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A Questão da Liberdade e de uma Possível Ordem Mundial em Hegel

A QUESTÃO DA LIBERDADE E DE UMA POSSÍVEL ORDEM MUNDIAL EM HEGEL

Pedro Henrique Gomes Muniz1

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1. Introdução

O propósito deste trabalho é comentar brevemente a ideia de Liberdade e Estado para Hegel, como apresentada em seu célebre livro Princípios da Filosofia do Direito2 . Com tal objetivo, primeiro será feita uma breve discussão dos princípios da filosofia de Hegel em geral, tentando entender qual era a opinião do filósofo com relação à tarefa da filosofia e a posição que esta deveria ter com relação ao real. Trataremos, então, da concepção contratualista da liberdade e da crítica que Hegel faz a esta, explorando o que ele entendia como constituindo o Estado. Tendo discutido esses pontos, nosso objetivo é questionar então como se daria, de acordo com as linhas gerais de sua filosofia, e também de acordo com as suas ideias no que concerne o direito internacional, a possibilidade de uma Ordem Mundial para Hegel. Devido à questão de espaço, muitos desses pontos não serão abordados detalhadamente. Espera-se, no entanto, que este curto ensaio aponte para o início de uma possível pesquisa mais profunda a ser desenvolvida sobre a explicação de como na realidade aconteceria uma Ordem Mundial dentro dos parâmetros da filosofia hegeliana. Vale a pena ressaltar que esta não seja uma tarefa muito fácil (em vista das opiniões que Hegel chegou a expressar em relação às relações internacionais – as quais estariam fadadas a sempre envolver algum grau de conflito). De qualquer forma, tal explicação do funcionamento de uma Ordem Mundial em acordo com a filosofia de Hegel deveria, em última instância, levar em conta não apenas o que o filósofo nos deixou em sua Filosofia do Direito, mas as ideias relevantes de sua Filosofia da História. As devidas correções e ajustes deveriam ser feitas, é claro, bem como o trabalho de alinhar as ideias relevantes com aquelas de outros pensadores.

2. Filosofia e Liberdade na Filosofia Hegeliana

Hegel nasceu em 1770, em Stuttgart, e estudou em um seminário próximo a Tübingen com algumas figuras que, mais tarde, se tornariam centrais no cenário intelectual da Alemanha da primeira metade do século

1 Bolsista CAPES 2010.01. E-mail: phgmuniz@gmail.com Bacharel em filosofia pela UFC e mestrando, com especialização em filosofia da linguagem, pela PUCRJ. 2 HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2003.

dezenove: o poeta Friedrich Hölderlin (1770-1843) e o também renomado filósofo Friedrich von Schelling (1775-1854). Naturalmente, essas amizades influenciaram muito o pensamento hegeliano. Hegel e Schelling estudaram na universidade de Jena, que na época era um importante centro de estudos da filosofia de Kant (1724-1804). E o pensamento de Schelling foi sempre eclipsado pela filosofia hegeliana, que fez muito sucesso na época. A amizade entre os dois filósofos terminou de forma abrupta depois que Schelling criticou duramente o primeiro grande trabalho de Hegel: a Fenomenologia do Espírito (publicada em 1807). Após a morte de Hegel, Schelling foi apontado pelo próprio governo na época para substituí-lo na universidade de Berlin, onde Hegel trabalhou nos seus últimos anos. Schelling teria o trabalho de diminuir a grande influência que a filosofia hegeliana teve principalmente na juventude daqueles anos. Para Hegel, apenas o todo é verdadeiro. Todo momento, fase ou estágio até a totalidade é, obviamente, apenas parcial, e por isso parcialmente nãoverdadeiro, ou, poder-se-ia dizer, não-verdadeiro de fato, se entendemos que a verdade não admite meio termo. A totalidade é o produto de um processo de incessante superação desses momentos, mas que preserva a verdade desses momentos como elementos de uma estrutura, não como meros estágios. Em contraste com Kant, Hegel argumenta a favor de uma teoria do conhecimento marcada pela ideia de que a realidade é completamente racional. Toda etapa de conhecimento é conhecimento do mundo, ontológico, não há, portanto, um abismo entre teoria e realidade. De fato, a preocupação do ponto de vista teórico dos idealistas alemães consistia principalmente em vencer esse abismo e os dualismos insuperáveis que a filosofia de Kant tinha criado. Superar, então, a contraposição entre pensamento, por um lado, e realidade/ser, por outro, torna-se um dos desafios da filosofia naquela época. A ideia e meta era recuperar o caráter ontológico da filosofia, que tinha se perdido com a “reviravolta epistemológica” feita por Kant. De acordo com Hegel, entendemos a realidade através de categorias, que de fato a constituem. Quer dizer, as categorias aqui não são estruturas, tratamos sim do real. As categorias propostas por Hegel são ontológicas. E, naturalmente, elas estão ordenadas, de forma que quanto mais uma categoria diz do mundo, mas próxima ao final do processo ela está. Para Hegel quanto mais se cresce semanticamente, mais também se cresce ontologicamente. Tais categorias se põem em contradição numa progressão sistemática. São elas: 1. Ser (aqui não há ligação entre os conteúdos do nosso conhecimento. Ele é, por isso, ainda muitíssimo pobre); 2. Essência (nesta categoria aparecem algumas, as primeiras, relações ou implicações necessárias. Para dar um exemplo simples: se dizemos “Pai” , necessariamente se segue “Filho”); e 3. Conceito. Usando tais categorias seria possível, a rigor, entender qualquer coisa em totalidade. O Estado, a Religião, a Natureza, e assim por diante.

