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Da Vontade Natural à Racional: Uma Passagem de Hume a Kant

DA VONTADE NATURAL À RACIONAL: UMA PASSAGEM DE HUME A KANT

Andreh Sabino Ribeiro1

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1. Introdução

As várias teorias morais dos séculos XVII e XVIII problematizavam sobre o alicerce da moralidade. Todas as questões, marcadas pela Revolução Científica, pelo apelo por maior participação política e, principalmente, pela exigência por novas justificativas para a autoridade moral2 , gravitavam em torno da compreensão do modo como conhecemos a moralidade e agimos em sua consonância3 . Não diferentemente para Hume, a fundamentação moral, dentro dos limites da experiência, é “ uma controvérsia bem mais digna de exame ” . Inquestionada a realidade das distinções morais, cabia inquirir por meio de que atividade mental elas fazem parte do cotidiano dos homens4 . Já a fundamentação kantiana ousa ir além e busca fixar o “princípio supremo da moralidade”5 . Esta tarefa, para Hume, soaria como impraticável, uma vez que se considera como campo de investigação tão somente a experiência para não incorrermos em teorias fantasiosas6 . No entanto, Kant, ainda que faça certas

1 Bolsista CAPES 2009.02. E-mail: andrehnj@yahoo.com.br Mestre em Filosofia pela UFC e Professor Subsituto da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN). 2 Ver SCHNEEWIND, J. B. A invenção da autonomia: uma história da filosofia moral moderna. Trad. port. de Magda França Lopes. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2005, p. 3334. 3 RAWLS, J. História da filosofia moral. Org. Barbara Herman. Trad. port. de Ana Aguiar Cotrim. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 14. 4 HUME, D. Investigação sobre os princípios da moral. In: Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. Trad. port. de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Editora UNESP, 2004, p. 226. Para as citações referentes a esta obra utilizaremos a sigla IPM, seguida da indicação do capítulo e da seção (neste caso, 1.3), a fim de facilitar a consulta em qualquer edição, além da página. 5 KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. port. de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2005, p. 19. Para as citações referentes a esta obra utilizaremos a sigla FMC, seguida da indicação da seção (no caso, BA xvi), a fim de facilitar a consulta em qualquer edição, além da página. 6 HUME, D. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Trad. port. de Déborah Danowski. São Paulo: UNESP Imprensa Oficial do Estado, 2001, p. 23. Para as citações referentes a esta obra utilizaremos a sigla TNH, seguida da indicação do livro, da parte, da seção e do parágrafo – com a exceção da introdução, dividida apenas por parágrafos (no caso, introdução 8) – além da página.

concessões ao filósofo escocês, argumenta em favor da necessidade do abandono do mundo empírico. O presente texto procura trazer não tanto uma contraposição entre os dois autores, antes salientar alguma continuidade da problemática da fundamentação moral na transição de um para o outro, percebendo o momento em que se distanciam. Assim, uma compreensão acertada do projeto de Hume enseja a configuração da própria filosofia moral kantiana, não só porque esta pretende superar os limites daquele, como também enquanto lhe é devedora. Para tal propósito, escolhemos um conceito que nos parece ser central para ambos os pensadores no tocante à moral, a saber, a vontade, por partir sempre desta o móvel da ação.

2. Hume e a Moralidade no Reino da Natureza

Quanto ao fenômeno moral, Hume mostra a ligação entre duas questões distintas. Uma é a da motivação e a outra é a do julgamento. Ele trata a primeira no livro 3 do Tratado apenas em função da segunda, que lhe parece mais importante e mais complexa. Conforme o tipo de atividade moral (motivação e julgamento), definem-se os arranjos entre nossas atividades mentais (razão e sentimento). Seguimos primeiramente à compreensão destas em âmbito da motivação, a fim de, então, passar ao nível do julgamento ou distinção moral, obedecendo a própria lógica humeana. A razão, ou o entendimento, pode ser exercida de dois modos. Um enquanto demonstração, isto é, a partir da relação entre ideias, habilidade por meio da qual racionalistas morais, como Samuel Clarke, acreditavam que pudéssemos estabelecer as bases da moral7 . Para Hume, seu próprio domínio não poderia provocar qualquer movimento, seja moral ou mesmo físico, dado, por exemplo, que a matemática por si não interfira na mecânica, antes o

