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Os Artigos Preliminares para A Paz Perpétua segundo Kant

OS ARTIGOS PRELIMINARES PARA A PAZ PERPÉTUA SEGUNDO KANT

Jéssica de Farias Mesquita1

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Resumo: A comunicação objetiva investigar os seis artigos preliminares esboçados por Kant para a possível efetivação da paz perpétua entre os Estados e as gentes. Para isto, será necessário o exame do projeto filosófico Para a paz perpétua (1795). Esta obra se estrutura em seis artigos preliminares (1ª seção), três artigos definitivos (2ª seção), dois suplementos e dois apêndices. A intenção de trabalhar apenas os artigos preliminares constitui uma propedêutica para futuros estudos sobre a obra na sua totalidade. Apesar de serem preliminares, os artigos da primeira seção são indispensáveis porque oferecem uma normatividade deontológica que irá perpassar todo projeto kantiano, haja vista serem embasados num não-dever. Palavras-chave: Dever, Estado, Guerra.

Introdução

Antes de Kant, outros pensadores na Modernidade já tinham esboçado projetos para a paz perpétua entre os povos. Dentre eles, vale ressaltar, abade de Saint-Pierre com sua extensa obra, de 719 páginas, sobre o Projeto para tornar perpétua a paz na Europa (1712). Historicamente, também eram comuns os tratados de paz objetivando pôr fim às diversas guerras e conflitos que assolavam a Europa. Segundo Gerhardt, o que motivou Kant a produzir o projeto Para a paz perpétua foi o Tratado de Basileia, assinado em 5 de abril de 1795, entre a Prússia e a França2 . É curioso que Kant tenha continuado a utilizar a categoria direito das gentes mesmo já vigorando, 15 anos antes de seu projeto, o termo direito internacional inaugurado por Jeremias Bentham, em sua obra Uma introdução dos princípios da moral e da legislação (1780). Possivelmente, Kant ainda não havia se apropriado da terminologia benthamiana, ou usou direito das gentes para significar a amplitude do mesmo, já que a categoria direito internacional é restrita às relações interestatais. Ou seja, a hipótese é que enquanto o direito internacional pensa os direitos e deveres dos Estados entre si, o direito das gentes vai mais além, estendendo o direito aos povos

1 Bolsista CAPES 2010.02. E-mail: jmesquita76@yahoo.com.br Mestranda em Filosofia pela PUCRS, bolsista CNPq. 2 Acerca desta afirmação, vide: GERHARDT, Volker. Uma teoria crítica da política sobre o projeto kantiano à paz perpétua. In: ROHDEN, Valério. Kant e a instituição da paz. p. 40.

enquanto entes políticos, algo que será mencionado de modo mais aprofundado no quinto artigo preliminar.

Primeiro artigo preliminar

Não deve considerar-se como válido nenhum tratado de paz que se tenha feito com a reserva secreta de elementos para uma guerra futura. Esse não-dever esboçado por Kant significou uma resposta à vulnerabilidade dos próprios tratados de sua época. De fato, o próprio Tratado de Basileia, de abril de 1795, foi celebrado contendo elementos para uma futura guerra, pois nele a Prússia foi obrigada a ceder parte do seu território aos franceses. Na visão do autor, os tratados de paz em si mesmos são contraditórios não só por conter elementos para futuros conflitos, mas por serem permeados pela provisoriedade. Ou seja, não passam de simples armistícios, de modo que a guerra é protelada, mas nunca eliminada. “[...] pelo tratado de paz se põe fim, sem dúvida, a uma guerra determinada, mas não ao Estado de guerra”3 . Daí a necessidade da federação de Estados livres que estabeleçam uma federação de paz que “[...] procuraria pôr fim a todas as guerras e para sempre”4 .

Segundo artigo preliminar

Nenhum Estado independente poderá ser adquirido por outro mediante herança, troca, compra ou doação. Aqui o autor quer ressalvar o caráter público do Estado, de modo que quaisquer formas de privatização do público são tidas como contraproducente e amoral, no sentido que, como as pessoas, os Estados enquanto entes morais, também não têm preço, mas dignidade. Desse modo, o Estado político não é fruto de negociações como as mercadorias o são, mas são instituídos racional e juridicamente, portanto a partir de condições objetivas. Ou seja, mesmo num reino hereditário que é fundamentado em direitos naturais, não é o monarca que adquire o Estado, mas é o Estado que adquire um governante.