Como poderemos ver, Razão, Liberdade e História são conceitos que estão intimamente relacionados dentro do pensamento de Hegel. O filósofo acreditava que o desenvolvimento histórico de certa forma coincidia com a libertação do homem. Essa libertação pode ser caracterizada tanto em termos de progresso científico (como um meio para obter um melhor controle sobre a natureza), quanto em termos de uma libertação social e política que garante a liberdade para uma quantidade cada vez maior de pessoas. Nesta acepção, a ciência simboliza a libertação do homem da natureza, o que parece ser um traço bastante característico da forma de pensamento do tempo de Hegel. Ao mesmo tempo, a democracia representa o símbolo da liberdade adquirida do homem, tanto no sentido econômico quanto no sentido político do termo.

3. Liberdade e Estado

Hegel tenta nos mostrar que a história é o desenvolvimento progressivo do Espírito, que é a própria Liberdade. Mas, o que é a liberdade? Em que consiste esse conceito que todos parecem conhecer, mas que é ao mesmo tempo tão difícil de explicar? Para alguns, liberdade significa poder agir de acordo com a própria vontade sem qualquer tipo impedimento externo. Significa autonomia, ou seja, poder se autodeterminar sem qualquer forma de constrangimento. Assim, em um primeiro momento, a liberdade parece ser algo próprio e inerente ao indivíduo e que parece ser contraditório a qualquer forma de coerção que vá contra a vontade desse indivíduo. Sabemos também que a liberdade pertence a um contexto mais amplo, que abriga diversos indivíduos vivendo coletivamente, ou seja, tem um âmbito social. Nesse sentido, fala-se em liberdade de uma nação, autodeterminação dos povos, liberdade de expressão, de ir e vir, etc. O período que vai do século XVII a XIX foi marcado por profundas convulsões sociais. Na Europa, o absolutismo dos reis foi contestado em face de uma maior participação dos cidadãos nas decisões políticas. Nesse período, tivemos a Revolução Gloriosa na Inglaterra, a Independência dos EUA e a Revolução Francesa. Contra os defensores do direito divino de governar dos monarcas absolutistas, surge uma nova classe de pensadores que fundamentava o poder a partir da vontade consciente e livre dos homens, eram os contratualistas. Esses filósofos tiveram profunda influência nessas Revoluções. Na França, as ideias de Rousseau inspiraram a Revolução Francesa, enquanto na Inglaterra, Locke é considerado o grande teórico da Revolução Gloriosa. Foram pensadores importantes não só pelas suas ideias democráticas de participação política, mas também por defenderem as liberdades individuais do homem frente ao poder do Estado. Na sua obra Princípios da Filosofia do Direito, Hegel faz críticas a essa concepção de liberdade propalada pelos contratualistas. Como vimos, a liberdade tem um aspecto individual e um aspecto social, muitas vezes esses