7 O racionalismo moral, ou intuicionismo racionalista, fora mais um modelo de filosofia moral do século XVII e XVIII, compondo alguns dos principais adversários teóricos de David Hume, dentre eles Samuel Clarke, William Wollaston e Ralph Cudworth. Em linhas gerais, esta teoria pressupõe uma objetividade da distinção entre virtude e vício, ou seja, a ação mesma, independente da situação espaço-temporal do agente, carrega um valor determinado. Por receio de um relativismo e como fuga da autoridade da tradição, lança-se sobre a razão a confiança na descoberta do que seja moralmente correto com validade universal e eterna, assim como ela se mostra capaz de mesma habilidade quanto às verdades matemáticas. A razão, imparcial e passivamente, acolhe as leis morais imutáveis. O comportamento que as cumpre configura-se como virtude, o que as desacata como vício. O julgamento moral seria um exercício a priori da razão, uma vez que regras morais aplicam-se necessária e universalmente. Este discernimento por si bastaria para motivar a ação moral (Ver RAPHAEL, D. D. Hume’s critique of ethical racionalism. In: TODD, William B. Hume and the Enlightenment - Essays presented to Ernest Campbell Mossner. Bristol: Thoemmes, 1974, p. 15-17; RAWLS, J. História da Filosofia Moral. Barbara Herman (Org.). Trad. port. de Ana Aguiar Cotrim. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 81-97).

contrário, sendo esta a lhe fazer exigências. Este caráter abstrato no máximo influencia enquanto esclarece ao juízo sobre as causas e os efeitos. O outro modo de uso do entendimento acontece pela probabilidade. A partir da experiência, ou questões de fato, formamos um raciocínio acerca da relação entre os objetos. A razão tão somente descobre uma conexão entre eles, oferecendo às paixões os meios pelos quais possa evitar a dor e buscar o prazer em cada ação. Com isso, Hume defende que o poder da razão não é gerador e sim condutor8 . A razão, seja enquanto demonstração (inferência dedutiva), seja enquanto probabilidade (inferência indutiva), para operar, requer relação, de acordo ou desacordo entre as partes. Quer dizer, seus objetos são de realidade representacional, referem-se a coisas. Hume concordaria com os racionalistas quanto à imutabilidade da moral, caso o objeto desta consistisse em relações de ideias. No entanto, as paixões, assim como as ações, fogem desta determinação, por se constituírem cada uma como realidade original, para a qual inexistem quaisquer referências. Por isso, nenhuma ação pode ser racional e nem tão pouco irracional, considerando que estes adjetivos designem uma decisão que pudesse ou não originar-se da razão. Fica patente não somente a rejeição de que uma ação virtuosa seja racional e uma viciosa irracional, como também a própria suposta origem racional na distinção entre bem e mal morais. A razão permaneceria inativa, quer na geração, quer na distinção das ações9 . Então, seu papel consistiria em: 1) despertar uma paixão quando leva à mente informações concernentes ao interesse da mesma paixão e 2) descobrir, pela conexão entre causa e efeito, os meios pelos quais uma paixão possa atingir seu fim. Estas operações da razão são juízos e, como tais, passíveis de erro e involuntárias, e nunca morais. Se a moralidade dependesse simplesmente de uma ação estar ou não em acordo com a razão, as circunstâncias seriam irrelevantes e não haveria, por exemplo, gradação de virtude e vício entre ações distintas de mesmo valor moral10 . Como a (observação e a consequente) distinção moral influencia a (motivação ou produção da) ação moral, onde a razão é inativa, a distinção moral também não pode originar-se da razão, o que não implica que ainda permaneça inerte neste âmbito. O livro 2 do Tratado prova que a razão não produz uma ação sequer. O livro 3 da mesma obra qualifica esta ação como moral e deduz que se a produção (moral) sofre influência da distinção (moral) esta também não pode vir da razão. A razão poderia até ser “causa” de uma ação, ao menos enquanto se considere que esta causa limite-se a estimular ou

