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O Estado Hegeliano enquanto Crítica ao Contratualismo Jusnaturalista

O ESTADO HEGELIANO ENQUANTO CRÍTICA AO CONTRATUALISMO JUSNATURALISTA

Raimundo Rodrigues de Oliveira Júnior1

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Delimitação

O objetivo deste texto é apresentar de forma singela e resumida duas críticas feitas por Hegel à teoria jusnaturalista do contrato social como origem do Estado político. Quando se pesquisa a obra de qualquer pensador, em qualquer época, há um referencial importante que não é permitido ignorar, o contexto histórico-social, em que está inserido aquele que pensa e interage juntamente com outros no mundo. Ora, nós não entramos em um mundo que está partindo do zero, pelo contrário, quando adentramos o jogo há muito tempo que tem começado, e somos forçados a interiorizar as regras desse jogo. No que diz respeito à especulação filosófica, para se usar uma expressão propriamente hegeliana, cada um é marcado pelo espírito de seu tempo. Sendo coerente com sua maneira de pensar, apesar de ser profundo conhecedor da tradição filosófica ao ponto de recuperar em sua filosofia elementos fundamentais da tradição, Hegel explicou-se filosoficamente a partir do ideário contemporâneo. Para se fazer uma crítica com sentido a uma teoria filosófica do Estado ou a um Estado histórico empiricamente existente, é preciso que se tenha um conceito de Estado pensado, ou seja, uma espécie de ideia reguladora que sirva de referência à crítica. Não é sensato emitir um juízo valorativo sobre o que é sem ter uma ideia do que deve ser. O Estado Ideal que Hegel toma como modelo para sua crítica trata-se da Ideia do Estado enquanto conceito, que é anterior aos Estados empíricos, no sentido lógico e não cronológico. No entanto, é preciso chamar a atenção para o fato de que esse Estado não é um produto artificial, uma mera criação da inteligência, mas que para Hegel se encontra no mundo. Por outras palavras: a ideia do Estado existe apesar das deficiências históricas. Ele é uma idealidade que se concretiza historicamente, embora a realização empírica nunca seja a plena realização do conceito pensado. Com relação ao Jusnaturalismo, Hegel critica as categorias fundamentais dessa corrente, mas prossegue com esforço no sentido da compreensão e justificação racional do Estado. A ideia do direito natural

1 Bolsista CAPES 2009.01. E-mail: amissadai.junior@hotmail.com Mestrado em Filosofia Universidade Federal do Ceará.

remonta à época clássica, subsistindo na Idade Média e com o termo “jusnaturalismo” chegou à Modernidade de forma reavivada e desenvolvida. Hobbes, Locke e Rousseau são os três grandes vultos por cuja obra se mede hoje a importância dessa perspectiva filosófica, que se contrapondo ao “direito natural” medieval e antigo, através de suas obras, trataram do direito público, o problema do fundamento e da natureza do Estado. Segundo Bobbio2 ,

não há modo melhor para compreender as linhas essenciais de um movimento de pensamento que considerá-lo do ponto de vista das teses alheias que ele negou e do ponto de vista das próprias teses que foram negadas pelos outros. Diante de tais horizontes, ele conclui que emerge um princípio que não residia nesse ou naquele conteúdo, mas consistia em se aproximar de forma geral da ética e da filosofia prática. Este princípio é o método. O método que une autores diversos é o método racional, ou seja, aquele método que deve permitir a redução do direito e da moral, bem como da política, pela primeira vez na história da reflexão sobre a conduta humana, a uma ciência demonstrativa. O princípio metodológico se apresenta como característica marcante de um movimento filosófico, isto é, o modo de abordar o seu conteúdo. Em sua obra Sobre as maneiras científicas de tratar o direito natural, Hegel distingue entre empiristas como Hobbes, que partem de uma análise psicológica da natureza humana, e os formalistas, como Kant e Fichte, que deduzem o direito de uma ideia transcendental de homem. Toda essa efervescência na construção de uma ética racional3 separada definitivamente da teologia, fundada finalmente numa análise e numa crítica racional dos fundamentos, para garantir bem mais que a teologia envolvida em contrastes de opiniões insolúveis – a universalidade dos princípios da conduta humana era o alvo dos pensadores moderno. Historicamente o direito natural é uma tentativa de dar uma resposta tranquilizadora às consequências corrosivas que os libertinos tinham retirado da crise do universalismo religioso. Uma onda de pirronismo moral que constrangeu muitos autores a tomarem posição diante de tal conjuntura, semelhante ao que hoje se chama de relativismo ético, assevera Bobbio4 . Se há um fio vermelho que mantém unidos os jusnaturalistas e permite captar

