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Corporalidade e Sexualidade: A Biosfera Autêntica do Cenário da Vida em Ludwig Feuerbach

CORPORALIDADE E SEXUALIDADE: A BIOSFERA AUTÊNTICA DO CENÁRIO DA VIDA EM LUDWIG FEUERBACH

Jose Luiz Silva da Costa1

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Introdução

Este artigo pretende mostrar a análise de Ludwig Andreas Feuerbach (1804-1872) acerca da corporalidade e da sexualidade como critérios fundamentais da vida humana no tempo presente, promovendo uma sagaz crítica à religião cristã, que, em seu entendimento, anulou o corpo e o sexo da realidade humana, caracterizando-as como condição negativa e pecaminosa. Feuerbach não escreveu seus textos de maneira sistemática, ele desenvolveu várias ideias por meio de aforismos e dissertações sobre temas específicos, e seus textos incluem a crítica à filosofia especulativa, a análise da teologia, reflexões sobre a religião, suas teses sobre o homem; além de temas como a razão, a sensibilidade e a volição humana, a intersubjetividade, etc. O que nos interessa, neste trabalho, é o seu conceito de corporalidade e sexualidade, e a fundamentação de tal conceito advindo de sua voraz crítica à religião na obra A Essência do Cristianismo; portanto, uma refundamentação dos alicerces destas categorias que são vitais para o homem. E a fonte de onde se pode identificar seu resgate dos conceitos aqui estudados, está presente em sua tese fundamental que ficou conhecida, de forma célebre, como seu ateísmo antropológico. Partiremos, então, do desenvolvimento da relação entre o homem e a religião para compreendermos como esta criou suas teses de pecado e salvação, invalidando o corpo e o sexo humanos. E, de forma posterior, mostraremos a revitalização promovida por Feuerbach do corpo e da sexualidade humanas como sendo os biomas reais de atuação e a parição do homem vivo, concreto e real.

Homem e Religião: a descoberta da essencialidade antropológica no desvelamento das categorias religiosas

A religião é o que deixa o homem cindido, quebrado. Isto se dá quando a religião é vista como diferente deste. É na separação do homem com sua essência que surgiu tal cisão, na objetivação do que há de melhor no homem para um Ser exterior; desta maneira, este ficou à mercê da sorte, sem uma essência clara e definida.

1 Bolsista CAPES 2012.02. E-mail: luizcostasilva@hotmail.com Mestrando em Filosofia pelo PPG em Filosofia da Universidade Federal do Ceará. Bolsista Capes.

A religião é a cisão do homem consigo mesmo: ele estabelece Deus como um ser anteposto a ele. Deus não é o que o homem é, o homem não é o que Deus é. Deus é o ser infinito, o homem o finito; Deus é perfeito, o homem é imperfeito; Deus é e eterno, o homem transitório; Deus é plenipotente, o homem impotente; Deus é santo, o homem é pecador. Deus e homem são extremos: Deus é o unicamente positivo, o cerne de todas as realidades, o homem é o unicamente negativo, o cerne de todas as nulidades2 . É fato que uma verdadeira cisão só ocorre entre seres, entidades, que fazem parte de uma mesma estrutura, que carregam em si as condições de serem um único. Assim é necessário que compartilhem da mesma essência para serem separados. Feuerbach já nos esclareceu que o homem e a religião compartilham da mesma essência, resta-nos esclarecer de onde surgiu tal essência, e Feuerbach é categórico: “O que deve ser demonstrado é então que esta oposição, que esta cisão entre Deus e o homem, com a qual se inicia a religião, é uma cisão entre o homem com sua própria essência” . 3 Assim é Deus que advém do espírito humano, e não o homem que deve sua essência a Deus. Vê-se que a força interior da consciência humana é tão forte e ilimitada que consegue ocultar de si mesma a sua condição, a saber, infinita e ilimitada. O ser humano desconhece as suas capacidades e, por isso, é carregado por uma série de ilusões que não o deixam perceber o alcance de sua força. E esta premissa é fundamental para a compreensão tanto da antropologia feuerbachiana, como para a análise do mundo, pois a desmistificação dos mistérios religiosos para nosso autor quer não apenas resguardar o homem de seu papel nesta relação humano/divino, mas também tirar esta penumbra que é a crença religiosa sem fundamentos. Deus é a referência última da religião, a base fundamental de toda escrita e prática cristãs, e como tal esta referência só se afirma como consciência religiosa quando os atributos humanos são afirmados, pois, a nulidade do homem demonstra a nulidade da religião. Afirma Feuerbach: “A religião é levada a sério somente com as qualidades que objetivam o homem para com o homem. Negar o homem significa negar a religião” . 4 O que resta da teia de relações íntimas entre ser humano e religião é senão uma essência única, tendo assim características comuns. É, portanto, critério vital para ambos que suas existências peregrinem juntas.