dois aspectos entram em conflito: o que é bom para o indivíduo não é bom para o todo e vice-versa. Além do mais, a liberdade nunca é algo pleno, mesmo no Estado democrático ela é condicionada por leis que regulam as liberdades individuais e impedem que uma se sobreponha à outra de modo arbitrário. Hegel critica no contratualismo uma visão excessivamente individualista da liberdade. É o que ele chama de liberdade negativa. Nessa concepção a liberdade é tida como intrínseca ao indivíduo e que deve ser justamente restringida exteriormente pelas leis e normas. Na concepção dialética de Hegel, ao contrário, mesmo as leis e normas surgidas no seio do Estado Moderno fazem parte da própria liberdade na sua forma de se concretizar no mundo humano. A liberdade deve então ser negada para só então pode ser afirmada com ainda mais força. Dessa forma, a liberdade é podada apenas para que possa crescer e desenvolver-se mais. Abdicando de sua vontade egoísta e arbitrária, o homem abraçaria livre e conscientemente as normas da sociedade, para ser então ainda mais livre. Como é bem sabido, a questão da Liberdade é central para os idealistas alemães, influenciados como eles estavam pela Revolução Francesa. Para Hegel, no desenrolar da história o Espírito aliena-se a si mesmo, dando origem à natureza e, então, se torna autoconsciente através do espírito humano. O fim da história está na ideia de Estado. Na necessidade de atualizar-se progressivamente, até alcançar seu desenvolvimento total, o Espírito segue nesse efeito recíproco de contradições com fins na máxima realização da razão: o Estado, que, para Hegel, representa a mais elevada forma de existência social. A Filosofia do Direito de Hegel é um momento de sua Filosofia do Espírito, que se encontra na segunda seção da Enciclopédia das Ciências Filosóficas. A fim de captar a racionalidade no presente, faz-se necessário um exame de todas as coisas humanas, em especial a vida política. De acordo com Hegel, devemos captar a vida política do homem à luz da liberdade do indivíduo. A História é o lugar da manifestação dessa liberdade. A Filosofia do Direito surge como uma crítica ao Estado Moderno, no qual a individualidade passa a ser mais importante, em oposição ao Estado Antigo, no qual o Estado vem antes do individual. Faz-se necessária uma reconciliação entre o indivíduo e o social, o reino da liberdade e o reino da necessidade. Hegel reconcilia esses momentos através do conceito de Eticidade. 1. Direito Abstrato: o Direito Abstrato é o primeiro momento na dialética hegeliana da efetivação da vontade livre. É a forma mais abstrata e formal, pois ela abstrai dos indivíduos suas particularidades tratando-os de forma universal. Nenhum homem é uma ilha, ele precisa se efetivar no

mundo, e isso é feito através da propriedade. O Direito Abstrato surge para separar o “meu” do “seu” e sacramentar essa separação. 2. Moralidade: o desenvolvimento da dialética da liberdade acontece paralelamente ao desenvolvimento da subjetividade. Enquanto no Direito Abstrato a vontade do indivíduo ainda está muito próxima de uma vontade natural, essencialmente egoísta, mas que busca universalizar-se, neste novo momento, a Moralidade, o “meu” internaliza-se e torna-se “eu”: as leis morais são internalizadas, e o indivíduo passa a querer livremente segui-las, entendendo-as como boas. 3. Eticidade: a Eticidade constitui o momento final da concretização da Liberdade. De simples conceito no direito abstrato à internalização na moralidade; na eticidade, o contato com o Outro no plano da sociedade civil levam, por fim, a termo o longo percurso da Liberdade. Neste momento aparece de fato a socialização, e na sua expressão máxima: o Estado. A configuração do Estado é produto da ação dos homens na História, da livre ação humana que escolhe o que quer para si e para seus iguais. O Estado surge para Hegel como a suprema efetivação da razão e da liberdade – no qual os indivíduos superam seus interesses particulares, incorporando-os num interesse universal. É a própria unidade de todos os homens que são livres e querem ser livres. O Estado é entendido como a mais alta forma de incorporação da Ideia na terra e o principal meio usado pelo Absoluto para manifestar-se enquanto desenvolve-se em direção a sua perfeita realização. Ele é um tipo de organismo independente e autossuficiente composto de homens e com uma vontade e intenção própria. Justamente porque homens de diferentes grupos (Estados, nações) nem sempre concordam no que diz respeito a seus valores morais, cada Estado tem o direito de legislar seu próprio código moral. Pelo menos à primeira vista, qualquer tipo de Estado Mundial não seria possível em Hegel, pois haveria sempre uma tensão entre: 1. A liberdade individual de cada constituinte do Estado (e para Hegel é apenas através do pertencimento a um Estado que um indivíduo pode afirmar de fato sua identidade e em consequência ser livre); 2. O próprio Estado, que é absolutamente soberano; e 3. A obrigação de se acatar uma lei internacional. Hegel nos diz, em seus Princípios da Filosofia do Direito, que a relação entre Estados é uma relação entre entidades independentes que podem vir a fazer acordos e leis mútuas, mas que sempre estarão acima destas. É realmente possível o estabelecimento de algum tipo de Estado Mundial, na forma de uma Ordem Mundial? Steven V. Hicks parece achar que sim, como propõe em seu livro International Law and the Possibility of a Just World Order: an Essay on Hegel’s Universalism, ao tentar mostrar que é possível não só uma Ordem Mundial compatível com as ideias apresentadas por Hegel sobre a total soberania do Estado, mas também um tipo de

