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Direito e Estado em Kant

DIREITO E ESTADO EM KANT

Aline Costa Menezes1

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Introdução

Este trabalho objetiva expor, discutir e analisar a Doutrina do Direito proposta por Kant, que está inserida na obra Metafísica dos Costumes; essa obra é, para Kant, o sistema que segue a Crítica da Razão Prática. A filosofia do direito de Kant não é uma doutrina dogmática pré-crítica, mas uma filosofia crítica que desenvolve um conceito de direito racional e a priori, que tem para a lei positiva o significado de um padrão de medida críticonormativa. Para Kant, o direito é algo necessário para compatibilizar a liberdade de todos. Analisaremos o conceito kantiano de direito e algumas de suas implicações; a diferença entre moral e direto; e, por fim, a relação entre direito privado e direito público, além de conceituá-los e diferenciá-los.

Definição de Direito

Para Kant, a doutrina do direito se constitui como um conjunto de leis que possibilita haver uma legislação externa. Se houver realmente essa legislação, significa que temos um direito positivo. A definição de direito, segundo Kant, é, “portanto, a soma das condições sob as quais a escolha de alguém pode ser unida à escolha de outrem de acordo com uma lei universal da liberdade” (KANT, 2003, p. 75). Uma das problemáticas relacionada ao direito positivo, na Metafísica dos Costumes, é que o jurista pode definir direito como aquilo que as leis num certo lugar e num certo tempo dizem ou disseram. Mas, a questão é: qual o critério universal pelo qual se pode estabelecer o certo e o errado, ou o justo e o injusto? A conclusão proposta por Kant é que o jurista não poderia responder essa questão, pois este lida apenas com princípios empíricos e contingentes, portanto, também não pode estabelecer se determinada ação é justa ou injusta, mas, somente, se ela é lícita ou ilícita conforme a lei positiva. Kant propõe uma definição do direito do ponto de vista racional, ou seja, a definição não se limita a uma definição empírica, por isso não se pode extrair do estudo do direito positivo. Pois, uma doutrina do direito meramente empírica “é uma cabeça possivelmente bela, mas infelizmente falta-lhe o cérebro” (KANT, 2003, p. 76).

1 Bolsista CAPES 2010.02. E-mail: aline.philia@hotmail.com

O direito é definido por Kant como coação, isto é, como algo ligado a uma obrigação. Enquanto coercitivo, o direito corresponde, primeiramente, somente uma relação externa de uma pessoa com a outra. Em segundo, significa a escolha de alguém somente por necessidade de outrem. E, por fim, nessa relação recíproca de escolha, não se leva em conta a finalidade que cada um tem em mente com o objeto do seu desejo. A partir dessa definição de direito como coação, Kant introduz ao conceito de direito o princípio universal do direito, que pode ser entendido como:

Qualquer ação é justa se for capaz de coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal ou se na sua máxima a liberdade de escolha de cada um puder coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal (KANT, 2003, p. 77). Portanto, o conceito de direito deve vincular a coação recíproca universal com a liberdade de todos. Direito e competência de empregar coação tem o mesmo significado e devem estar necessariamente ligados. E isto está no âmbito da pura intuição a priori. Bobbio esclarece a relação que Kant estabelece entre liberdade e coação.

É verdade que o direito é liberdade; mas é liberdade limitada pela presença da liberdade dos outros. Sendo a liberdade limitada e sendo eu um ser livre, pode acontecer que alguém transgrida os limites que me foram dados. Mas, uma vez que eu transgrida os limites, invadindo com minha liberdade a esfera da liberdade do outro, torno-me uma não-liberdade para o outro. Exatamente porque o outro é livre como eu, ainda que com uma liberdade limitada, tem o direito de repelir o meu ato de não-liberdade. Pelo fato que não pode repeli-lo a não ser por meio da coação, esta se apresenta como ato de não-liberdade cumprido para repelir o ato de nãoliberdade do outro, e portanto, – uma vez que duas negações afirmam –, como um ato restaurador da liberdade. A coação é, pois, um conceito antitético com relação à liberdade, mas enquanto surge como remédio contra uma não-liberdade anterior, é negação da negação e, então, afirmação. Portanto, ainda que seja antitética com relação à liberdade, a coação é necessária para a conservação da liberdade (BOBBIO, 2000, p. 78). Embora essa lei universal do direto seja uma lei que impõe uma obrigação, isto é seja uma lei coercitiva, ela não exige que devamos restringir nossa liberdade simplesmente em função dessa obrigação.