2 BOBBIO, Norberto, BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense. 1996. p. 15. 3 Com exceção de Hobbes que vai concentrar toda sua teoria política numa teoria do poder, uma consideração não ética do poder. 4 BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna. Op. cit. p. 17.

certa unidade em autores diferentes sob muitos aspectos, é precisamente a ideia de que é possível uma “verdadeira” ciência moral, entendendo-se por ciência verdadeira as que haviam começado aplicar com sucesso o método matemático. Considerado como pai do jusnaturalismo moderno, Hobbes é a grande referência que vai articular seu pensamento de forma científica, sistemática. Ele chamou de física social o modelo que tinha dado certo nas ciências da natureza, passando agora para a esfera do humano. Convencido de que a desordem da vida social culminando na guerra civil dependia das doutrinas errôneas, de que tinham sido autores os escritores antigos e modernos sobre questões políticas, bem como do espírito de seitas alimentados por maus teólogos, e comparando a concórdia que reinava no campo das disciplinas matemáticas com o reino da discórdia sem trégua em que se agitava a opinião dos teólogos, dos juristas e dos escritores políticos, Hobbes afirma que os piores malefícios de que sofre a humanidade seriam eliminados “se se conhecesse com igual certeza as regras das ações humanas, tal como se conhece aquelas das grandezas das figuras” (Hobbes apud Bobbio, p. 20). Segundo ele, devido à falta de um método rigoroso no âmbito das ações humanas ela tem sido maltratada, carecendo, portanto, de uma renovação dos estudos sobre o comportamento humano que só poderia ser possível através de uma renovação do método. Na esfera da moralidade, dominou por longo tempo a opinião de Aristóteles, que afirmava que no conhecimento do justo e do injusto não é possível atingir uma certeza a que chega o raciocínio matemático, e que é preciso nos contentar apenas com um conhecimento provável. “Seria inconveniente exigir demonstrações de um orador quanto contentar-se com a probabilidade nos raciocínios de um matemático” (Aristóteles apud Bobbio, 1996, p. 20). Agora, a tarefa do jurista no direito natural não é mais a interpretação e sim a demonstração. Se a interpretação foi a prática tradicional da jurisprudência, o método da nova ciência do direito será a imitação das ciências mais evoluídas – a demonstração. Descobrir as regras universais da conduta, através do estudo da natureza do homem, não diversamente do que faz o cientista da natureza. O que os jusnaturalistas eliminaram do seu horizonte foi a interpretação, mesmo que os juristas continuem a comentar as leis, o jusnaturalista não é um intérprete, mas um descobridor. Assim, o jusnaturalismo foi a primeira e última tentativa de romper o nexo entre o estudo do direito e a retórica como teoria da argumentação, abrindo tal estudo para as regras da demonstração. Para os jusnaturalistas contratualistas, o Estado é uma criação artificial. Uma das causas do seu aparecimento é que a vida social, a partir de certo nível de desenvolvimento, se torna impossível sem o recurso a uma autoridade centralizada. Dado que as pessoas são iguais em direitos, ninguém

está autorizado a exercer o poder sobre os outros a menos que essa autoridade lhe tenha sido conferida voluntariamente por todos. Isto supõe que o Estado seja criado através de um contrato social. Embora a teoria do contrato social seja antiga e amplamente utilizada pelos legisladores da Idade Média, somente com os jusnaturalistas ela se torna uma passagem obrigatória da teoria política, tanto que será comum a todos os críticos do direito natural. Na obra Direito, sociedade civil e Estado, Norberto Bobbio estabelece e caracteriza pontos coincidentes e semelhanças entre esses diversos autores, no entanto o objetivo aqui é apenas apresentar os aspectos da crítica de Hegel à teoria do contrato social tendo como principal representante Tomas Hobbes.