8 HUME, D. TNH 2.3.3.2-3, p. 449-450. 9 HUME, D. TNH 3.1.1.9-10, p. 498. 10 HUME, D. TNH 3.1.1.12-13, p. 499-500.

dirigir uma paixão, esta o verdadeiro e único propulsor direto da ação. Deste modo, não faz sentido falar de verdade ou falsidade na moralidade11 . Se a moralidade consistisse em certas relações determinadas haveria de admitir-se que animais e até objetos inanimados fossem passíveis de virtude e vício, o que seria absurdo. Para que existam estas relações teriam elas que se situarem exclusivamente entre a ação humana e os objetos externos, caso contrário se concluiria que alguém pudesse ser culpado por um ato contra si mesmo ou que objetos inanimados disponham da mesma possibilidade. Mesmo que estas relações fossem demonstráveis, careceria ainda mostrar como elas se ligam à vontade, já que as leis morais as quais sustentariam se impõem como imutáveis, universais e de efeitos necessários, a despeito das particularidades dos indivíduos, o que não se tem como provar a priori12 . Simples casos de relações iguais e causas diferentes podem refutar a tese racionalista. Uma árvore que brota abaixo de outra e que vem posteriormente a sufocar e destruir esta apresenta a mesma relação de um filho que mata o pai, no entanto provocada por leis da matéria, ao passo que a causa do ato humano é a vontade, o que faz toda a diferença e demarca a presença da moralidade13 . O “movimento” moral é dotado de uma natureza particular, porque causado por uma vontade, ainda que pertencente à natureza geral. A volição é determinada pelo sentimento, que será decisivo não só na motivação, como também na distinção moral, ainda que não exclusivamente como naquela. Por isso, o objeto analisado pela filosofia moral não são os eventos em si, como acontece com a filosofia da natureza, mas a distinção ou o juízo que deles fazemos. Hume quer dizer que pela razão somos indiferentes, que nenhum exercício do entendimento em si leva o homem a tender mais ou menos a uma ação que outra. Esta faculdade humana não cria uma vontade, a causa de uma ação moral e, portanto, sequer teria condições de contrariar as paixões. É o que fica expresso na passagem: “ a razão é, e deve ser, apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar a outra função além de servir e obedecer a elas”14 . Para que a razão rivalize com as paixões teria de configurar-se como força e força antagônica, o que jamais acontece. A determinação de uma vontade dá-se tão somente pelas paixões, sejam violentas ou calmas, estas de tão sutis é que poderiam ser confundidas com a razão. Assim, a possibilidade do homem agir contra seu próprio interesse ou a de preferir um bem menor a um maior não demonstra a disputa entre razão e paixões, antes entre paixões calmas e violentas15 . Nesta mesma linha segue o sentido do último parágrafo

11 HUME, D. TNH 3.1.1.16, p. 501-502. 12 HUME, D. TNH 3.1.1.19-22, p. 503-505. 13 HUME, D. TNH 3.1.1.24, p. 506-507. 14 HUME, D. TNH 2.3.3.4, p. 451. 15 HUME, D. TNH 2.3.3.8-10, p. 453-454.

