Lancheria do parque

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Quarta-feira Em poucos lugares o barulho soa tão agradável e a bagunça é tão organizada quanto no 1086 da Avenida Osvaldo Aranha em Porto Alegre. Na Lancheria do Parque, todos são iguais, do executivo de terno ao pedreiro de havaianas. A distinção se encontra apenas nas vestimentas. Mesas de mármore, cadeiras de madeira, bancos de plásticos virados para o balcão. A Lanchera dispensa a modernidade dos bares atuais. Sete espelhos espalhados, seis quadros que mostram de diferentes ângulos o Parque da Redenção, e cinco ventiladores são suficientes para manter a temperatura do ambiente agradável. Nem mais, nem menos. A decoração é essa. Além dos folders de propagandas de festas que ficam colados no mural. Quando se fala em modernidade, não é apenas na falta de ar condicionado ou em cadeiras e mesas mais luxuosas ou um retoque a mais na decoração. Num dos lugares mais ecléticos da capital, os garçons não precisam nada mais que um pedaço de papel para anotar apenas o preço dos pedidos. - Um laranja com banana sem açúcar - Torrada com ovo - Taça branca de café preto - Dois pastéis de carne Aos gritos os pedidos são anunciados. Quem frequenta assiduamente a Lancheria do Parque já é acostumado com o esquema. Quem atende pergunta o que o cliente deseja, se vira, e anuncia o pedido ao colega que fica atrás do balcão. Ás vezes são dois ou três gritando ao mesmo tempo, quem está atrás do balcão tem que dar um jeito. “A gente se acostuma, vai reconhecendo a voz dos outros, já sabe quem grita”, explica Mauro, responsável pelos sucos no turno da noite. “Toda quarta-feira eu consulto no Clínicas e depois venho pra cá”. Carlos tinha dois pratos na mesa. No fundo, arroz, feijão e batata. No raso, bife, cenoura e molho vinagrete. Aos poucos que ia comendo o arroz e feijão, ia passando a comida de um para outro. Além de tomar coca zero com limão e gelo. “Eu não tenho queixa daqui. É um lugar muito legal que sempre tá cheio de gente”, negro, com evidentes problemas de visão, porém sem óculos, dentes separados, cabelos baixos e ondulados. Cada um tem sua função, mas a mesma função também pode ser de todos. Atrás do balcão ficam três: o responsável pelos sucos, outro pelos sanduíches e o outro na chapa. Mas nada impede que quem faça os sanduíches lave a louça, ou quem faça o suco atenda ao cliente que chega e senta nos bancos de plástico do balcão.


Diversidade é a palavra que mais combina com a Lancheria do Parque. Os frequentadores, os garçons, os pedidos. Ousa-se o quanto desejar na hora de misturar os ingredientes dos sucos. “Tem um cara que vem aqui todos os dias e pede abacaxi, cenoura, alface e hortelã. Até vitamina de limão já pediram”, e o que é pedido é feito, na Lanchera é assim. A variedade já é da casa. Desde os anfitriões até os garçons, apenas dois são de Porto Alegre. Imigrantes do interior para a capital, se tornaram além de colegas de trabalho, uma família. “Somos os Panicats da Lanchera”, brinca Ezequiel, que trabalha há 21 meses e mora com o responsável por fazer os sanduíches, Maicon, no prédio que fica em cima da lancheria. Apartamento que foi um presente dos patrões. Há 31 anos, os idealizadores de tudo vieram de Encantado, no Vale do Taquari, para abrir um lugar que atualmente não é apenas uma lancheria, e sim um ponto turístico da cidade. Seu Ivo e Dona Inês trouxeram consigo também os funcionários. Adilar foi um deles. Agora um homem de confiança do proprietário, veio três anos após a lancheria ser aberta. Seu primeiro emprego, aos 22 anos em 1986. Morava com mais 14 funcionários no apartamento, sendo apenas uma mulher. Hoje em dia, é casado com a única mulher que trabalha no turno da noite como cozinheira e moram em um apartamento próprio próximo ao trabalho, na rua Fernandes Vieira. A Lancheria recebe de 500 a 600 pães de bauru, xis e cachorro quente, 50 caixas de 20 kg cada, de laranja – no domingo são 70 -, por dia. Possui 56 copos de liquidificador, onde serve suas famosas vitaminas, ou seus sucos misturados e 28 potes de açúcar para quem deseja adoçar, mais ainda, o que já é adoçado com a alegria de quem trabalha naquele lugar. Mesclava a conversa no quanto gostava de frequentar a Lancheria do Parque nas quartasfeiras e como esperava por esse dia, com as histórias de sua vida. Notavelmente, aparentava algum ou mais de um problema de saúde. E é aposentado por isso. Diabético e epilético. O desejo de ter alguém pra conversar era sentido. Como ficar calado em um lugar onde há tanto barulho? Nas mesas não faltam o vinagre, azeite, sal, palito e guardanapo. Os potes de ketchup e mostarda são passados de mesa em mesa de acordo com o pedido. A criança pede um pastel de carne e um suco de laranja batido. Entre os 35 segundos que o suco demora a ficar pronto, mostra ao pai os desenhos feitos na escola. O pedido chega, antes de tudo é preciso passar ketchup. Mas ainda não foram mostrados todos os desenhos ao pai, isso é o mais importante. Guarda os desenhos na mochila, mastiga calmamente, toma o suco, passa ketchup de novo. Há uma coisa mais típica na Lancheria do Parque do que se ver em quase todas as mesas um copo plástico com dois canudos e um liquidificador com suco. O futebol de segunda-feira. É inimaginável pensar que após fecharem as portas, eles ainda tenham ritmo para jogar futebol. Todas


