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2.2 As memórias negras nos sambas pós ditadura

“muito bonito, o samba enredo de Neff Caldas terá o apoio de 220 batuqueiros comandado por mestre divino”122e na terça, dia 6 reporta que o samba foi cantado por toda a avenida.

2.2 As memórias negras nos sambas pós ditadura

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A ditadura civil e militar tem seu fim oficialmente no Brasil no dia 15 de janeiro de 1985, quando Tancredo Neves foi eleito, ainda que pelo voto dos congressistas, em eleições indiretas. Apesar de todos os problemas políticos, econômicos e sociais que faziam parte da vida cotidiana das pessoas em uma realidade em que a inflação IPC (Índice de Preço ao Consumidor) em 1988 chegou a 554,19%123, outra referência nos permite concluir sobre as dificuldades cotidianas daquele período é a taxa de analfabetismo, que em 1987 atingia 20% da população brasileira. Entre os anos de 1981 e 1985 60% da população brasileira tinha abastecimento de água pelas redes e, em 1981, apenas 49,2% dos brasileiros tinham coleta de lixo em suas residências124 . Contudo, havia uma atmosfera esperançosa com fim do regime autoritário que se refletia nos enredos das escolas de samba. O diálogo entre os sambas e as realidades concretas se faziam mais presentes, assim como a relação com um “futuro” que se aproximava. Sendo assim, os temas dos enredos tornam-se, mais amplos. As narrativas satíricas exploravam temas como falta de dinheiro, inflação, escândalos de corrupção, assim como foi muito explorado a ambiguidade entre a tradição do carnaval e os seus símbolos, como a ala das baianas, a velha guarda, e a contemporaneidade futurista, como computadores e o cometa Halley, que pôde ser visto a olho nu em fevereiro de 1986 e foi motivo de decoração da passarela naquele mesmo ano. Neste período, prevaleceram enredos relacionados a variadas temáticas negras. A presença religiosa continuou sendo marcante, embora os enredos

122 O Es tado de S. Paul o, 4 de março de 1984 p.22.

123 Dados obti dos no s i te da Worl d Wi l d Infl ati on Data.

124 Dado obti dos no s i te do IBGE.

não apresentem aspectos centrais da religiosidade, ela está presente nas narrativas do cotidiano, na forma negra de se viver. No que se refere ás coberturas dos jornais percebemos que diminui o espaço dado às escolas de samba, assim como as coberturas e os pontos de vistas quanto ao evento vão se assemelhando. Em 1985, o vencedor do concurso em São Paulo desfilaria no Sambódromo carioca em comemoração ao 50º aniversário dos desfiles no Rio de Janeiro, o que acirrou a disputa pelo título. Apesar dos jornais reportarem certo desanimo das pessoas em relação ao carnaval, altos preços de produtos, altos gastos do poder público com a festa, a Folha de São Paulo destaca os preparativos dos desfiles na sexta feira com a foto de Talismã e Thomaz, diretores do Camisa verde e Branco e Mocidade Alegre, respectivamente, além de ressaltar as palavras do trio de carnavalescos da Vai-Vai que São Paulo ainda Não tinha um “Joãozinho 30” em seu carnaval, ou seja, um responsável que concentra importância dentro de um desfile, pensando e coordenando a execução de todas as etapas de preparação de um desfile. Novamente, o SBT transmitiu com exclusividade o desfile, fato apontado como positivo por Mario Covas, prefeito de São Paulo no espaço dado a ele na Folha de São Paulo quando questionado sobre o aumento dos gastos, justificando-os diante de uma maior arrecadação vinda da ampliação do número de ingressos com a montagem de uma arquibancada onde no ano anterior foi um camarote, e ampliação da verba publicitária diante da transmissão já mencionada. O enredo “ Água de cheiro”, da Vai-Vai, descreve a presença da água de cheiro, um dos símbolos mais significativos do “sincretismo” religioso na utilização da Lavagem da escadaria da Igreja do Senhor do Bonfim, em Salvador, O samba destaca a presença da água de cheiro no carnaval, nos ritos religiosos e engrandece o seu uso no dia a dia quando, no refrão questiona: “Será que este teu perfume vem da França ou da Guiné?”