2 FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Trad. de José da Silva Brandão (Filósofo). Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. p. 63. 3 FEUERBACH, Ludwig. Op. cit. p. 63. 4 Idem, p. 54.

Mas há diferenças entre a religião e o homem. À medida que a religião se interessa somente pelo homem, o Cristianismo se tornou a religião do homem e do medo das novas descobertas. Em relação ao homem, percebe-se que a religião trabalha em virtude da libertação, salvação, ensino (dogmatismos) e pastoreio destes, para tê-los como fiéis seguidores no caminho da salvação. E o Cristianismo é a religião do medo, já que é a detentora da verdade e da salvação na pessoa de Cristo5 , portanto é uma religião exclusivista, onde só se salva quem a aceita. O homem, por seu turno, tem um mundo natural e cultural para desvelar, está em suas mãos a descoberta de novas curas, o manejo da natureza, a eternização da escrita, a criação musical, etc.; foi a partir dos processos de sentir e da investigação racional do humano (animal laborans) que descobrimos a botânica, as leis da física, a astronomia, a estética, a política; e a filosofia para coroar tantas descobertas. Por isso que, na medida em que os filósofos pagãos se debruçavam e se arriscavam nas descobertas exteriores as suas crenças e subjetividades, eles imergiam no mundo sensível; os cristãos se aprisionavam na corrida pela salvação individual e na busca de um mundo melhor. Desta maneira, Feuerbach se entrega ao estudo e à crítica da religião, esta na verdade é o maior intento de sua vida. Minhas obras se dividem nas que têm por objeto a filosofia em geral e nas que têm por objeto a religião em especial ou a filosofia da religião. Não obstante esta distinção das minhas obras, têm todas elas, rigorosamente falando, uma única meta, um intento, um pensamento, um tema. Este tema é exatamente a religião e a teologia e tudo o que com isso se relacione.6 Na história da mortalidade e da imortalidade, os filósofos pagãos antigos se debruçaram sobre um problema teorético, isto é, fundamentalmente as respostas vinham por conceitos. A preocupação basilar destes filósofos era com o espírito, o fundamento da vida. E de diversos modos deram definições para a possibilidade de uma existência para além da vida presente. O espírito também medeia a discussão filosófica na Modernidade guiada pelo EU cartesiano, o EU fichetano e o Absoluto hegeliano. O corpo é uma substância separada do espírito e é determinado por este. Nas referências feuerbachianas, a partir de um projeto de totalidade humana, o homem reconhece seu caráter da finitude, não como uma desvalorização de sua vida singular, antes como a forma como está inserido no mundo. Já para os cristãos, a ressurreição vem de maneira completa, pois o

5 “Eu sou o caminho a verdade e a vida”. In: Jo. 14:6. Bíblia do Peregrino. São Paulo: Editora Paulus, 2002. 6 FEUERBACH, Ludwig. Preleções sobre a essência da religião. Trad. do alemão por José da Silva Brandão (Filósofo). Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. p. 17.