as segundas, sem exceção, perto das 2h, eles vão ao campo Ramiro Souto, no Parque da Redenção para jogar futebol. “Não tem hora para terminar, só quando um fraco se cansa”, conta Maicon. Há também o buffet. Com 21 pratos, há comida para todos os gostos. Arroz, feijão, lentilha, massa, batata, carne, frango e saladas. A partir das 09h:30 começam a serem servidas as saladas, os pratos quentes as 11h. Ininterruptamente, vai até às 22h. Para quem trabalha no turno da noite, o expediente começa pela manhã. Das 11h30 às 14h, depois a partir das 17h até 00:00. E não acaba por aí. Os mesmos que fazem e servem os pedidos, são os que deixam a lancheria limpa para o outro dia. As 5h começa tudo de novo. Porém não há cansaço e muito menos mau humor. As brincadeiras e o riso são constantes. Ao perguntar o motivo de não haver mulheres trabalhando no balcão da Lancheria, os funcionários tem a resposta na ponta da língua. Apontando para Ezequiel, respondem: “é claro que tem mulheres trabalhando no balcão, como tu não tá vendo?”. O espírito de amizade é o que permanece durante todo o expediente. Os que ficam no balcão, conseguem conversar, brincar e fazer os pedidos sem errar. Na hora da limpeza há diversas laranjas pelo chão, “o dia que tu vier na Lancheria do Parque e não tiver uma laranja no chão, não é a Lancheria do Parque”, brinca Mauro. Ele fez as mesmas perguntas diversas vezes. Não me importei, respondia calmamente. “Maria”, mas o meu nome ele não esqueceu, fazia questão de dizê-lo, “eu não costumo jantar, só hoje porque eu tive que ficar em jejum e não almocei”, explica Carlos. Nas quartas ele costuma pedir um farroupilha e uma batida de banana. “Aqui a gente é bem atendido, eles não diferenciam o preto do branco, sou atendido do mesmo jeito que o cara ali de terno”. O contraste das mesas ao lado era grande. Em uma delas um homem de terno, na outra uma mulher mexendo em seu tablet. Carlos não tinha nada disso. Apenas a simplicidade de uma camiseta laranja e uma bermuda xadrez. Ao mesmo tempo em que não tinha nada, tinha muito mais. A sinceridade no olhar e o cuidado nas palavras que ia usar. Demonstrava medo. Medo em que pudesse falar uma palavra e que eu saísse correndo dali. Ele queria e precisava conversar. Religioso, falou diversas vezes sobre sua fé e o quanto acreditava em Deus. Mesmo com todas as dificuldades, não desacredita na vida. “Deus só dá a cruz para quem consegue carregar”. “Eu quero três pastéis de carne e um suco de melancia”, disse o garoto, “Três pastéis, filho?”, “sim, pai”. O pedido foi feito, sem mais contestações. Em menos de um minuto o suco e o pastel já estavam na mesa. A Lancheria do Parque de 1986 tem a habilidade de ser e ao mesmo tempo não ser a mesma dos dias de hoje. A essência não mudou e nunca vai mudar. “Em 1986 havia uma cesta pequena que continha no máximo cinco frutas, e elas chegavam a estragar, pois ninguém pedia sucos”, lembra Adilar. O público também mudou. Os frequentadores assíduos eram jovens que iam apenas para


beber cerveja e comprar cigarros, ficavam até às 5h. Hoje, não existe um público específico. Há quem vá apenas para tomar um suco ou uma cerveja, a família que vai fazer suas refeições, ou o idoso que todos os dias às 7h:30 toma café da manhã. Mas os caras de calça preta, avental e boné branco que se comunicam apenas aos gritos vão continuar lá, atendendo todos da mesma maneira. “Maria, gostei de conversar contigo. Me encontra quarta que vem aqui na Lancheria?” E como não voltar a Lancheria do Parque?!


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