Chererê, chererê, chererá Vai-Vai a avenida vem perfumar Chererê, chererê, chererá Requebra, o batuque tá de embalar

Àgua de cheiro na avenida Essências da vida Que faz o povo delirar Venha cair na folia Aroma-alegria Explode no ar Amor, vou te dar um cheiro Vem me fazer cafuné, cafuné

Será que este teu perfume Vem da França ou da Guiné Ê Tabacaum Venha nos dar o seu axé Em preto e branco a batucar Dá força e proteção a quem tem fé

Limão de cheiro nos antigos carnavais Com pierrô, colombina e arlequim... E na Bahia água de cravo Na lavagem do Bonfim

Quando eu sair Do palácio de Oxalá Levarei perfume e flores Pra Janaína saudar125

Imagem 18 A massificação do evento traz uma novidade assim descrito por Maria aparecida urbano, a Cidinha, primeira carnavalesca e pesquisadora do carnaval de São Paulo:

O Vai Vai nunca tinha tido um patrocínio comercial, e assim foi feito. A Rastro, embora não tivesse dado auxílio monetário, presenteou a escola com uma quantidade grande de pequenas embalagens de plástico, tendo a sua propaganda de um lado e do outro, o emblema do Vai Vai e o nome do enredo, colocando em seu interior o perfume Rastro. Estas embalagens foram distribuídas durante o desfile, deixando a avenida toda perfumada.126

125 Enredo: Água de cheiro. Compositores: Nadao e Turquinho. Vai-Vai, 1985.

126 Bel i ne, Antôni o (org). Es col a de Samba Vai Vai . O orgul ho da Saracura. São Paul o: Antoni o Bel i ne Edi tora e Cul tua S. A. 2003. P. 53

Este fato demonstra a aproximação entre a publicidade comercial e os desfiles das escolas de samba, mais especificamente, uma marca de perfume, tradicionalmente associada a “sofisticação” se associa à um enredo onde narra tradições afro religiosas, onde a presença dos odores são marcantes. Ou seja, Os olhares pejorativos às religiões de origem africanas vão sendo também agregados à valores positivos destas religiões. A camisa Verde e Branco também faz uma referência religiosa, de certa forma sincrética naquele ano.

Acende a vela iaiá Senta no toco ioiô Sou Negro Velho Tenho história prá contar

Brasil, meu Brasil cor de canela És menino, cheira terra O teu corpo é sutil Brasil tem um campo de riqueza Quando canta é uma beleza Seresteiro que surgiu

Surgiu o luar O mar sereno Ginga, meu Brasil moreno Tem abará, ô, tem dendê Tem feitiço na dança É canjerê

Menino que nasceu em verdes matas Tomou banho de cascatas Adorno é flor de manjericão Seu leito, eu descanso, é meu berço Esperança vem do peito O amor do coração

Giram alas na avenida É Camisa colossal Com seu manto Verde e branco Gingar no carnaval127

A sabedoria anciã fala sobre o país caracterizando-o como uma criança, vale lembrar que o período que se inicia com o fim da ditadura civil e militar foi denominado de Nova República, algo que estava se iniciando e de maneira indireta, reforçam a ideia de uma sociedade que naturalmente vai encontrar os rumos da prosperidade com o passar do tempo.

127 Enredo: Ginga brasil moreno ou menino cor de canela. Compositor: Ideval. Camisa Verde e Branco, 1985.

Contudo, a atmosfera cívica trazia para a o carnaval enredos carregados de reivindicações políticas e sociais claras, como no samba da nenê de Vila Matilde.