da primeira seção do livro 3 do Tratado, tão curto, mas impactante na história da filosofia, conhecido como a questão “é-deve” . Em todo sistema de moral que até hoje encontrei, sempre notei que o autor segue durante algum tempo o modo comum de raciocinar [...] de repente, surpreendome ao ver que, em vez das cópulas proposicionais usuais, como é e não é, não encontro uma só proposição que não esteja conectada a outra por um deve ou não deve. Essa mudança é imperceptível, porém da maior importância. Pois, como esse deve ou não deve expressa uma nova relação ou afirmação, esta precisaria ser notada e explicada; ao mesmo tempo, seria preciso que se desse uma razão para algo que parece inteiramente inconcebível, ou seja, como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes. Mas já que os autores não costumam usar essa precaução, tomarei a liberdade de recomendá-las aos leitores; estou persuadido de que essa pequena atenção seria suficiente para subverter todos os sistemas correntes de moralidade, e nos faria ver que a distinção entre vício e virtude não está fundada meramente nas relações dos objetos, nem é percebida pela razão16 . Com isso, Hume não estaria proibindo peremptoriamente a passagem da natureza para a norma. Isso era necessário e acontecia na realidade. Cabia, então, dizer como se dá a continuidade. A dificuldade residiria na limitação do filósofo moral ao nível racional, pois os juízos morais não têm intenção de descrever e sim de influenciar a ação. Como para Hume a moralidade é um fenômeno natural que relaciona necessidades e interesses humanos, apenas sentenças de fato sem qualquer referência a estes apelos são incapazes de servir de base a juízos morais17 . Esta diferenciação representa, contextualmente, um ganho para a investigação de Hume: o de confirmar sua crítica à teoria de que a razão seria uma faculdade humana capaz não só de descobrir relações necessárias e eternas, mas também de motivar ao cumprimento do descoberto18 .

16 HUME, D. TNH 3.1.1.27, p. 509. 17 MACINTYRE, Alasdair C. Hume on ‘Is’ and ‘Ought’. In: Stanley Tweyman (Ed.). David Hume: Critical Assessments, Volume IV. Londres: Routledge, 1995, p. 485-498. 18 A questão “é-deve” consistiria numa crítica exclusiva ou primariamente dirigida a Samuel Clarke, para quem o simples fato de existirem diferenças entre as coisas implicaria em certas relações adequadas e eternas que determinam a ação divina e deveriam determinar também a humana (Cf. RAPHAEL, D. D. Op. cit, p. 27). O fundamento da moral para Clarke não está na Vontade divina, mas na Razão do Criador. Nesta se sustentam as essências das coisas, das quais procedem naturalmente as adequadas relações entre elas. A vontade divina se dobra diante da sua razão, da qual emana a ordem necessária (RAWLS, J. Op. cit., p. 84). Deste

Para Hume, o juízo moral, uma atividade que acontece no nosso interior por meio de um complexo entrelaçamento de nossas faculdades mentais, só poderia imprimir um valor às ações pelo sentimento. Na avaliação moral, a razão seria forçada a auxiliar as paixões seguindo a utilidade como critério irrecusável recebido da natureza, já que o útil só nos agrada por conta da nossa habilidade de espelhar os sentimentos alheios, chamada de simpatia. Noutras palavras, à ação agradável, nestas condições, damos o nome de virtude19 . É incontestável que, para Hume, a razão não motive qualquer ação, uma vez que seja incapaz de fornecer uma preferência à vontade. À razão caberia a função de informar às paixões os meios para atingir o desejado, calculando a tendência dos objetos, já que, por vezes, o prazer maior não está tão próximo. Resumidamente, o que a razão faz é orientar, ficando sob exclusiva competência das paixões o impulso das ações, ao determinar a vontade.