1. Primeira crítica: Hegel assegura que o método da filosofia política contratualista é inadequado

Como entender a crítica de Hegel aos contratualistas? À luz dos conceitos e noções basilares do seu sistema. O primeiro passo que Hegel dá em sua crítica é argumentar que o método de tal filosofia política é inadequado. A esta inadequação constatada por Hegel está pressuposto que existe um método próprio e adequado para se pensar a filosofia política e ele o concebeu, que é o método especulativo. Ele condena a filosofia política hobbesiana como uma abstração produzida por uma metafísica do entendimento e que é incapaz de alcançar o domínio da realidade, porque o seu método é dedutivo. A matemática, por exemplo, é um tipo de conhecimento abstrato e formal, portanto um conhecimento do entendimento, âmbito que, para ele, as realidades permanecem separadas, em oposição. As características inerentes ao objeto dessa ciência (a grandeza, as qualidades espaciais, a quantidade, etc.) são momentos abstratos do ser e as quais o ser não pode ser reduzido ou substanciado. O caráter abstrato da demonstração matemática advém da natureza do seu objeto, e é conveniente a seus objetivos abstratos, pois nele não é imanente nenhuma finalidade5 . Neste sentido, toda filosofia que se pautar pelo método dedutivo não cumpre propriamente os seus propósitos, pois não atinge um conhecimento universal do ser, isto é, não atinge a consciência da forma e do movimento interior ao seu conteúdo, reservando-se a um conhecimento abstrato e parcial produzido pela esfera do entendimento. Esse conhecimento não apreende as determinações imanentes ao ser e ao seu processo de efetivação ou sua efetividade. O processo de abstração é uma forma de conhecimento do entendimento e, portanto, pode pegar separadamente conteúdo e forma, subjetivo e objetivo, o conceito e a matéria, porque eles estão unidos na consciência. Ele é um momento que antecede ao saber da razão e também de

5 BERNARDES, J. A crítica de Hegel à teoria do contrato. In: Estado e política: a filosofia política de Hegel. D. L. Rosenfield (Ed.). Rio de Janeiro: Jorge. Zahar, 2003. p. 70.

distanciamento de qualquer conteúdo concreto. E de que maneira isso se dá ao entendimento? Afigura-se como uma forma de subtração àquilo que é imediatamente dado na sensibilidade, o dado sensível, que é o momento de uma primeira negação, a saber: a negação da imediatidade sensível6 . Para se fazer uma crítica com sentido a uma teoria filosófica do Estado ou a um Estado histórico empiricamente existente, é preciso que se tenha um conceito de Estado pensado, ou seja, uma espécie de ideia reguladora que sirva de referência à crítica. Não é sensato emitir um juízo valorativo sobre o que é sem ter uma ideia do que deve ser. O Estado Ideal que Hegel toma como modelo para sua crítica trata-se da Ideia do Estado enquanto conceito, que é anterior aos Estados empíricos no sentido lógico e não cronológico. No entanto, é preciso chamar a atenção para o fato de que esse Estado não é um produto artificial, uma mera criação da inteligência, mas que para Hegel se encontra no mundo. Por outras palavras: a ideia do Estado existe apesar das deficiências históricas. Ele é uma idealidade que se concretiza historicamente, embora a realização empírica nunca seja a plena realização do conceito pensado. A Filosofia do Direito de Hegel pretende conceber e expor, enquanto ciência do Estado – o Estado como algo em si mesmo racional e não um Estado na perspectiva de como ele deve ser 7 . Hegel pretende ensinar como conhecer o Estado como um domínio ético estabelecido ou historicamente efetivado. Ou seja, ensinar a conhecer o fato político e a racionalidade nele imanente, as determinações do seu vir-a-ser. O fato político possui uma lógica que lhe é imanente8 . Ora, mesmo o jusnaturalismo expressa o espírito de seu tempo, portando, em si mesmo, a perspectiva do absoluto, embora esteja contingencialmente cego para percebê-lo. É baseado justamente no que Hegel considera fato político, o seu estatuto lógico-ontológico é que se pode compreender a sua crítica às teorias contratualistas. A determinação primeira do fato político é a história e que tem sua expressão na forma de uma comunidade sociopolítica. Como compreender essa lógica? Depende da capacidade de apreensão das determinações que levaram a essa configuração sociopolítica. A apreensão das categorias lógicas envolvidas nesse processo. Por exemplo, as figuras aristotélicas da família, aldeia e polis são expostas em um ordenamento lógico e temporal que sugere um processo em que a unidade é vista em cada um desses momentos. O que caracteriza tal modelo é o esquema reconstrutivo gradualista que a sociedade humana passa das sociedades privadas para as sociedades públicas, por um