Diferença entre Direito e Moral

A distinção entre moral e direito, ou seja, entre moralidade e legalidade é uma das questões mais fundamentais do direito no pensamento de Kant. As leis morais que estão no âmbito da conduta humana são chamadas, por Kant, de leis da liberdade e, em contraposição a estas, há as leis da necessidade que regulam a natureza, ou os eventos naturais. O critério com base no qual Kant distingue moralidade de legalidade é quanto à forma da obrigação e não ao conteúdo da lei. Isto é, o conteúdo da lei é o mesmo, sendo que o que diferencia os dois tipos de ação é a forma como o indivíduo age: se ele age somente pelo dever, eliminando toda e qualquer inclinação sensível é uma ação moral, mas se ele age somente em conformidade com a lei, a ação é somente jurídica. Outro aspecto distintivo entre moralidade e legalidade é que a vontade moral é autônoma e a vontade jurídica é heterônoma. Na fundamentação, Kant diz que “a autonomia da vontade é a qualidade que a vontade tem de ser lei para si mesma” (KANT, 2008, p. 67), pois a vontade moral não obedece a nenhuma outra lei a não ser a lei moral. Se a vontade moral não for autônoma, ela não é moral. A heteronomia é uma antítese da autonomia, portanto, se refere à ação jurídica. A distinção entre moral e direito é posta também por Kant no âmbito da discriminação de liberdade interna e liberdade externa, ou seja, a moralidade diz respeito à liberdade interna e o direito, a liberdade externa ou liberdade jurídica. Esta está vinculada com a definição de direito como coação, isto é, com liberdade externa nasce a noção jurídica de dever, que se refere a uma ação na qual eu sou responsável frente aos outros. Como os outros têm o direito de me obrigar a cumprir determinada lei, pois senão eu estaria ferindo a liberdade do outro. Vejamos abaixo como Bobbio define esses dois tipos de liberdades, a partir da definição kantiana.

Por “liberdade moral” deve ser entendida, segundo Kant, a faculdade de adequação às leis que nossa razão nos dá a nós mesmos; por “liberdade jurídica” , a faculdade de agir no mundo externo, não sendo impedidos pela liberdade igual dos demais seres humanos, livres como eu, interna e externamente. (...) liberdade moral é a liberdade dos impedimentos que provém de nós mesmos (as inclinações, as paixões, os interesses), é liberação interior, esforço de adequação à lei eliminando os obstáculos que derivam da nossa faculdade de desejar; liberdade jurídica, porém, é a liberação dos impedimentos que provém dos outros, é liberação exterior, ou seja, eficaz no domínio do mundo externo em concorrência

com os outros, esforço por alcançar uma esfera de liberdade na qual seja possível para mim agir segundo o meu alcance sem ser perturbado pela ação dos outros (BOBBIO, 2000, p. 58-59). Portanto, há vários critérios de distinção, mas o principal é em relação à forma, pois o que diferencia não é o conteúdo, mas o que a motiva, isto é, se o indivíduo age somente pelo dever ou em conformidade com o dever. Essa distinção serve para evidenciar o conceito kantiano de direito, enquanto coação.

Direito Privado e Direito Público

A distinção entre direito privado e direito público é fundamentada racionalmente, pois Kant define direito sob o ponto de vista racional. As relações de direito privado seriam caracterizadas pela igualdade dos sujeitos, sendo, portanto, relações de coordenação; ao contrário, as relações de direito público seriam caracterizadas pela desigualdade dos sujeitos, sendo, portanto, relações de subordinação. Segundo Kant, a distinção entre direito privado e direito público é semelhante à distinção entre direito natural e direito positivo, respectivamente. O direito privado é próprio do estado de natureza, onde as relações jurídicas estão no âmbito do individual, ou seja, se refere a indivíduos isolados. O direito público é próprio do estado civil, onde há autoridade estatal superior que regula as ações entre indivíduos e Estado.

Sendo o direito civil exclusivamente baseado em princípios a priori e o direito positivo baseado na vontade do legislador. Como vimos, o direito privado é posto, por Kant, fora do direito público. A partir disso, surge a problemática da relação entre direito natural ou privado e coação, pois Kant define direito como coação, ou seja, não há ainda um poder superior, e, portanto, podemos concluir que, no direito natural, não tem juridicidade, isto é, valor jurídico. Bobbio define o direito privado como uma aporia, pois Se com os juristas o consideramos como uma parte do direito estatal, ele não é mais privado; porém, público; se com Kant o identificamos com o direito do estado de natureza, é plenamente distinto do direito público, mas arrisca-se a não ser mais direito. Poderíamos falar de um paradoxo do direito privado, formulando a questão desta maneira: para os juristas positivos, é pouco “privado” , porque todo direito é público; para Kant, e em geral para os jusnaturalistas, é pouco “direito” , porque somente o direito público é direito (BOBBIO, 2000, p. 87).

Kant tenta solucionar essa aporia, conservando assim o caráter privado e, ao mesmo tempo, a juridicidade do direito natural; afirmando que o estado de natureza é um estado jurídico provisório e se distingue, então, do estado civil porque este é o único estado jurídico definitivo. O estado de natureza é provisório, pois não existe coação e o seu objetivo é levar ao estado civil, pois neste o poder coercitivo é organizado. Vejamos, mais claramente, o argumento de Kant a respeito da juridicidade do direito privado e natural.