3. Vontade e liberdade

Hume aponta dois sentidos para a palavra liberdade, um enquanto ligado à ação e o outro enquanto remetido à vontade, causa da ação20 . Não nega o primeiro, pois podemos agir espontaneamente. A vontade comandaria a ação humana, mas aquela já causada por circunstâncias. Para ele, uma ação moral só é livre porque causada pela vontade. Contudo, esta liberdade está condicionada pela determinação da natureza sobre a vontade, uma vez que esta nunca poderia ser indiferente, mas se inclina naturalmente a uma alternativa, sempre seguindo os interesses, impulsos de prazer ou dor21 . Seria absurdo que uma ação fosse indeterminada, pois não haveria de ter uma causa, ou, noutra palavra, uma necessidade. A liberdade, enquanto indiferença da vontade, seria o mesmo que o acaso no mundo físico. Hume diz que isto não existe, o que poderia existir sim é a nossa falta de conhecimento sobre as causas, tanto para o evento físico quanto para o moral22 . A posição de Hume seria a de um determinismo fraco da natureza sobre a vontade ou um compatibilismo entre necessidade e liberdade. Contudo, tal conexão não seria objetiva, como se presume que seja no mundo físico, pois nem sabemos se ultrapassa os limites de nossa mente. O que Hume quer

modo, o homem deveria submeter sua vontade não à vontade divina, mas a sua própria razão, que como qualquer razão, inclusive a de Deus, reconhece as relações naturalmente devidas. O homem, descobrindo racionalmente as leis morais, segue o comportamento divino. 19 HUME, D. IPM 5.15, p. 284. 20 Ver HUME, D. TNH 2.3.2.1, p. 443. 21 HUME, D. TNH 2.3.1.2, p. 435. 22 HUME, D. TNH 2.3.1.18, p. 443.

negar é uma indiferença da vontade, como se ela não se inclinasse naturalmente a qualquer alternativa, e não uma espontaneidade da ação, perfeitamente conciliável com certa regularidade, que é necessária à avaliação moral. A esta não cabe quem possa iludir-se por uma indiferença de escolha, como o próprio agente. Já o espectador, que sempre tem expectativas diante do agente, julga-o centrando-se no caráter (regularidade da conduta) e nos motivos (causas ou determinações)23 . O único modo de uma vontade ser livre é que fosse determinada pela razão sozinha, empreendimento considerado impossível24 . Kant concorda com praticamente toda esta explanação até agora, desde que o que se refira seja exclusivamente sobre o mundo empírico. Justamente por isso, a única via de uma possível liberdade da vontade está em uma “metafísica dos costumes”:

uma lei que tenha que valer moralmente, isto é como fundamento duma obrigação, tem de ter em si mesma uma necessidade absoluta [...] por conseguinte, o princípio da obrigação não se há de buscar aqui na natureza do homem ou nas circunstâncias do mundo em que o homem está posto, mas sim a priori exclusivamente nos conceitos da razão pura. 25 Uma noção central para a filosofia moral kantiana é a vontade, assim como em Hume, considerada a causa de uma ação. No entanto, para que a ação seja completamente livre o conceito de vontade deve mudar. Assim, Kant a concebe como pura, distinta dos desejos particulares e fixada por uma necessidade absoluta a priori. Os desejos seriam naturalmente desordenados, tal como a faculdade da sensibilidade em filosofia teórica. Já a vontade, de instância superior, consiste em distinguir os desejos propícios a nossa felicidade. À vontade caberia a regulação dos objetivos propostos pelos desejos, uma vez que não seria a mera satisfação de todos eles que consistiria na felicidade, além de fazer por onde esta restrição seja cumprida. Tal vontade oferece “ a opção de agir somente segundo a razão que a sua própria atividade legislativa nos proporciona” , sendo não somente a alternativa aos desejos que, “embora certamente partam de nós mesmos, são causados em nós por nossos encontros com o mundo exterior”26 , mas a condição para uma ação livre, ou melhor, autônoma. O conceito de razão também muda em Kant, não é instrumental, como era para Hume (“escrava das paixões”), e passa a ser prática, reguladora e