Vai, Nenê Embalando a alegria E no canto Da Águia Guerreira Toda altaneira Cai na folia Quando o cacique rodou a baiana O turuna vestiu a camisa, gravata e paletó Mas o branco soberano Só explorando Até que o índio disse ó Ó ó ó Até que o índio disse ó Macobeta No rádio e televisão Destrói a arte E a imaginação

Negro também quer Poder falar alto Rodar a baiana Chegar no planalto

Hoje Para orgulho de nossa nação Negros e brancos E índios são irmãos Reivindicando seus direitos Se unindo em mutirão!

Oh! meu senhor... Devolva minhas terras Por favor Nosso canto e dança Desponta nossa alegria Driblando a inflação É o nosso dia-a-dia128

Nesta narrativa, são apresentados elementos muito próximos com as perspectivas de uma construção democrática, estimulado inclusive nas propagandas do governo federal onde o slogan era ”Tudo pelo social”. A afirmação de que juntos negros brancos e índios lutam por seus direitos e somando esforços individuais para o bem comum onde a palavra mutirão reflete,

128 Enredo: O dia em que o cacique rodou a baiana, aí ó. Compositores: Ala Jovem e Paulinho da Matilde. Nenê de Vila Matilde, 1985.

concretamente, os esforços comunitários de uma Escola de Samba, além de almejar cargos públicos centrais na vida política do país. A Barroca Zona Sul apresenta em seu enredo a História de Chico Rei e a União Independente da Vila Prudente traz o enredo “Magia de uma raça” ambas as narrativas trazem consigo a dores da escravidão e duas referências da contra escravidão uma Chico rei, a outra Zumbi dos Palmares.

Eu vou contar A história do bom chico rei Que foi capturado Com seu povo escravizado Sem pudor e sem ter lei

No porão de um tumbeiro Num maldito cativeiro O chicote do feitor E naquele sofrimento Se ouvia um lamento De tristeza e de dor

Ô ô Zambi, deus do amor e da paz Tenha pena desta gente Que pensa na corrente, sofre e padece demais

E no Rio de Janeiro No Valongo leiloeiro a apregoar E um fidalgo mineiro, moço cheio de dinheiro Foi lhe comprar E foi levado a Vila Rica Ao trabalhar nas minas do senhor E todo dia levava ouro nos cabelos Até que um dia a alforria ele comprou

Mandou libertar seu povo E voltou a ser rei de novo

Vamos nos dez anos de Barroca Quando o samba te evoca e vem para te coroar

Mandou construir uma igreja Lá no alto da cruz Pra Santa Efigênia Sua devoção, sua luz.129

A narrativa de Chico Rei denota certa linearidade e destaca as bondades dele, comprando a alforria de muitos escravos e construindo uma Igreja.

Viagem num navio negreiro Para o solo brasileiro Negro chorava, negro sofria Sem se preocupar com a morte Só em busca da sorte Era a luta do seu dia-a-dia

129 Enredo: Chico Rei, “O explendor de uma raça”. Compositores: Toninho de Carvalho, Sidney da Conceição, W. Medeiros. Barroca Zona Sul, 1985.

Rezava forte o negro Lá no quilombo eu vi Bravos guerreiros Comandados por zumbi Odero motidi yio, motiba ebaba mokulê Baba ewa batigero, motiba ebaba mokulê

Na Bahia, nasceu o candomblé, candomblé Seu axé capoeira, baianas faceiras Benzem com arruda e guiné (e guiné) E no rio de janeiro viola e pandeiro Escola de samba Em São Paulo fazia muita boemia Orgia, pagode e roda de samba Canta, canta, quero ouvir seu cantar Esquece o seu pranto no seu patuá É a união na avenida que passa Exaltando a magia de uma raça

Herança africana que faz brilhar Um sorriso negro que o samba tem Um novo dia virá e um grito de liberdade Virá também130