corpo e o espírito vivem. Cristo quando ressurgiu veio em forma e em matéria, e assim promoveu uma reviravolta nos conceitos até então amplamente discutidos e reformulados. O triunfo dos dogmáticos está no poder sobrenatural de reviver o seu corpo após ter ele sucumbido. O que para Feuerbach não pode ser afirmado, pois a morte corporal é passagem obrigatória para todo ser vivente. E a morte surge como momento definitivo de afirmação do homem, como ser natural, sujeito ao detrimento a que toda forma constituída de biòs sofre. Os cristãos, em divergência com o mundo material, têm a verdade e o controle sobre a natureza, pois o fluir natural das leis orgânicas fora quebrado, e desta forma eles têm o poder sobre a vida e a morte. Dominam eles a verdade, e a história é apenas o processo da realização de seus desejos mais profundos colocados no julgamento e sob a interferência de seu Deus. Para Feuerbach, a fantasia e a imaginação, atormentadas pelo fantasma nebuloso da religião, são os fatores que fazem o homem se afastar da natureza e crer numa existência eterna. A imaginação e a fantasia em si não são fatores negativos na vida humana, já que são partes constituintes da razão, mas quanto mais o homem vive uma vida meramente subjetiva, isto é, se afastando da natureza e validando as crenças antinaturais, tanto mais aqueles fatores (a imaginação e a fantasia) tendem a alienar-se e a transformar-se em ilusões contraditórias. A afetividade humana, ao invés de afirmar a sua capacidade reflexiva e libertadora, cria um mundo anti-humano, onde: “O homem subjetivo transforma seus sentimentos num critério do que deve ser. Tudo aquilo que não lhe agrada, que ofende a sua sensibilidade sobre ou antinatural, não deve existir”7 . Nascer e morrer são as certezas mais imediatas a que um indivíduo tem condições de afirmar no transcurso de sua vida, mas estas certezas são colocadas em xeque a partir do momento em que a natureza não mais está ao seu lado (quando a natureza é um ser outro, fora de sua realidade), está sob o seu domínio. Assim, o homem verdadeiro aceita as limitações gerais que a natureza lhe impõe (tanto de forma sensorial como de forma racional), ao passo que o cristão a repudia, pois desta maneira fica mais fácil explicar tanto o nascimento sobrenatural (sem a relação sexual) e a ressurreição sobrenatural (o ressurgimento da vida depois da morte). Ocorre a morte do espírito ainda em vida, quando se vive em função da redenção e com medo de seus desejos. Por isso que em vida surge a ilusão de um espírito puramente abstrato, sem forma, sem calor, sem sexo, sem instinto, um ser somente religioso e especulativo. Enfim, um ser sem corporalidade.

7 FEUERBACH, Ludwig. Op. Cit. p. 151.

Por isso, a religião quer criar um homem sem limites, um animal que não tenha mais necessidades, um ser sem desejos a não ser a perfeição. Mas, é este homem que se vê cercado por mediações, que enfrenta o desejo de ilimitação, de ser sem corpo, razão pura. O homem religioso não se sente mais ligado ao mundo, sente-se um peregrino que caminha nas veredas terrenas com a mente e o coração ligados no outro mundo. Segue-se que através do seu gênero conseguiu criar a religião, e a partir daí surgir Deus como uma figura humana, entretanto liberto de qualquer deficiência, imperfeição e limitação. É a partir de uma ideia abstrata do homem e de Deus que se constroem hipóteses religiosas e especulativas. Feuerbach entende que os filósofos e os teólogos pagãos até então haviam partido da perspectiva estritamente racional, no uso do logos, para provar Deus e, ao mesmo tempo, criar uma explicação antropológica. Surgiram a partir de então tantas filosofias em forma de religião e, diversas religiões metamorfoseadas de filosofia. Também nesta perspectiva é que a religião se tornou uma teologia racional, pois a partir de ideias racionais abstratas se tenta fundamentar a existência de Deus. É do homem que nasce a religião, e da religião que nasce o amor pela essência humana subjetiva, e é da razão subjetiva que nasce a afirmação de uma essência humana objetivo-subjetiva, e a partir de então surge a ciência, a filosofia e o amor pelo mundo. Gera-se, desta forma, uma unidade entre homem e natureza numa relação de amor e descoberta. A identificação de uma essência específica é que revela o gênero humano, o homem não como simulacro de Deus, e na verdade Deus como simulacro do homem. Na busca de uma determinação para sua vida surgem também as determinações religiosas, que orientam o homem no caminho do devir. E ocupa uma grande parte de suas energias vitais, levando-o à dedicação quase que exclusiva na busca do mundo prometido. Assim, Feuerbach caracteriza a condição singular humana, descolada de sua generalidade. O homem perde o controle de sua existência ao alienar-se de sua essência. Para os cristãos, temos uma dívida permanente com o outro mundo (o paraíso cristão), e somente a reparação de tal dívida nos fará um sujeito apresentável aos olhos de Deus. Esta dívida é adquirida a partir do nascimento, e no decorrer da vida, ela pode se agravar ou ser eliminada, basta uma conduta moral rígida fundada nos dogmas e preceitos cristãos. Tal dívida, segundo Feuerbach, devemos ao Cristianismo que de forma categórica rasgou a realidade humana em vista de promessas extramundanas. Pois, como se sabe, a religião conseguiu se alçar como criadora de significados ontológicos para o mundo, dominando o imaginário e a cultura desde sua criação. Com a inserção do saber (logos) nas crenças teísticas,