23 ALBIERI, S. Caráter e ação moral: a teoria compatibilista de David Hume. Metacrítica, v. 1, n. 2, 2003, p. 113-122. 24 HUME, D. TNH 2.3.3.2-3, p. 449-450. 25 KANT, I. FMC, BA viii, p. 15-16. 26 SCHNEEWIND, J.B. Op.cit., p. 563.

motivadora, o que se liga a uma vontade autorreguladora e automotivadora, pois é formal e precede todo desejo, este preso ao mundo material. Kant concorda com Hume que a razão seja inerte, mas no campo empírico: Se a razão não é apta bastante para guiar com segurança a vontade no que respeita aos seus objetos e à satisfação de todas as nossas necessidades [...], visto que um instinto natural inato levaria com maior certeza a este fim, e se, no entanto, a razão nos foi dada como faculdade prática, isto é, como faculdade que deve exercer influência sobre a vontade, então o seu verdadeiro destino deverá ser produzir uma vontade, não só boa quiçá como meio para outra intenção, mas uma vontade boa em si mesma, para o que a razão era absolutamente necessária, uma vez que a natureza de resto agiu em tudo com acerto na repartição das faculdades e talentos27 . Esta vontade não é um querer por objetos ou ações, como pensava Hume, mas por uma forma de agir, pelo dever ou imperativo categórico, a condição necessária para um agente não ser determinado pelas limitações empíricas. Assim, o valor da ação está nesta vontade específica, ou na forma do querer o dever, buscado em si e por ele mesmo (não simplesmente conforme ele), e não no desejo, que depende do objeto desejado que não é ele mesmo. Por isso

uma ação praticada por dever tem o seu valor moral, não no propósito que com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina; não depende portanto da realidade do objeto da ação, mas somente do princípio do querer segundo o qual a ação, abstraindo de todos os objetos da faculdade de julgar, foi praticada.28 É deste modo que Kant cria a autonomia. A vontade dita as próprias leis a que se submete, considerando uma validade universal e um fim em si, derivando daí os imperativos categóricos. Porque o dever possui um valor em si seria suficiente para motivar. O homem é livre, ou seja, autodetermina-se, somente quando segue uma lei que seja válida a todos os seres racionais, por anteceder a qualquer circunstância, e por ela mesma. De fato, em comparação a seus predecessores, Hume já teria formulado uma teoria moral que se aproximaria da autonomia, enquanto se recusa a aceitar que sejamos governados por uma lei que independe de nós. Apesar dele não conceber uma moral externa e objetiva, não seríamos autônomos, uma vez que irremediavelmente dependeríamos da natureza29 . A autonomia

27 KANT, I. FMC, BA 6,7, p. 25. 28 KANT, I. FMC, BA 13, p. 30. 29 SCHNEEWIND, J.B. op. cit., p. 559.

vem a nascer quando Kant pressupõe uma liberdade transcendental, que serve de referência para a razão na fuga da causação natural30 . Tal liberdade não é como a liberdade da vontade enquanto indeterminação, o que seria absurdo por sugerir uma ação motivada pelo mero acaso, como Kant já estaria bem advertido por Hume. Esta liberdade também não seria simplesmente idêntica à liberdade da ação no sentido humeano, pois isto significaria dizer apenas que ação é movida pela vontade. Esta garantiria apenas espontaneidade, jamais autonomia. E é nesta direção que continua Kant. Kant parece estar ciente da advertência de Hume quanto à razão instrumental. Por isso, não se enquadraria na crítica humeana ao racionalismo moral, para o qual a moralidade seria da ordem da razão teórica, quando a razão apenas descobriria as relações necessárias e eternas entre as coisas e, conforme elas, as ações convenientes a serem praticadas31 . Kant foge das críticas de Hume quando formula uma moral assentada na razão prática e para tal começa com a modificação do conceito de vontade. A razão, para Kant, é prática não porque desvele uma lei a ser praticada, mas porque cria a própria lei. Este é um novo conceito de razão, que não é instrumental e nem mera receptora de conteúdos do mundo externo. A razão em suas mãos é produtora e estabelece uma lei, que é formal. Para isto, Kant precisou também pensar numa vontade, não de coisas, mas de desejos. Diríamos que, para Kant, a vontade de Hume se identifica a desejo, enquanto que a vontade que ele mesmo pensa seria uma espécie de desejo de segunda ordem, um desejo de desejo, o que possibilitaria pensar numa ação movida pela razão.