“comunidade de Estados” . É verdade que, para Hegel, a história do mundo consiste essencialmente da manifestação da liberdade. Nesse sentido, Estados, sociedades e culturas em geral podem ser avaliadas individualmente e de “fora para dentro” , por assim dizer, no que diz respeito ao papel que elas desempenham no desenvolvimento de tal história mundial. Há inegavelmente uma perspectiva universalista em Hegel, que fica clara em sua filosofia da história.3 Em seu “Hegel’s Historicism” , Beiser diz muito sobre a filosofia da história de Hegel, o que é bastante esclarecedor no presente contexto.4

Algumas Considerações Finais

Uma Ordem Mundial teria que surgir, muito provavelmente, através de algum tipo de contrato entre as livres-nações, os Estados. Embora Hegel chegue muito próximo do pensamento de Hobbes sobre as relações internacionais, a saber, que estas, em geral, estão fadadas a envolver algum grau de conflito5 , esse conflito não é de natureza apenas física e militar, mas também intelectual. Ainda assim, é bem sabido que Hegel se opôs veementemente a tradição contratualista, especialmente representada por Hobbes, Rousseau e Kant. No entanto, isso não o impede de chegar próximo às ideias de Hobbes, como fica claro pelo § 333 de sua Filosofia do Direito, e os parágrafos subsequentes. Hegel não arrisca negar completamente a possível existência de uma lei entre todos os Estados. Como aponta Sihvola, em seu texto supracitado, de acordo com Hegel, para manter a possibilidade de uma futura Ordem Mundial pacífica, os Estados teriam que entrar em acordo com pelo menos um conjunto de normas que ditassem protocolos comuns com respeito a prisioneiros, proteção dos civis, etc. Não há razões suficientes para negar que Hegel parecia achar (e talvez também esperar) que gradualmente os diversos Estados caminhariam para um sistema de união mundial de cultura e razão, na medida em que o Espírito se desenvolvesse na história. E embora as soberanias fossem ainda reconhecidas, guerras e disputas cessariam gradativamente. É claro que não podemos prever como a sociedade mundial será, porque não temos o conhecimento do espírito necessário para entender como a sociedade global vai atualizar a natureza de

3 SIHVOLA, J. “National Interest and the Universal Good in Hegelian Political Philosophy in Finland”. Downloaded from: HELDA – The Digital Repository of University of Helsinki. 2008. URL: http://hdl.handle.net/10138/25781. Acessado em: 09/10/2010. 4 Ver: BEISER, F. C. “Hegel’s Historicism”. In: Beiser, Frederick C. (ed.) The Cambridge Companion to Hegel. Cambridge: Cambridge University Press, p. 270-300. 5 Hegel chega a usar metáforas de natureza sangrenta e militar para ilustrar como se dariam as relações entre os diversos estados. Como aponta bem Sihvola, em SIHVOLA, J. “National Interest and the Universal Good in Hegelian Political Philosophy in Finland”. Downloaded from: HELDA – The Digital Repository of University of Helsinki. 2008. URL: http://hdl.handle.net/10138/25781. Acessado em: 09/10/2010, p. 94.

seu espírito. Mas, podemos, pelo menos, enxergar os problemas atuais e prever quais serão, então, as questões a serem resolvidas posteriormente.

Referências Bibliográficas

BEISER, F. C. “Hegel’s Historicism” . In: The Cambridge Companion to Hegel. F. C. Beiser (ed.). Cambridge: Cambridge University Press, p. 270300.

BOUCHER, D.; KELLY, P. (ed.) The Social Contract from Hobbes to Rawls. London: Routledge, 1994. HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2003. HICK, S. V. International Law and the Possibility of a Just World Order: an Essay on Hegel’s Universalism. Atlanta, GA: Editions Rodopi B. V., 1999. HOBBES, T. Leviatã. Trad. de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 1997. (Col. Pensadores). REDDING, P. “Georg Wilhelm Friedrich Hegel” . In: The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2008 Edition). Edward N. Zalta (ed.). forthcoming URL = http://plato.stanford.edu/archives/win2008/entries/hegel/, acessado em 08/10/2010. ROSENFIELD, D. L. Política e Liberdade em Hegel. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1995. SIHVOLA, J. “National Interest and the Universal Good in Hegelian Political Philosophy in Finland” . Downloaded from: HELDA – The Digital Repository of University of Helsinki. 2008. URL: http://hdl.handle.net/10138/25781. Acessado em: 09/10/2010. SOARES, M. C. Sociedade Civil e Sociedade Política em Hegel. Fortaleza: EdUECE, 2009. WEBER, T. Hegel: Liberdade, Estado e História. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.

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