agora se afirma uma fé racional e de tal maneira explicável, porém de maneira contraditória, não questionável. O rasgo existencial jamais fora reparado. Ao passo que a história da humanidade caminha, em paralelo caminha a história dos dogmas, a falácia do céu e da terra e os traumas do pecado. É desta forma que a cultura moral (de maneira contundente a ocidental) está carregada desde sua gênese dos sofismas religiosos. Por isso, as religiões (em especial o Cristianismo) influenciaram a cultura e as diversas formas de vida existentes. Ora, a religião, a cultura e a história possuem a mesma faceta (pois não se sabe onde começa uma e termina outra) e seus caminhos sempre estiveram lado a lado. A cisão que a religião causou no espírito humano foi tão grave que todas as noções morais históricas ocidentais, que são transmitidas de uma geração a outra, se dão por meio da condenação do corpo, de sua negação, e das referências diretas a figura de um ser extremamente maligno (a figura do diabo), que trabalha e vigia para o erro humano. Além disso, a corporalidade e a sexualidade são formas condenadas pela religião, pois ligam o homem de maneira direta ao mundo imediato (natural), fazendo-o esquecer do mundo verdadeiro. Feuerbach faz uma revisão das categorias do corpo e da sexualidade para reafirmá-las, não mais como espaço do pecado, mas como espaço específico e campo de atuação do homem. Desta maneira, as reconhecendo como a biosfera autêntica dos mortais e finitos.

vida

Corporalidade8 e Sexualidade: a biosfera autêntica do cenário da

Feuerbach demonstra a necessidade do corpo para a afirmação do ser físico real e da personalidade humana. E como meio primário de inserção na natureza e no mundo biológico. A distinção sexual é a objetivação da personalidade e da diferenciação do EU e do TU. Tais pressupostos essenciais à existência de qualquer indivíduo são negados pelo Cristianismo, já que para ele demonstram a fragilidade da vida humana terrena. Para Feuerbach, o homem deve afirmar a diferenciação sexual e o sexo como meios de propagar sua prole e, mais ainda, como gesto de amabilidade. Em contrapartida, o Cristianismo quer negar a sexualidade, afirmando que esta possui um caráter transgressor e pecaminoso, logo repudiáveis aos olhos do salvador.

8 “O nosso corpo é, para nós, o objeto mais próximo, o nosso ser próprio que sempre nos acompanha, o mais familiar e imediatamente percebido como objeto, o mais imediatamente sentido. O sentido interno fornece a consciência sensitiva de estados e movimentos corporais, de sensações de bem-estar e mal-estar, a experiência de si interiormente sentida de um ser corporizado” . SERRÃO, Adriana Veríssimo. A Humanidade da razão. Ludwig Feuerbach e o Projecto de uma antropologia integral. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1999, p. 165166.

Mas, para fundamentar a crença em uma vida melhor, deve-se excluir o que gera prazer neste mundo. A satisfação do casamento não é mediada senão pela pulsão sexual que guia os amantes a se doarem. O projeto cristão atesta que a negação da vida9 surge como uma conveniência da veneração exagerada a Deus e no culto ao além-mundo. Se Nele está o amor completo e perfeito, se nele há todas as qualidades que faltam no homem e na sociedade, e é Nele que está a satisfação derradeira, então negar a vida e a realidade presente é necessário para permanecer nas graças divinas. Desta maneira, a vida para o cristão é uma provação, tendo em vista que este mundo é o caminho imperfeito e passageiro, o qual deve ser negado para ser revelado o melhor destino para além deste. Se a continuação da vida só pode ser propagada pelo viés sexual, então o Cristianismo nega a própria vida e sua manutenção, no entendimento de Feuerbach, já que nega os instintos sexuais. Para Deus criar o homem, deve ele também ter criado o desejo sexual, de outra forma tal desejo surgiu do acaso, e desta forma negar-se-ia a própria criação divina. Deduz-se que em Deus há também desejos. As diferenças sexuais existem, de uma forma natural, para que o indivíduo (animal natural) tenha condições de gerar seus filhos e para que sua espécie não se extinga com o passar dos tempos. É, portanto, critério de vida ou morte e uma das condições mais basilares na conservação da espécie humana a atividade sexual. Se o nosso ambiente é constituído da relação entre pessoas, das relações entre o Eu e o Tu, de onde surgem tais pessoas? Da relação sexual. O sexo é a atributo humano que por excelência nos manifesta como seres naturais e sensíveis que somos. Não há um nascimento na face da terra que não tenha sido oriundo da relação entre os homens. Não se pode, desta maneira, excluir tal categoria de nossas vidas, devemos estar conscientes de nossa condição. A unidade mediata, real, natural e histórica do indivíduo com seu gênero é baseada no sexo. De outro modo, a unidade imediata, imaterial, ilusória e assexuada é anti-humana, pois divide gênero e individuo. O ser humano só existe sob duas formas, a saber, homem e mulher. A união sexual dos dois é a gênese dos indivíduos. A visão cristã viu, nesta relação, uma reprodução meramente animal e a excluiu de seus desígnios. Enquanto a vida genérica do homem só pode ser representada na atividade sexual, a vida perfeita do asceta é representada por ser o homem assexuado, destituído de sua distinção. E indiferente a sua condição biológico-natural.