4. Considerações Finais

Toda a teoria moral de Kant depende do conceito de (boa) vontade, formulado ou inventado a partir de uma provocação humeana. Porque acatou a crítica do escocês a um pretenso domínio da razão no mundo empírico, não poderia recuar, o que não significou a desistência de uma defesa por uma ação completamente livre. Vemos, como pano de fundo comum a Hume e a Kant, a busca por uma nova autoridade para o comportamento humano, que não seja a da tradição. A saída de Hume será submeter o homem aos poderes da natureza. Compromete-se com o processo iniciado por Francis Bacon de laicização ou desencantamento do mundo, ou seja, de investigar a natureza a partir de um método autônomo e suficiente. Com isto, Hume propicia um pensar autônomo sobre a ação humana, o que, contudo, não implica que a própria ação humana seja autônoma. Verdade que Hume rejeita uma autoridade externa ao homem e uma objetividade dos valores morais. No entanto, Hume

30 SCHNEEWIND, J.B. op. cit., p. 560. 31 RAWLS, J. op. cit., p. 81-82.

liberta o homem da tradição e de seu mundo quimérico cercando-o de todos os lados pela natureza. Kant aceita de Hume que seja impossível a ação ser indeterminada, porém não se contenta com a única possibilidade apresentada pelo antecessor dela ser determinada. Seus esforços vão em busca das condições de outra forma de determinação, que não a da natureza, já que não bastaria que a ação seja espontânea para que o agente moral seja de fato livre, em sua acepção. Sua fórmula considera um ideal de ação livre, que indica o modo pelo qual possamos nos comportar fugindo da necessidade causal imposta pela natureza. Ele não diz que seja assim como temos nos comportado ou que alguém sequer age desta maneira. Antes, dá prosseguimento, alternativo à resposta empírica, com a determinação das condições necessárias para o dever ser da liberdade, não derivado da realidade factual, assim entendendo a advertência do predecessor quanto à passagem do “é” para o “deve” .

Referências Bibliográficas

ALBIERI, Sara. Caráter e ação moral: a teoria compatibilista de David Hume. Metacrítica, v. 1, n. 2, 2003, p. 113-122. HUME, David. Investigação sobre os princípios da moral. In: Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. Trad. port. de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: UNESP, 2004. ______. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Trad. port. de Déborah Danowski. São Paulo: Editora UNESP: Imprensa Oficial do Estado, 2001.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. port. de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2005. KREIMENDAHL, Lothar. A filosofia do século XVIII como filosofia do Iluminismo. In: Lothar Kreimendahl (Org.). Filósofos do século XVIII. Trad. port.: Dankwart Bernsmüller. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2007. MACINTYRE, Alasdair C. Hume on ‘Is’ and ‘Ought’. In: Stanley Tweyman (Ed.). David Hume: Critical Assessments, Volume IV. Londres: Routledge, 1995. RAPHAEL, D.D. Hume’s critique of ethical rationalism. In: TODD, William B. Hume and the Enlightenment (Essays presented to Ernest Campbell Mossner). Bristol: Thoemmes, 1974. RAWLS, John. História da Filosofia Moral. Org. de Barbara Herman. Trad. port. de Ana Aguiar Cotrim. São Paulo: Martins Fontes, 2005. SCHNEEWIND, J. B. A invenção da autonomia: uma história da filosofia moral moderna. Trad. de Magda França Lopes. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2005.

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