(...) se no estado de natureza não existissem direitos, não existiria o direito de obrigar aos outros a sair deste estado para construir o estado civil e, portanto este não surgiria. Em outras palavras, para que seja possível constituir o estado civil como estado jurídico é necessário que este estado surja de um direito anterior, que só pode ser o direito natural (BOBBIO, 2000, p. 89). Portanto, o direito natural é somente provisório que antecede e tem como finalidade o estado civil, pois somente este é peremptório e neste há um Estado coercitivo, já que não podemos desvincular direito de coação. O direito natural é o fundamento necessário de toda legislação positiva.

Estado

O Estado está inserido no âmbito do direito público. Kant define direito público como:

Conjunto de leis que necessitam ser promulgadas, em geral a fim de criar uma condição jurídica, que é o direito público. O direito público é, portanto, um sistema de leis para um povo, isto é, uma multidão de seres humanos, ou para uma multidão de povos que, porque se afetam entre si, precisam de uma condição jurídica sob uma vontade que os una, uma constituição (KANT, 2003, p. 153). É necessário que haja uma legislação externa, a fim de evitar que os homens se ataquem mutuamente. Sendo que, para perceber que devido a essa violência entre os homens necessita de um poder coercitivo para detê-la, não é necessário a experiência; pois isto está apontado a priori na ideia racional dessa condição não-jurídica. E que os indivíduos não estão seguros antes do estabelecimento de um Estado legal, porque no estado de natureza cada um detém o próprio direito de fazer o que lhe convém. Para Kant, o Estado deve ser dividido em poder legislativo, poder executivo e poder judiciário. O poder legislativo deve ser formado pela união da vontade do povo, pois quando alguém deseja algo, ele vai desejar, ao mesmo tempo, para si e para o povo; então como ele não é injusto consigo

mesmo, ele não é injusto com os outros indivíduos; portanto, quem pode legislar é somente a vontade geral unida do povo. O poder executivo pertence ao governante do Estado. É ele quem determina os magistrados e as regras segundo as quais o povo pode adquirir algo ou preservar o que já tem em conformidade com a lei. Este governante está sujeito à lei. O governante do Estado não pode julgar; por isso, ele designa os juízes que formam, assim, o poder judiciário. O estado ideal, para Kant, é o Estado republicano2 , ou seja, “esta nova forma de governo que permite a introdução de uma distinção qualitativa e não somente quantitativa entre formas boas e formas más” (BOBBIO, 2000, p. 140). É uma forma boa de governo, contraposta à má, que é o despotismo3 . O que o diferencia de republicanismo é que neste há a separação dos três poderes: executivo, legislativo e judiciário. A forma preferida de Kant é uma república monárquica, ou seja, uma monarquia constitucional. Em suma, será a partir do direito público que o direito privado sairá de sua condição provisória, pois somente no Estado civil que podemos dispor de direitos e deveres. Além disso, será o Estado em seu modo formal de Estado civil, que possibilitará um direito cosmopolita.

Conclusão

A doutrina do direito de Kant é fundamentada numa metafísica dos costumes, ou seja, é um conjunto de princípios racionais a priori que guiam a nossa conduta. Há críticas a Kant que afirmam que sua doutrina promoveu o pensamento autoritário na Alemanha, pois, como vimos, Kant faz uma crítica à democracia. Mas, não podemos deixar de evidenciar que, ao elaborar sua doutrina, Kant pensou na garantia dos direitos essenciais do cidadão e do Estado; e no bem-estar das relações mútuas entre os indivíduos, entre os indivíduos e o Estado, e entre Estado e Estados, pois, para ele, a tarefa jurídica é possibilitar a convivência no âmbito da liberdade externa. Isto é, que a liberdade de um seja compatível com a liberdade de todos, porque a razão prática estabelece que não deva haver guerra nem no estado de natureza, nem no estado civil. E temos que agir como se a paz perpétua fosse algo real e temos que procurar estabelecê-la. Todo tipo de jurisdição deve objetivá-la, tanto o direito privado, como o direito público.

2 República, em Kant é diferente de democracia. Democracia significa governo de todos e republicanismo significa um certo método de exercer o poder, não importando quem o governe, podendo ser poucos ou um só (o monarca). Kant critica a democracia, afirmando que esta é a forma de governo que mais se aproxima do despotismo. 3 Governo de poucos ou de muitos que é instituído arbitrariamente.

Referências Bibliográficas

BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. Tradução de Alfredo Fait. Ed. Mandarim, 2000. KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008. ______. A Doutrina do direito e a doutrina a da virtude. In: A Metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro, 2003.

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