Além de narrar a liderança guerreira de Zumbi dos Palmares, esta composição projeta um futuro de liberdade, exalta a herança e o sorriso negro, aspecto marcante da expressão cultural e que remete às resistências negras dentro de uma relação política e festiva no campo religioso, destaca as características negras na Bahia e no Rio de janeiro, amplamente espelhada e enaltecida pelas escolas de samba de São Paulo. As reportagens focam os seus olhares nas questões técnicas das apresentações, da aglomeração de pessoas na concentração e o comércio informal de bebidas e comidas, prefeito Mario Covas, a exploração da nudez feminina pela televisão e principalmente no atraso e discussão dos dirigentes das escolas e diretores da UESP quanto à composição dos jurados. O destaque dos jornais em 1986 foi para a grande indefinição sobre a montagem do carnaval de São Paulo, pouco se falou sobre os enredos. O novo prefeito Jânio Quadros empossado em janeiro de 1986, traz consigo muitas alterações na estrutura das secretarias, entre elas o fim da PAULISTUR que organizava o carnaval. Diante dessa realidade, os jornais voltavam os seus

130 Enredo: Magia de uma raça. Compositores: Grupo família, Daniel, João Amorim, Biguinho. União Independente da Vila Prudente, 1985.

esforços na cobertura dos preparativos em informar o seu público quanto às novas decisões para montagem do carnaval, chegou-se até a especular a hipótese de não haver desfile naquele ano. No sábado, uma semana antes do carnaval, a Folha de São Paulo publicou uma tabela para o leitor entender a “novela” do carnaval daquele ano, entre as indefinições que pairavam faltando oito dias para o desfile destacavase a destituição da PAULISTUR e a demissão de grande parte dos seus funcionários, sendo substituída pela Anhembi Centro de Feiras e Congressos, contando com profissionais experientes em eventos no palácio das convenções, mas não na organização do carnaval, o que resultou em 4 alterações em três semanas na equipe responsável pela organização, quando aparece a figura de Epaminondas José da Cunha, chamado às pressas, pois já trabalhara na organização do carnaval na prefeitura de Olavo Setúbal, em 1978 e 1979. Durante a semana os olhares dos veículos de comunicação iam de encontro as indefinições: ingressos não impressos, nada decidido sobre a montagem das arquibancadas, indecisão quanto aos transportes dos carros alegóricos para a passarela, assim como o transporte dos componentes das escolas. Houve contratação de empresas sem licitação e a ampliação dos gastos de Cr$ 8,5 bilhões para Cr$ 14 bilhões. Indefinição quanto ao dia do desfile, pois o tradicional domingo poderia ser substituído pelo sábado para evitar a concorrência na transmissão televisiva dos desfiles do Rio de Janeiro. Somando a todos estes percalços, foi realizada a escolha do corpo de jurados pela UESP, naquele ano presidida por Betinho, diretor da Nenê de vila Matilde, fato que já foi motivo de discórdia no ano anterior e onde a escola da zona Leste sagrou-se campeã, surgirá no mesmo ano de 1986 a LIGA, assunto que trataremos a seguir. Dentro de uma perspectiva de sátira, atrativa a uma linguagem televisiva da época, a Escola Colorado do Brás apresenta o enredo “Ah! Se eu fosse Noé”, um devaneio contemporâneo da mitologia Judaico Cristã, descreve tudo o que seria levado para dentro da Arca de Nóe no caso de um dilúvio:

Vou mandar, fazer a minha arca Quem quiser pode embarcar Minha arca é de alegria, vai ter festa noite e dia

Vem comigo, vem sonhar Não sou Noé, mas comigo vou levar Uma escola de samba, muita muamba, amuletos e iemanjá

Vou levar mulata, vou ver o meu pandeiro Vou levar o meu terreiro, e um galinho de guiné Vai ter feijoada, uma cerva bem gelada Não vai faltar cachaça, vatapá, acarajé

Óh, mãe natureza, de braços com você vou navegar Quero a flora colorida, e pra fauna uma guarida E uma estrela a me guiar Mas no infinito, vou buscar os imortais

Grandes poetas, grandes valores Que o tempo não desfaz Já é maré cheia Alegria é geral Canta meu povo neste sonho sem igual Ô ô, ô, ô Com a Colorado neste carnaval131

