12 minute read
O Lugar da Psicologia no Espírito Subjetivo
O LUGAR DA PSICOLOGIA NO ESPÍRITO SUBJETIVO
Maria Ivonilda da Silva Martins1
Advertisement
1. Introdução
A terceira e última seção do Espírito Subjetivo, que corresponde à primeira parte da obra Enciclopédia das Ciências Filosóficas – O espírito, constitui o que Hegel considera a Psicologia, que é o momento em que o espírito deixou para trás como suprassumidos dois momentos: 1) o primeiro, que pode ser entendido como imediato ou alma e que coloca-se como objeto da Antropologia; e 2) o segundo, o mediatizado, que estabelece uma reflexão sobre si e sobre o Outro, isto é, enquanto consciência e coloca-se, portanto, como objeto da Fenomenologia do Espírito. Na Psicologia, encontramos o espírito e a relação com suas próprias produções, isto porque interessa à Psicologia o desenvolvimento do espírito enquanto determinando-se a si mesmo.
2. A Psicologia em Hegel
O espírito, na Psicologia, corresponde ao saber da verdade da alma, tratada na Antropologia, e da consciência, objeto da Fenomenologia – ou seja, daquela totalidade imediata, não específica, simplesmente posta, e, deste saber que agora não se deixa limitar pelo conteúdo, pois porta-se agora como consciência, saber da totalidade substancial, nem subjetiva nem objetiva. Entretanto, o saber dessa verdade é ainda abstrato, pois a identidade entre subjetivo e objetivo é ainda formal – ou seja, essa certeza não sofreu ainda uma verificação, de modo que essa identidade ainda não foi posta como efetiva, uma vez que ela não é ainda uma totalidade diferenciada em si como determinada. Para que isso aconteça, há que sempre ter em mente o seguinte raciocínio: para Hegel, o espírito necessita se submeter ao processo de autoefetivação do seu conceito, porque a sua verdade não corresponde à imediatez, pois, enquanto imediato, o espírito ainda não atingiu a verdade de que aquilo que está presente nele de forma imediata é algo posto por ele, isto é, produção dele. Como Hegel coloca no § 379 da Enciclopédia: “só pelo conhecimento dessa sua natureza [é que] a ciência do espírito é igualmente verdadeira, viva, orgânica” (HEGEL, 1995, p. 13).
1 Bolsista CAPES 2011.01. E-mail: maria_ivonilda@yahoo.com Mestranda em Filosofia pela UFC.
No âmbito da Psicologia, temos, portanto, o desenvolvimento do espírito a partir da ideia de apropriar-se do racional, isto é, de ter o racional como conteúdo e meta, porém esta atividade não é nada mais que a transição para o manifestar do espírito como tal, ou seja, o retorno que ele realiza a si mesmo. Ainda não se atingiu, contudo, a meta do espírito, que é: produzir ou possibilitar a implementação objetiva da racionalidade, assim como a liberdade de seu saber. O que está em jogo, na Psicologia, é apropriação da consciência fenomenológica com o intuito de pô-la como unidade concreta, objetiva, de modo que o espírito saiba dela – uma vez que a consciência fenomenológica estabeleceu apenas em si a identidade do “eu” com o “outro” , mas não para si. Da mesma forma, se portava o conteúdo da consciência fenomenológica: que tinha como objeto o grau precedente, a alma. Ou seja, nos estágios de desenvolvimento do espírito há sempre referência aos graus anteriores. A referência a estágios de desenvolvimento do espírito é contínua, como é explicitado na introdução à Psicologia: “o conteúdo que é elevado à intuição, são suas sensações, assim como são suas intuições que são mudadas em representações e assim por diante: representações mudadas em pensamento, etc.” (Idem, p. 211). A Psicologia tem, portanto, a consciência como seu objeto; sendo a consciência apenas em si a identidade do Eu com o seu outro, há, nesse estágio de desenvolvimento do espírito, o fato de o espírito tentar pôr para si essa unidade concreta, de modo que ele saiba dela.
3. Os caminhos do espírito subjetivo
Como já foi afirmado, na Psicologia, são discutidas as produções do espírito no momento em que ele se detém a estabelecer a unidade do subjetivo e objetivo. Quer dizer, o conteúdo tem agora a significação de ser em si tanto objetivo como subjetivo, isto é, é constituído pela unidade e verdade da alma e da consciência. Mas essa certeza não chegou ainda à verificação, o que confere a essa unidade um caráter formal. Todo o esforço do espírito subjetivo tem como motor este motivo: que é experenciar as suas próprias formas de finitude, a fim de superá-las para que, só assim, suas produções deixem de ser “ideais” e passem a ser tomadas como efetivas, objetivas. Considerando o fato de que, na Psicologia, a atividade do espírito se pauta tanto a partir do conteúdo essente em si, como a partir da sua liberdade (quando o espírito coloca a identidade outrora referida como sua), surgem três caminhos principais de desenvolvimento do espírito. O primeiro é o caminho teórico, no qual o espírito necessita lidar com o racional como uma determinação imediata e trabalhá-la com o intuito de colocá-la como sua, ou tornar subjetiva essa determinidade. O segundo é o caminho prático (vontade), no qual o conteúdo está apenas como “seu conteúdo” , isto é, o que
prevalece não é mais o objeto aparentemente autônomo, como no caminho teórico, mas os fins e interesses do sujeito. Por último, o espírito se torna objetivo para si mesmo enquanto livre, o que, de certa forma, representa a superação das duas posturas anteriores.
