia de Willians (1977), como conjunto de práticas, esforços e percepções sobre a vida que encontra reciprocidade e cria um senso de realidade absoluta, considerada como o domínio e subordinação vividos de determinadas classes.30 Ainda pensando na relação de cultura dominante, é coerente destacar que as formas de hegemonia estão presentes no dinamismo social que precisa constantemente se transformar, ser alerta e sensível às alternativas e oposições que lhe questionam ou ameaçam o domínio.31 Os desfiles das escolas de samba permaneceram por toda a década de 1980 na Avenida Tiradentes e é justamente neste período que se consolidam no mercado fonográfico os LPs dos sambas enredo de São Paulo e a transmissão televisiva ao vivo. Artistas consagrados da teledramaturgia e atletas profissionais ganharam posições de destaque nos desfiles. Essa nova roupagem para o carnaval de São Paulo traz à tona a discussão de um lugar fixo na cidade para estes desfiles. Em 1981, o jornal Folha de São Paulo já discutia a criação deste local no Anhembi, onde na ocasião já existia o Palácio das Convenções e estava em construção um hotel (que serviria para abrigar os turistas que visitariam a cidade para assistir o desfile). O fácil acesso pelas Marginais, uma vez que as construções da estrutura do carnaval e o evento propriamente dito atrapalhava o fluxo de veículos pela cidade e que a parafernália eletrônica dos meios de comunicação interferia as comunicações radiofônicas do quartel Tobias de Aguiar da polícia militar de São Paulo, localizada na mesma avenida onde ocorria o desfile32 . Analisando a foto de 1978, percebe-se, à esquerda e ao fundo, cabines de jurados. Acima estão enfeites volumosos exclusivamente utilizados durante o carnaval e, à direita, um grande número de pessoas que não faz parte do desfile.
30 WILLIAMS, Raymond. Marxi s mo e Li teratura. Ri o de janei ro, Zahar Edi tores , 1977. P113.
31 WILLIAMS, Raymond. Marxi s mo e Li teratura. Ri o de janei ro, Zahar Edi tores , 1977. P116. 32 Informação dada por Zul u Perei ra em entrevi s ta.