Além do sincretismo religioso, está presente de forma significativamente a comida de origem africana e adotada como símbolo de brasilidade. A palavra folclore ressurge nas letras de dois sambas, uma em 1986 com o enredo” Apesar de tudo é isso aí”, da Mocidade Alegre; e em 1987, no enredo da Sociedade Rosas de Ouro “São Paulo, seu povo, sua gente”. O samba da Mocidade composto por Roberto da Tijuca, Nenê Capitão e Wagner do Cavaco, mostra a contradição de uma vida cotidiana com muitas dificuldades, mas que tem espaço para festas e alegrias.

Apesar Apesar de tudo é isso aí Nossa Mocidade Alegre Vem aí Nem branco, nem índio Nem ouro, nem prata Joga no preto que vai dar mulata

Na exposição Do folclore brasileiro Onde o nosso povo Vibra o ano inteiro Lendárias são suas magias Com danças, crenças e fantasias Numa sinfonia ritual Dando um colorido sem igual Me leva de encontro à natureza Onde o verde é uma beleza Sinta o perfume no ar

131 Enredo: Ah se eu fosse Noé. Compositores: Dom Marcos, Preto Xixá, Roná Gonzaguinha. Colorado do Brás, 1986.

Nesta terra que é tão rica Maravilhosa ela fica Quando o povo for morar No meu país tanta emoção Futebol é atração Faz a torcida delirar Qualhada gela no banco Véio Zuza implorando Aos seus orixás

Na beira da praia Garotas de tanga Surfistas nas ondas, brincando no mar Uma cerva gelada, batuque na lata Sambista vai se embriagar132

As referências de negritude neste samba se dão com a mulher negra sob o estereotipo da mulata e de um personagem de televisão, do humorista Chico Anysio, chamado de Veio Zuza. Uma caricatura de um líder espiritual e conselheiro ao estilo black face. Este samba apresenta negritudes muito próximas ao que é explorado pela televisão em programas de entretenimento. Na mesma época, algumas escolas de samba fugiram desta tendência e apresentaram narrativas mais engajadas com as lutas contemporâneas negras e com as perpetuações das memórias de grupos, de líderes políticos, e de artistas negros que, ao terem suas vidas narradas, retratam características coletivas. A Unidos do Peruche homenageia o artista circense Benjamim de Oliveira.

Olha eu ai, vendendo de novo A Tiradentes me recebe engalanada Eu sou alegria, emoção do povo, trago Benjamind Canta, canta peruchada

Negrinho, o menino tão valente, sim Em lombo de burro andava Seu canto o acalanto do sertão ô ô Rimas que o povo gostava O circo é o seu destino, corre prá ele menino Na raça na força guerreiro Olha o Benjamind no picadeiro

Coroa de rei, é de ouro, prata e marfim Coroa do negro palhaço, feita de capim

132 Enredo: Apesar de tudo é isso aí. Compositores: Roberto da Tijuca, Nenê Capitão, Wagner do cavaco. Mocidade Alegre, 1986.

Se não fosse a Jandira Lhe tirar da tirania Era sonho o pedestal E a cena assim prossegue Com o tal viúva alegre Ou princesa de cristal O palhaço vai a rua Madrugada toda sua E a lua lá no céu Desnudada do seu véu Clareando o carnaval

Moço até Peixoto Aplaudiu a sua fama que veio de longe do Circo Politegaa133

Aqui, destaca-se a realidade de Benjamim de Oliveira que se emprega uma realidade social e uma metáfora que descreve a segregação vivida pela população negra apresentada pela diferença entre a coroa de rei e a coroa do negro palhaço. O trocadilho entre a realidade artística do homenageado, a uma condição social da população negra pode ser considerada uma denúncia social. Percebemos a proximidade do homenageado com a realidade comunitária na medida em que o samba ressalta a própria comunidade peruchiana e os espectadores do desfile. Diferentemente das tendências satíricas e televisivas, outra composição neste ano de Mestre Lagrila, famoso por dirigir baterias e composições vencedoras no carnaval de São Paulo, em parceria novamente com Ideval, está no enredo Festa para uma Rainha negra, homenagem a Luiza Mahin, personagem central na revolta dos Males.