3.1. O caminho teórico
O caminho teórico subdivide-se em três graus: 1) o grau da intuição (constituído pela sensação, atenção e intuição mesma); 2º) o grau da representação (que abrange a interiorização, a imaginação e a memória); e 3º) o grau do pensar (que tem por conteúdo o entendimento, o juízo e a razão). Tentarei caracterizar brevemente os três graus aludidos. No primeiro grau, temos a intuição, onde Hegel toca na discussão, que é comum, de que no sentimento há mais que no pensamento. Para o autor, é justamente o contrário: o sentimento é a forma mais imediata e, portanto, menos rica de determinações, através da qual o sujeito se relaciona para com um conteúdo dado, pois nessa relação ele não está como ser livre, seu conteúdo está como algo contingente, subjetivo, particular. Apesar disso, não podemos ignorar o fato de que na sensação está presente todo o material do espírito e, a partir desse pressuposto, o autor se decide a discutir tanto a atenção como a intuição, que se apresentam como tentativas que o sujeito realiza com o intuito de apreender este conteúdo como seu. Na representação, o processo é semelhante, porém como é esclarecido no adendo ao § 4492 , no grau da intuição, o que prevalece é a objetividade do conteúdo; enquanto na representação, o sujeito reflete sobre a sua condição: isto é, ele se assume como aquele que tem a intuição e, por isso, a representação é caracterizada pela interiorização, imaginação e memória. As representações consistem em um meio-termo entre uma inteligência que já é posta como determinada, ou seja, a intuição, e a inteligência em sua liberdade, o pensar. Num primeiro momento, o sujeito realiza a rememoração, que consiste em um invocar involuntário de um conteúdo que já é seu – nesse estágio, a inteligência começa a se ativar em representações. Na esfera da imaginação, há a oposição entre o conteúdo representado e conteúdo intuído do objeto. Nesse instante, a imaginação opera para si um conteúdo próprio –formando, assim, um signo. Na memória, o signo que foi produzido pela imaginação é rememorado. O sujeito, nesse momento, enquanto subjetividade é, ao mesmo tempo, a potência que atua sobre os diversos nomes, é a ponte que se fixa em si mesma e mantém a ordem fixa dos nomes, porém, essa inteligência ainda é uma síntese, ainda é totalmente dependente do material sensível. De modo que o nome precisa de um Outro, da significação realizada
2 HEGEL, op. cit., p. 232.
por uma inteligência representativa, para ser a Coisa, a objetividade verdadeira. Surge, nesse momento, a transição ao livre pensar enquanto tal. O pensar, que tem por conteúdo o entendimento, o juízo e a razão, é determinado pelo fato de que ele é o universal e o seu produto, o pensamento, é a coisa, a identidade simples do subjetivo e do objetivo. Ele sabe que o que pensa é que o é e sabe também que o que existe só existe enquanto pode ser pensado – os pensamentos passam então a ser, além de conteúdo, objeto da consciência. Como é evidenciado no adendo ao § 467, a unidade entre subjetivo e objetivo é posta novamente, com a diferença de que enquanto do ponto de vista da representação, a unidade do subjetivo e do objetivo, produzida em parte pela imaginação, e em parte pela memória mecânica (...), [essa unidade] permanece ainda algo subjetivo; ao contrário, no pensar ela recebe a forma de uma unidade tão objetiva quanto subjetiva, já que o pensamento sabe a si mesmo como a natureza da Coisa (Ibidem, p. 259). O que está em jogo é, portanto, o conhecimento que se constitui a partir de um pensar concreto, isto é, se trata de um conhecimento conceituante e não-abstrato, não-formal. Contudo, no começo, o conhecimento pensante é também formal, porque a certeza da unidade não é completamente verificada, porém, como é demonstrado nesses momentos, a determinidade do conteúdo racional já está no conhecimento pensante, apesar de estar apenas como unidade em si – entretanto, por este motivo, o formalismo faz com que o conhecimento incorra em uma contradição, de tal forma que ele seja suprassumido pelo próprio pensar.
3.2 O caminho prático
A inteligência passa, então, a deixar de lado a ideia de tomar o objeto enquanto simplesmente autônomo e começa a considerá-lo a partir de seus fins e interesses próprios. Temos, portanto, como bem afirma Hegel, a inteligência, que “sabendo-se como determinante do conteúdo – que tanto é seu, quanto ele é determinado como essente –, é [a] vontade. ” (Ibidem, p. 262).
Segundo Hegel, o espírito prático constitui “o lado da existência ou realidade da ideia do espírito; enquanto vontade, entra o espírito na efetividade; enquanto saber, está no solo da universalidade do conceito” (Ibidem, p. 263). Entretanto, este espírito ainda não é livre, falta ainda ao espírito prático dar o conceito de liberdade que apenas como vontade que pensa a si mesma pode ter. Isto é, falta ainda ao espírito subjetivo a reflexão sobre o conceito de liberdade, que só é essencialmente quando passa pelo exame da razão.