9 “No entanto existe, um mundo, uma matéria. Como podes sair de se embaraço desta contradição? Como retiras o mundo da mente para que ele não te incomode no sentimento delicioso da alma ilimitada? Somente fazendo do próprio mundo um produto da vontade, dando a ele uma existência arbitrária, sempre oscilante entre ser e não ser, sempre na espera da sua destruição” . FEUERBACH, Ludwig. Op. Cit., p. 127.

O Cristianismo tratou a sexualidade humana como sendo profana, porque é o que mais nos aproxima de nossa condição animal. E o que nos liga de forma explicitamente sensível a esta terra, já que esta só existe porque os homens geraram seus filhos. Não teria sido a terra densamente povoada se Adão e Eva não assumissem sua casta sexual. A personalidade humana tem como traço fundamental a capacidade de se unir de forma carnal com o outro, de se expressar os desejos e sentimentos, na união física. Rejeitar tal disposição orgânica, à maneira cristã, é negar a vida concreta. O reconhecimento inicial do ser humano enquanto persona se dá na diferenciação sexual, e só a partir de então se forma os traços psicológicos próprios a cada um.

Personalidade e Corporeidade: A personalidade como constituição psicofísica

A personalidade é o que caracteriza cada homem de forma distinta. Fálo ser diferente do outro, lhe concede uma vida que difere das demais. Até mesmo na cultura cristã o Deus pessoal teve que ter uma personalidade própria para se identificar como o salvador. Só se pôde confirmar sua existência através da encarnação, quando se tornou visível, tocável, amável e histórico. Pois, esta é a forma comum a que identificamos um ser vivente quando ele está com uma forma determinada, com um jeito peculiar, com suas características mais intrínsecas. Portanto, o que nos define no mundo é nossa personalidade10 . A personalidade é marca visível que nos qualifica em meio à sociedade. É a nossa posição dentro de um determinado momento. A história humana é constituída de realidades personificadas, pois são personagens que a fabricam. Não se pode deixar de crer que guerras e tratados surgiram de personalidades fortes, já que é o conjunto de personalidades que cria uma ideia e que dá força a tal ideia. Também é assim no pensamento religioso: Deus só pode se reconhecer como pessoa, no momento em gerou uma personalidade. E esta afirmação confirma a humanidade de Deus, de tal maneira que é do homem que se afirma uma personalidade. Na encarnação e personalização, Cristo tomou o seu lugar na história dos homens comuns. Uma personalidade só existe numa

10 A personalidade é um conjunto de características que individualizam qualquer pessoa. Assim é definido de maneira geral: “Caráter essencial e exclusivo de uma pessoa”. E para a psicologia: “Organização integrada e dinâmica dos atributos físicos, mentais e morais do indivíduo; compreende tanto os impulsos naturais como os adquiridos e, portanto, hábitos, interesses, complexos, sentimentos e aspirações”. In: Dicionário da língua portuguesa. http://www.priberam.pt/dlpo/. Acessado em: 10.09.2012