Uma época distante, senhor Lá pra os lados da Bahia Era lei do cativeiro senhor Para o negro que sofria A razão chegou mais forte porque A revolta dos malés Nega “Luíza” mulher sofrida Entra na luta filha de gegê

Ole ola lala Acende a fogueira, o batuque não pode parar

133 Enredo: Benjamin de Oliveira, “O palhaço negro”. Compositores: Ideval, Mestre Lagrila, Carlinhos. Unidos do Peruche, 1986

Ole ola lala Segura na barra da saia, senão ela pode queimar

Menino toca o ganze ou ganzá Esta noite é pra cantar Aqui só há alegria e amor Hoje é festa no congar O terreiro enfeitado e no céu A lua clarear Não chores não, corre pra ver Luiza rainha, filha de gegê

Ole ola lala Acende a fogueira, o batuque não pode parar Ole ola lala Segura na barra da saia, senão ela pode queimar

Bate a cabeça no chão, oh senhor Ela acabou de chegar No tempo da escravidão, o que fez? Guerreou pra nos salvar Para a deusa de bronze, o que? Oferendas vamos dar E esta noite é pra você Nossa rainha filha de Jejê

Ole ola lala Acende a fogueira, o batuque não pode parar Ole ola lala Segura na barra da saia, senão ela pode queimar134

o samba, dividido em três partes, ressalta a vida indigna da escravidão, a homenagem e as festa em um terreiro, e traz as devidas honras de rainha em um culto de candomblé que, na verdade, trata-se do próprio desfile. Nesta oportunidade o samba foi interpretado por Marcia Ynaia. Novamente a Revolta dos Malês é narrada em um desfile resgatando as características comunitárias da escola quando a descreve como filha de Jejê, algo presente contemporaneamente aos adeptos desta linha do Candomblé. Um fato que merece destaque e nos ajuda a perceber as diretrizes e caminhos das narrativas do período em estudo é a reportagem feita pela Folha de São Paulo quando cobrindo os preparativos da Nenê de Vila Matilde reporta a censura interna na letra do samba de Armando da Mangueira denominado “Rabo de foguete” onde o samba original tinha as seguintes frases: Crianças sem

134 Enredo: Festa para uma rainha negra. Compositores: Mestre Lagrila e Ideval. Imperador do Ipiranga, 1986.

revolver na mão/ reforma agrária irmão/ o rico dividindo o seu quinhão. Que foi substituído por: criança sem revolver na mão/ vou torcer pra seleção/esnobar a inflação.135Segundo a reportagem, Armando da Mangueira disse que o Betinho se assustou e que reforma agrária era coisa de comunista. Ainda na matéria sem assinatura este fato se aproximava de um “conformismo delirante dos carnavais da era Medici”. Obviamente, é coerente associar esta proibição com um passado muito recente de censuras prévias e dos valores hegemônicos permanentes nos diversos setores da sociedade aos quais o regime ditatorial ajudou a reforçar. Contudo, não podemos perder de vista que Betinho era, naquele ano, presidente da UESP, ligado a grupos do então PMDB de Mario Covas e João Doria Junior, ex prefeito e ex presidente da PAULITUR, respectivamente, interessados em ampliar a entrada da iniciativa privada no carnaval, que ano a ano vai ganhando força no evento e que vai se consolidar no ano seguinte, além das questões políticas onde grupos adversários se caracterizavam pelo anseio da reforma agrária no Brasil. A luta dos quilombos no passado e dos povos quilombolas no presente estão intimamente ligados a terra. A autocensura descrita acima reflete o alinhamento ao hegemônico de uma escola que tradicionalmente traz em suas narrativas denúncias de segregação e anseios sociais.

135 Fol ha de São Paul o, 9 de feverei ro de 1986. P. 17.

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