Como Hegel deixa bem claro no § 469: A verdadeira liberdade, enquanto eticidade, é não ter a vontade como seu fim, [um] conteúdo subjetivo, isto é, egoísta, e sim [um] conteúdo universal. Mas tal conteúdo só é no pensar e pelo pensar: é nada menos que absurdo querer excluir o pensar da eticidade, da religiosidade, da juridicidade, etc. (Ibidem, p. 263). A estruturação do espírito prático se dá de três formas: enquanto sentimento prático, enquanto tendência e arbítrio e enquanto felicidade. Nesses três momentos, a vontade do espírito se articula com o intuito de que a inteligência se coloque como agente livre e determinante de conteúdos concretos, objetivos. No sentimento prático, coloca-se como uma subjetividade idêntica à razão, isto porque o seu conteúdo é o conteúdo da razão, porém como imediatamente singular e, portanto, como natural, contingente e subjetivo, que se determina tanto a partir da particularidade da necessidade da opinião, e da subjetividade que se como põe como universal, como pode ser, em si (mas não ainda para si), adequada à razão. Nesse momento, Hegel discute a respeito da oposição sentimento versus entendimento. Segundo o autor, antes de pensar uma associação entre sentimento e entendimento, temos que considerar que os sentimentos podem ser, assim como o entendimento, unilaterais, inessenciais, maus, isto se deve ao fato de que o “racional, como é pensado na figura da racionalidade, tem o mesmo conteúdo que tem o sentimento prático bom, mas em sua universalidade e necessidade, em sua objetividade e verdade” (Ibidem, p. 266). Da mesma forma que é inadequado atribuir à passagem do sentimento ao direito e ao dever um caráter negativo, é também inadequado tomar a inteligência por inútil ou até mesmo nociva ao sentimento, ao coração e à vontade. Para Hegel, o sentimento é verdadeiro devido ao seu próprio conteúdo, que, por sua vez, só é verdadeiro na medida em que é universal – e isto só é possibilitado pelo pensamento. A discussão acerca do sentimento prático gira em torno, basicamente, da sua autodeterminação frente às singularidades existentes no mundo. Por um lado, sentimentos como prazer, alegria, dor etc. são apenas modificações do sentimento prático formal; porém, por outro lado, possuem diversos conteúdos que lhes determinam. Falta, portanto, objetividade nos dois lados dessa imediatez, pois, se o sentimento prático se sente de um lado como autodeterminar-se objetivamente válido, como algo determinado em-si-epara-si, de outro lado, ele se sente como condicionado às suas afecções, que lhes parecem como estranhas. A tendência, para o autor, significa um modo de atuação da inteligência querente, ela tem por conteúdo as mesmas determinações que os sentimentos práticos, assim como tem a natureza racional do espírito como base, por outro
lado, é também afetada pelo contingente. O arbítrio é a vontade que escolhe entre suas inclinações e ele representa um estágio superior à tendência, uma vez que assumiu para si a responsabilidade sobre as singularidades e efetividades determinadas do mundo. A felicidade é uma representação de uma satisfação universal, onde as tendências, enquanto singulares, são postas como negativas e são sacrificadas. Nesse momento, há a transição para o espírito livre, pois a felicidade impõe-se para si mesma a necessidade de produzir um conteúdo afirmativo em suas decisões – e não simplesmente limitá-las.
3.3 O espírito livre
O espírito livre, último estágio do espírito subjetivo, representa a unidade do espírito teórico e do espírito prático, é a vontade livre que vê a si mesma como vontade livre. Embora se saiba como vontade livre, a ideia de liberdade é ainda formal, pois ela existe apenas para a vontade. O espírito objetivo surge, então, para possibilitar a efetivação da ideia de liberdade, já que esta depende da atividade da vontade.
4. Conclusão
Como podemos observar, a Psicologia ocupa um lugar estratégico nas considerações hegelianas acerca do espírito, pois, enquanto última seção do espírito subjetivo, representa a transição ao espírito que atua no mundo concreto, isto é, o espírito objetivo. Como foi referido anteriormente, na Psicologia, o espírito está lidando com suas próprias determinações e, no âmbito do espírito subjetivo, ela representa justamente o grau mais elevado desse saber de um espírito que está determinando-se a si mesmo. Entretanto, falta-lhe ainda a dimensão prática para conferir validade a sua liberdade: isto é, falta ainda ao sujeito colocar-se como aquele que possui a vontade como seu objeto e meta. Apenas no espírito objetivo, é que o sujeito será capaz de desenvolver a ideia da liberdade, pois supera o caráter formal e contingente de suas determinações subjetivas e passa a realizar o conceito de liberdade no lado exteriormente objetivo, através da sua atuação no mundo – de modo que o mundo seja determinado a partir da sua vontade.
Referências Bibliográficas
HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas – O espírito. Trad. de Paulo Meneses. São Paulo: Loyola, 1995.