pessoa determinada, num ser real, em alguém que está vivo, num ser corpóreo. E o homem só pode socializar com os outros, se todos forem instituídos de persona, isto é, de uma forma só sua. Constatamos que: A humanidade de Deus é a sua personalidade; Deus é um ser pessoal significa: Deus é um ser humano, Deus é homem. A personalidade é um pensamento que só possui verdade enquanto homem real. O sentido que existe sob a as encarnações de Deus é, pois, atingido de maneira infinitamente e melhor através de uma encarnação, uma personalidade.11 Não se pode, desta forma, afirmar um corpo sem uma personalidade e nem o contrário. A acentuação da personalidade de um ser é que lhe apresenta em um determinado momento e sob um determinado estado espiritual. Da mesma forma é o corpo que torna o ser humano um ser objetal reconhecível pelas personalidades outras. Não são objetos da fantasia humana o corpo e a personalidade, mas são as formas que o lançam no mundo como seres históricos, individuais e determinados. As necessidades são para o homem seu prazer e sua dor. No momento da saciedade, se vê ele aliviado e feliz, porém, nos momentos de desejos, vontades e necessidades, sente-se incompleto e mutilado. O seu corpo lhe é sua barreira, mas a fonte de obtenção de prazer. O homem real constituído de carne e sangue deve levar uma vida sobre uma corda, sempre entre a saúde e a doença, a necessidade e a saciedade, o bem e o mal, o fatalismo e a liberdade, o amor e ódio e, por fim, a vida e a morte. É em seu corpo que todas essas angústias e felicidades são reveladas. Dentro de seus órgãos, corre a vida e são estes que estão sujeitos à destruição. Feuerbach nos diz que mesmo Deus sofreu a condição existencial para sentir-se homem, e, ao sentir-se homem, depois jamais se sentiu Deus novamente. Sua existência lhe gerou a vida e a morte. E foi assim que Deus descobriu ser homem, e o homem imaginou aquele. O sentimentalismo cristão corre do sangue de suas veias, sua paixão e devoção são a emanação dos desejos do corpo. Estar presente no mundo é ter uma manifestação física no espaçotempo, e estar em contato direto com a natureza. O corpo é o ente que prova nossa ligação material com a natureza. Não se pode duvidar da corporeidade de Cristo, já que em sua morte foi seu corpo que sofreu as dores, e foi neste momento que se estabeleceu uma concretização maior de sua real vida na terra. Para isso, vejamos:

11 FEUERBACH, Ludwig. Op. Cit. p. 158.

Mas assim como a verdade da personalidade é a unidade e a verdade da unidade é a realidade, então a verdade da personalidade é o sangue. A última prova, salientada pelo autor do quarto evangelho com especial ênfase, de que a pessoa visível de Deus não foi um fantasma, uma ilusão, mas sim um homem real, é que fluiu sangue de seu corpo na cruz, pois somente no sangue do Cristo é saciada a sede por um Deus pessoal, isto é, humano, participante, sentimental.12 O homem se encontra perdido, pois não se concentra nos fatos reais, mas apenas na busca da salvação pessoal e restrito no seu mundo interior. Desliga-se da conexão como mundo. Eleva, desta forma, os seus desejos e sentimentos ao mais alto nível de abstração, porque não reconhece como pertencente ao mundo. Ele se enxerga como autossuficiente chegando o outro de seu mundo. É a subjetividade pura que nega a alteridade real que constitui a realidade. Os desejos e medos da humanidade são guiados, em sua maior parte, pelas noções morais de pecado e salvação. A referência a um erro primitivo é a raiz da dominação religiosa disseminada por diversas culturas. Sendo que tratam do mesmo objeto (o pecado), entretanto alteram nomes e signos para diferenciar o poder que guarda o estatuto do pecado e a condição de perdoar e de salvar (guardadas a sete chaves pelos seus pastores religiosos). Salvação que somente se alcança na adesão e absorção das rigorosas ações morais presentes em cada sistema de leis religiosas, tendo em vista que a salvação e o perdão dos erros só são concedidos aos seus fiéis seguidores.13 Para conseguir o domínio sobre o imaginário humano e a submissão de seus corpos, o Cristianismo se utilizou do medo e do sentimento de dependência para subjugá-lo. Isso ocorreu com a incorporação da categoria pecado que induz o homem à anulação de sua vida na busca de um eterno perdão para esse eterno erro que fora cometido pela humanidade inteira. Quando se vê o homem como ser que nasce na condição pecaminosa, relegase a natureza humana a uma determinação em que ela não é boa por si mesma, antes ela depende de outrem para ser completa. A completude de tal natureza advém, de acordo com o pensar religioso, da redenção desta culpa primária. Já para Feuerbach, é só no abandono e na destruição daquela categoria (o pecado) que o homem se liberta das culpas e se encontra com sua essência, que se basta a si mesma.

12 Idem. p. 159. 13 Já se projeta, a partir de então, a noção egoísta de salvação advinda do Cristianismo e de outras religiões em geral. Na qual, somente quem faz a profissão da fé escolhida e se arrepende de verdade, é perdoado pelos seus clérigos e está preparado para a passagem para a vida melhor e eterna.

Referências Bibliográficas

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