Terceiro artigo preliminar

Os exércitos permanentes (miles perpetuus) devem, com um tempo, desaparecer totalmente. Para Kant, manter os exércitos permanentemente possui implicações moral e econômica pertinentes: moralmente, os homens são atingidos na sua dignidade, haja vista serem tratados como meios (instrumentos de guerra) e nunca como fim em si mesmo; e economicamente, implica elevados custos ao Estado, custos estes que irão recair sobre os cidadãos. Acerca disso, diz Kant:

3 KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. p. 131. 4 Idem. p. 145.

Acrescente-se que pôr-se a soldo para matar ou ser morto parece implicar um uso dos homens como simples máquinas e instrumentos na mão de outrem (do Estado) uso que não pode se harmonizar com o direito da humanidade na sua própria pessoa. 5

Quarto artigo preliminar

Não devem ser contraídas dívidas públicas em vista de uma ação a ser empreendida no exterior. Para Kant, a dívida só poderá ser contraída para fomentar a economia do Estado, salvar o povo das fomes, melhorar infraestrutura, etc. Todavia, quando se trata de investimentos e empréstimos tendo como fim a guerra, não é admissível contrair dívidas, pois no estado de natureza não há direito que regule as relações financeiras. Ou seja, só com a confederação de Estados livres é possível regular juridicamente as relações comerciais. Além disso, as dívidas de guerra sempre recaem sobre o cidadão.

Quinto artigo preliminar

Nenhum Estado deve intrometer-se, através da força, na Constituição e no governo de outro Estado. Para o filósofo de Königsberg, só diplomaticamente é legitimável a intromissão noutro Estado. A constituição, algo conseguido através do contrato originário na transição do estado de natureza para o estado civil, deve ser o primeiro critério a ser respeitado. Mas, juntamente com a constituição, o direito do povo enquanto tal é torna-se supremo na teoria kantiana, no sentido que mesmo num Estado em crise, não é justificada a ingerência de outros Estados, pois isso feriria a independência e soberania das gentes enquanto detentores de dignidade e de direitos políticos constituídos. “Mas enquanto essa luta interna não está ainda decidida, a ingerência de potências estrangeiras seria uma violação do direito de um povo independente que combate a sua enfermidade interna”6 .

Sexto artigo preliminar

Nenhum Estado em guerra com outro deve permitir tais hostilidades que tornem impossível a confiança mútua na paz futura, como, por exemplo, o uso pelo outro Estado de assassinos, envenenadores, a quebra de acordos, a indução à traição, etc. Neste artigo, Kant trabalha de modo explícito o teor moral dentro da paz perpétua, de modo que é visível no seu projeto a interconexão entre

5 Ibidem. p. 132. 6 Ibidem. p. 133.

moral, política e direito. Não só entre os homens, mas também entre os Estados está em jogo o princípio da confiabilidade mútua como condição para a paz. Para a garantia desse princípio, tudo aquilo que se contrapõe à moral deve ser suprimido das relações interestatais, tais como assassinos, traição e envenenadores. Ou seja, mesmo na guerra, o elemento moral não pode desaparecer. Sob esse pressuposto, critica-se a guerra de extermínio que suprime majoritariamente uma das partes, além da guerra punitiva, que em si é contraditória pelo fato de não haver uma relação de superioridade e inferioridade entre os Estados.

Considerações Finais

Como dito anteriormente, os artigos preliminares constituem dimensão imprescindível do projeto kantiano para a paz perpétua. Têm a função de “limpar o terreno” para os artigos definitivos. Concluindo os artigos preliminares, Kant enfatiza que os artigos [1, 5, 6] são leis proibitivas (leges prohibitivae) ou estritas (leges strictae) que devem ser aplicados de forma rígida (streng), pois obrigam imediatamente a um não-fazer sem levar em conta as circunstâncias, e os artigos [2, 3, 4] são leis permissivas ou latas (leges latae), por isso, dependem das circunstâncias podendo até mesmo ser prorrogadas7 . Enfim, vale ressaltar que a proposta do autor não é verificar se a paz perpétua é efetivada ou não, mas, sobretudo, trabalhar as condições necessárias para sua efetivação.

Referências Bibliográficas

KANT, Immanuel. A paz perpétua: um projeto filosófico. In: A paz perpétua e outros opúsculos. Trad. de Artur Morão. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2009. ROHDEN, Valério (org.). Kant e a instituição da paz. Porto Alegre: Editora da UFRGS, Goethe-Institut, 1997.

7 Ibidem. p. 135.

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