6 Idem. 7 HEGEL, G. W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciência do Estado em Compêndio. Tradução de Marcos Lutz Müller. Departamento de filosofia – UEC-SP. 8 Id., § 75.

processo de evolução natural. O modelo tradicional apresenta uma reconstrução histórica.

2. Segunda crítica: que a teoria do contrato se funda na expressão subjetiva da vontade particular dos indivíduos

Na verdade, a crítica forte de Hegel à teoria do contrato como gênese da vida política reside na subsunção desta à expressão subjetiva da vontade particular dos indivíduos pressuposta e manifesta no momento próprio deste ato. O contrato é uma figura do direito privado que possui já em si a ideia de que os indivíduos como contratantes manifestam um movimento de mútuo reconhecimento, pois a satisfação de suas necessidades requer que cada um dos agentes necessariamente reconheça mutuamente o direito e a liberdade do arbítrio. Neste sentido, o contrato é um processo que se estabelece necessariamente a consideração da vontade particular e do direito privado. Para Hegel, o contrato é, por excelência, o expediente pelo qual os homens se relacionam no interior da sociedade civil9 . Este é o lugar da realização da vontade particular nas suas mais diversas afigurações: o trabalho e o comércio, por exemplo. Portanto, nesse sentido, o contrato social, que se apoia nessa vontade limitada pelo interesse particular, não pode superar essa particularidade que lhe é absolutamente inerente e constituir por um acordo a totalidade social encarnada pelo Estado. O Estado seria, então, uma mera junção de vontades particulares, ou seja, de indivíduos, como se fosse corporações. Por conseguinte, essa tentativa é uma forma de abstração que encontra a sua racionalidade somente na esfera do entendimento que a concebeu segundo seus princípios e aquém das figuras da história e da razão.

3. O Estado

O Estado, para Hegel, surge dialeticamente visto que a dialética é a alma do conteúdo, o Estado não se esgota em seu fim nem o resultado é o todo real, porém ele é em união com o devir. Pela dialética, as particularidades retornam ao conceito de universalidade. O Estado é uma realidade concreta, ao concebê-lo como aparece em seu sistema, Hegel inspira-se no mundo grego. Na República de Platão, por exemplo, não havia a propriedade privada e nem a liberdade individual. Mas, Hegel defronta-se com o individualismo do mundo moderno, por isso o ideal em sua juventude era a fusão dos dois mundos. Porém, é na Filosofia do Direito que o Estado aparece como o “verdadeiro fundamento” da “substancialidade ética” . O Estado é o que existe, é vida real e ética, é a unidade do querer universal e querer subjetivo. É uma realidade histórica que ultrapassa infinitamente o

9 Ibidem, §§ 72-81.

indivíduo, mas que lhe permite encontrar-se a si mesmo sob uma forma objetiva. Em suma, o Estado é o infinito e o racional em si e por si; é a vontade universal em que as vontades individuais se condensam. Hegel, com base nessa concepção de Estado, rejeita a teoria que o vê como originário de um contrato. O Estado contém o ethos e a racionalidade real e sob seu domínio estão todas as manifestações da vida social e organização pública.

Referências Bibliográficas

BERNARDES, J. A crítica de Hegel à teoria do contrato. In: Estado e política: a filosofia política de Hegel. D. L. Rosenfield (Ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1996. HEGEL, G. W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciência do Estado em Compêndio. Tradução de Marcos Lutz Müller. Departamento de filosofia – UEC-SP.

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